Dose número 25
— Quando eu te pedi pra conversar com ele, não era pra você ir lá e terminar com ele! Mas que diabos você quer, garota?
Atirei os pés para o alto do sofá e ergui os olhos para o teto. Ayla, minha psicanalista desequilibrada, jogou-se contra a poltrona e levantou Sueli no ar. A galinha sacudiu as penas quando vi seus pequenos olhos apontarem em minha direção.
Ela estava me julgando desde que cheguei.
Sueli era uma galinha muito esperta.
Um adjetivo simplório para enaltecer sua inteligência e sensatez, que colocava em dúvida o meu próprio intelecto. Tudo era na base do olhar. Bastava um deslize, uma situação catastrófica, um errinho sequer para que aqueles olhos amendoados grudassem em mim pelo resto do dia, em julgamento.
— Eu quero o meu emprego intacto. Será que dá pra vocês duas entenderem isso?
— Dá pra ser um pouquinho menos racional?— Ayla reclamou, jogando uma almofada contra minha cara. — Sueli, você que tem mais cérebro do que ela, me ajuda a colocar juízo na cabeça dessa garota!
— Có Có Có Có— gritou, para o meu espanto, balançando as asas em direção ao chão.
Galinha traidora!
Até aquele momento, a palavra arrependimento era desconhecida em meu dicionário. Eu estava sob efeito de 5 taças de chá de camomila— a minha cocaína em dias nebulosos — e toda a minha dor ainda estava sendo mascarada pela possibilidade de Amanda não cumprir com o combinado.
É claro que não fiquei na editora. Em questão de segundos, juntei minhas coisas e parti rumo à porta, sem olhar para trás. Eu não dava a mínima se ele ia descontar do meu salário, eu só queria me esconder: dele, da Amanda e de mim mesma.
— Tá vendo? Até ela sabe que você fez merda!— Ayla riu sozinha quando puxei o ar com força.
Eu parecia a minha tia Aurora — a tia compulsiva— que, tomada pelo pânico, fugiu para a Flórida depois de dar calote em metade da cidade. Isso mesmo! Juntou seus pertences após receber uma ação judicial e desapareceu sem deixar rastros. Não me parecia uma má ideia e confesso que só a descartei quando vi que o meu cartão de crédito estava estourado e minha conta bancária estava colorida em tons quentes.
50 tons de vermelho.
Então era isso, meu destino estava dividido entre passar o restante do verão trancafiada dentro de casa até ser despedida ou enfrentar a fera do meu chefe que não parava de me ligar de meia em meia hora.
— Eu vou resolver essa merda de uma vez! Não me espere para jantar— soltei para Ayla.
Levantei do sofá decidida, e fui em direção a porta, apertando a chave do carro entre os dedos.
Eu estava cansada de ser dominada pelo desespero e pelas trapaças mal feitas da Amanda. Cansada de abaixar a cabeça e ser obrigada a aceitar as condições dos outros, sem levar em consideração as minhas vontades. Eu não era mais criança, e independente dos meus atos, eu estava disposta a assumir todas as minhas responsabilidades.
Girei a maçaneta eufórica e impulsionada pela minha coragem quando escutei um burburinho que me fez estremecer até o último fio de cabelo.
Mas eu surtei. Surtei muito e embora eu tenha parecido uma pessoa decidida segundos atrás, percebi que me enganei quando minha coragem murchou gradualmente, feito uma margarida esturricada pelo sol.
Isabela, você é patética Isabela!
Engoli em seco quando vi meu chefe e minha vizinha, se bicando atrás da porta. Marcos me encarou no momento que Sueli cruzou os braços, impaciente, cessando a discussão.
— O que tá fazendo aqui?— perguntei a ele, prendendo o ar.
— Vim buscar o sapato que vocês me roubaram!
Graças ao eco do corredor, a voz irritante da concubina se tornou um megafone, propagando o som para todos os andares daquele prédio. Agora o mundo inteiro sabia que além de inconsequente, eu também era uma ladra. De sapatos.
Marcos girou os olhos para ela, confuso, quando ela estalou a língua, irritada.
— A pergunta não foi pra você, Sueli. Espere a sua vez!— reclamei.
— Precisamos conversar— respondeu ele, baixinho.
Mirei a sua jaqueta de couro amassada tentando desviar os meus olhos culpados para qualquer ponto que não fosse a sua expressão ansiosa e angustiada. Um silêncio ensurdecedor fez morada entre nós quando Sueli decidiu quebrá-lo em mil pedacinhos.
