Dose número 18
Foi só um beijo.
— Foi só um beijo! — reclamei.
Ayla parou, com o pote de cereal na mão e apoiou a outra na cintura.
— Tá e você tá falando isso pra me convencer ou pra te convencer?
Eu a observei despejando leite em uma tigela, enquanto tentava manter a minha dignidade. De fato, não dava pra me defender. O perfume do meu chefe ainda estava em minha blusa de frio que eu só não havia tirado porque os 40 graus lá fora me impediram. Claro, um resfriado nesse calor não é bem vindo, assim como a expressão "caso perdido" assinada em minha testa.
Ayla incluiu uma mistura intrigante de doce de leite e nutella em seu lanche da noite, digno de quem havia levado um pé na bunda.
— Pelo menos você beijou alguém, mesmo que de mentirinha.
Ayla e Armane estavam namorando há quase um mês e não demorou muito para que ocorresse a primeira discussão. O temperamento explosivo de Ayla e a calmaria do Armane seguiam em perfeita harmonia, até que o sapato voador apareceu, deixando dona Cecília de olho roxo.
Obviamente a relação terminou, por pura pressão familiar. Embora fosse um cara descolado, Armane era completamente ligado à família e depois de se deixar levar pela opinião da mãe, resolveu dar um tempo no relacionamento. Ayla, orgulhosa do jeito que era, não aceitou e foi logo jogando o término em sua cara. Agora, ambos estavam de cara virada e de quebra minha amiga ganhou um sapato assassino.
— Eu só vou devolver aquele trambolho que ela chama de sapato quando ela me pedir desculpas, de joelhos! — resmungou. — Eu já deveria saber — Ela andou de um lado para o outro com as mãos na cintura, concentrada demais em sua própria fúria. — Ele é de Áries Isabela! Como eu fui ficar encanada tanto tempo em alguém de Áries? É completamente incompatível com meu jeitinho doce!
Eu levantei meus olhos para ela e comprimi os lábios, tentando controlar o meu sorriso.
— Jeitinho doce?
— É! — Ela arregalou os olhos para mim como quem acabou de descobrir a cura do câncer. — Exato! Porque raios eu tenho que gostar tanto daquela boca hein?
— Quer mesmo que eu responda? — perguntei, largando o notebook de lado.
A programação da minha noite era vestir o personagem. Depois da fatídica reunião da editora, tudo o que eu estava fazendo era escrever as infinitas adaptações. Não eram muitas mas confesso que minha mente estava longe demais — mais especificamente na boca de alguém — o que dificultava o processo e tornava o trabalho ainda mais entediante.
— Luiz Albareda disse que é