— Se ela não quiser conversar contigo, pode conversar comigo! Eu sou ótima pra escutar os problemas dos outros.
Revirei os olhos.
— Se você fosse ótima, seu nome não começaria com S de safada!
Ela cerrou os olhos em minha direção.
— Você faça-me o favor de não me ofender…
— O problema é você, Sueli, se toca!— gritou Ayla da sala de estar. — Já disse, não vou devolver o sapato enquanto não me pedir perdão... de joelhos! Roubou o namorado da minha amiga, nada mais justo do que eu roubar o teu sapato.
Ignorei as reclamações da minha vizinha e encarei meu chefe, ainda imóvel em minha porta. Marcos ergueu a cabeça, paciente, dividindo sua atenção entre mim e a discussão acalorada entre Sueli e Ayla.
— Achei que eu tivesse sido clara no bilhete…
Eu estava empurrando as palavras contra ele ao mesmo tempo em que engolia o meu orgulho e tentava me manter firme em minhas decisões. Imaginei por um segundo que eu seria forte o suficiente para ignorar todo aquele magnetismo que me puxava para si, mas meu autocontrole estava sucumbindo ali mesmo.
Sueli cruzou os braços e se encostou no batente da porta, sorridente, enquanto observava de camarote o fim do meu relacionamento.
— Gato, não se humilha não. A grama do vizinho é sempre a mais verde, se é que você me entende…tem coisa melhor por aí.
Oferecida do jeito que era, ela enrolou uma mecha de cabelo por entre os dedos e curvou a boca, terrivelmente pintada com aquele batom vermelho.
— Tipo o que? O seu decote?— perguntei. — Toma cuidado Marcos, ela tem um buraco negro no lugar dos peitos, suga até a alma. Cuidado pra não cair de cara neles.
— Inhaaaaaaaa— Ayla pulou do sofá ressoando sua risada estridente quando Marcos fechou os olhos irritado. — Que tiro hein Sueli? Minha pressão até caiu!
— Será que dá pra nos deixar conversar em paz?— vociferou ele, para a nossa vizinha.
Sua voz fez meus ossos tremerem e me levaram de volta à editora, naquelas malditas reuniões, onde a impaciência o comandava. Fiquei feliz por não ser o alvo daquela fúria embora Sueli tenha se mostrado imune à reclamação. Ela endireitou a postura e colocou as mãos nos quadris, pronta para dar o bote.
— Eu cheguei aqui primeiro e eu quero os meus sapatos!
Olhei para ela, imponente.
— Sueli, vaza daqui. Vai ciscar na dona Fátima!
Ela bufou. Nossa vizinha jogou os cabelos para o lado antes de sair rebolando aquela bunda maior do que as minhas dívidas, proferindo xingamentos de baixo nível que nem vale a pena escrever aqui. Marcos observou a cena atentamente, com os olhos cerrados, quando voltou sua atenção para mim, suavizando a expressão.
— Tuuuudo bem, já entendi o recado! Tô sobrando— comentou Ayla, envolvendo a galinha entre os braços. — Vou deixar vocês dois conversarem.
Minha doce e gentil amiga correu para o quarto — tadinha, contra a vontade— e se trancou, me deixando sozinha com quem eu menos queria.
Corre mesmo, Ayla, corre! Corre e me deixa aqui, sozinha de novo com ele!
— Que merda tá acontecendo, Isabela?— perguntou, fechando a porta atrás de si.
Meu coração parecia querer sair pela boca. Recorri rapidamente à minha criatividade na tentativa de arrumar qualquer desculpa plausível só pra não ter que lhe dizer a verdade.
— Não tá acontecendo nada— desviei meus olhos dos seus, impossibilitada de manter qualquer contato visual com aquele homem.
— Você mente tão mal quanto foge de mim.
— Não estou mentindo — revelei. Marcos enfiou as mãos nos bolsos, envergonhado — Só não sinto que é o momento certo para um relacionamento. Não quero misturar as coisas e eu não tenho certeza do que eu sinto por você. Na verdade acho que me enganei. É isso.
Menti.
Eu não movi um músculo sequer e com o rosto virado para ele, consegui fazer daquela a minha mentira mais convincente. E ver a chateação em sua face comprovou que essa sem dúvida, foi a pior de todas. Uma sensação estranha se formou em meu peito quando ele se afastou, com os olhos cerrados em minha direção, jogando toda a sua indiferença contra mim.
— Eu não te entendo. Uma hora você tá colada na minha parede, e na outra diz que não quer nada comigo. Essa sua indecisão me deixa confuso e é muito difícil entender o que você quer quando você faz exatamente o oposto do que você fala!
Ele não deveria ter mencionado a parede. Senti minha voz falhar, quando a avalanche de lembranças e sensações invadiram minha mente me levando de volta ao corredor da sua casa, só para me condenar pelo crime terrível que eu estava cometendo. Mas eu não podia ser sincera. Se Marcos soubesse da verdade, eu não perderia somente ele, mas também a minha carreira. Ao menos essa, eu queria tentar salvar.
Juntei todos os meus caquinhos enquanto me dava conta de que um simples não, não seria capaz de convencê-lo. Eu precisava ser forte, ignorar a angústia em meu peito e jogar ainda mais baixo, colocando o dedo diretamente em sua ferida.
— Foi uma experiência apenas, tá legal?— gritei.— Foi bacana ficar com você e ter meus 5 minutos de fama! Eu estava entediada, machucada por causa do Bruno. Sair nas revistas de fofoca beijando você foi como uma vingança. Foi só isso.
— Fama?— O tom ressentido em sua voz ressoou pelo ambiente quando ele se afastou ainda mais. Seu rosto estava frio, impassível e não demonstrava nada além de decepção. — Céus, você parece um clone da Amanda. Você fala exatamente como ela…
— Me desculpa se as minhas ações não te agradam— interrompi. — Mas é assim que eu sou, goste você ou não. E foi por isso que te pedi pra não me procurar. Podemos por favor virar a página e fingir que isso tudo nunca aconteceu?
Em alguma parte do meu subconsciente eu ainda tinha esperanças de que ele se recusasse a me escutar e lutasse por mim. Era o meu desejo mais sincero, embora eu soubesse que eu estraguei a nossa relação pelos próximos mil anos. Ao contrário da minha ilusão, meu chefe ficou ali, quieto, analisando cada palavra absurda que eu tinha acabado de desferir contra ele. Um sorriso tênue e gélido brincou em seus lábios antes dele girar o seu corpo em meia volta e alcançar a maçaneta.
— Você não tem que me pedir perdão pelas suas vontades e vejo que foi um erro ter vindo até aqui, você tinha razão — Marcos abriu a porta, porém, manteve os pés fixos no chão e os olhos magoados sob mim. — Fico feliz em saber que eu fui útil e espero muito que os seus cinco minutos tenham sido suficientes para fazer ciúmes no teu ex. Posso te garantir que foram mais do que suficientes pra mim! Pra descobrir como você realmente é. Uma pena eu ter perdido tanto tempo apaixonado por uma ilusão, por uma Isabela que nunca existiu. Sejam felizes. — sentenciou, antes de atravessar a porta e sumir na escuridão.
Fiquei estática, com os calcanhares colados no chão da sala, sentindo as lágrimas que eu tanto temia, rolarem pelo meu rosto. Meu peito estava rasgado, o coração ferido e angustiado, tornando aquela situação no mínimo injusta. Passei tanto tempo da minha vida ao lado de um banana, que quando eu finalmente encontrei alguém para fazer pulsar o meu coração, fugi como uma gazela, amedrontada pelas mentiras que eu mesma criei. Marcos nunca entenderia, Amanda tinha razão. Bastava uma palavra para que ele me arrancasse da sua vida e lançasse o meu livro para o espaço e eu não sei bem dizer quando foi que a ideia de me ter longe dele se tornou algo tão cabuloso. Talvez ainda mais dolorido do que perder o emprego. Doía só de imaginar e agora eu estava colocando à prova toda aquela suposição.
A semana seguinte ao término foi terrível. Um verdadeiro pesadelo. Não foi fácil seguir para a editora e não ser notada pelo meu chefe. Ele estava de fato cumprindo com o combinado quando mal me dirigia o olhar e fingia que eu nem existia. Sua indiferença era como uma faca cravada em meu peito que se aprofundava lentamente todas as vezes que eu o encontrava. Depois, as coisas se amenizaram. Não por completo, não dá forma correta, quero dizer. Ele somente seguiu, berrando e botando toda a equipe em um surto coletivo, como se estivéssemos correndo contra o tempo.
É, e estávamos mesmo. E foi graças ao destemperamento do meu chefe mal-humorado que conseguimos finalmente terminar o livro e enviá-lo para a gráfica. Foram as 349 páginas escritas mais importantes da minha carreira e embora minha vida amorosa estivesse sendo atropelada por um caminhão grandão, eu ainda estava feliz pela publicação.
Meu livro. Minhas ideias. E uma pá de sensações indescritíveis nasceram em meu íntimo quando tive o prazer de pegar nas mãos a primeira cópia impressa, na última reunião antes da bienal.
Faltava muito pouco. Um dia e meio apenas e toda aquela ansiedade transformava as horas em dias impedindo que o ponteiro do relógio exercesse sua função.
— Isabela, não se esqueça que quero você no evento— disse Marcos, com os olhos cravados em uma de suas folhas.
Confesso que fiquei decepcionada ao perceber que meu chefe ainda insistia naquela ideia maluca de me levar junto, mesmo depois de rompermos a nossa relação. Mas como a alegria de pobre dura pouco, agora, além de ter que lidar com meus sentimentos em relação a ele, eu tinha que me preocupar em estar em um só lugar sendo duas pessoas diferentes, ao mesmo tempo.
Cai na real mulher, isso nunca vai dar certo.
— É sério que todos precisam ir?— reclamou Armane. — Eu tenho uma partida de tênis esse final de semana, me libera cara!
Marcos apertou os olhos atrás do óculos, e sorriu para o amigo de forma irônica.
— Se quiser continuar recebendo o seu salário, sim Armane, todos precisam ir— Sua voz cortou o ambiente fazendo com que metade da equipe retrucasse, em coro.
Mas ele nem se deu o trabalho de os interromper.
— Carmem, será que dá pra me explicar essa divulgação que você fez?— Ele afundou o queixo em uma das mãos e girou o notebook sob a mesa, derrotado. — Onde estava com a cabeça quando resolveu meter política no meio?
— Foi um pedido do Nelson.
— Dane-se o Nelson. Não é porque a Sheila está de férias que você pode sair fazendo tudo o que te dá na telha! Quero que retire isso das mídias e mude o poster da divulgação…pra ontem. A bienal é daqui a dois dias, não precisamos de um escândalo em cima do lançamento.
— Tudo bem chefinho— assentiu.
Marcos girou a caneta entre os dedos e encarou os papéis em sua mesa. Não pude deixar de notar o cansaço em seus olhos, mascarado por toda aquela pose de durão que ele ainda insistia em usar. Até aquele momento, milhares de telefonemas e emails histéricos foram realizados para contornar todos os problemas relacionados à gráfica. A produção dos livros tinha sido estranhamente interrompida após uma rebelião dos funcionários, e as coisas só entraram nos eixos quando meu chefe resolveu berrar ao telefone. Dois dias depois, recebemos o primeiro exemplar, com erro de impressão. Felizmente os lotes foram corrigidos a tempo do lançamento e agora, nossa única preocupação eram com as vendas. Involuntariamente, fiquei ali, o observando até ver o seu olhar frio cruzar o meu.
— Ayla, sua prima deu sinal de vida?— perguntou, mudando o foco logo em seguida. — Respondeu os emails?
— Ela vai de avião. Mas disse que nos encontra lá— Ayla sorriu animada. — Aproveitando que vamos todos pro mesmo lugar, podíamos ir juntos. Botar o pé na estrada…estreitar os laços…
Carmem gemeu, trocando a água pelo café, logo após ter fechado a tampa do seu notebook.
— Se eu estreitar os laços vou acabar enforcando alguém.
— Ah, qual é Carmelita!— disse Armane. — Vai ser legal!
— Eu tenho uma minivan. Ela é bem velhinha, mas podemos ir nela se quiserem.— Falei.
Marcos gargalhou tão alto que fez meus ouvidos explodirem. Era a primeira vez que vi a sua boca se estender em um sorriso, depois de dias sem me dar bola.
— Afirmo que é mais seguro cruzar o estado em uma bicicletinha do que entrar dentro de qualquer automóvel com a Isabela…
— Ora tenha santa paciência! — interrompi. — Porque você não se oferece pra nos levar então, presidente do Detran?
— Não tô a fim de te deixar sem graça — Seus lábios se curvaram, de forma indecente e irritante, provocando minha imaginação fértil e assassina.
— Pois então fique sabendo que vou reservar um cantinho especial pra você…na roda!
Armane gargalhou, ao mesmo tempo em que vi meu chefe torcer a cara, ofendido.
— Já gostei. Vamos na fiorino da Isabela!
E foi assim que abri mão da minha paz e sossego.
Boa tarde galera, tudo bem? Passando pra agradecer os 5k de leitura, vocês são demais, sério! O capítulo de hoje é bem maior do que este que eu postei, mas fiquei com medo de vocês se cansarem. Então vou dividi-lo em dois e posta-lo em uma outra parte. Comentem o que estão achando e não se esqueçam de votar! Beijão 😘
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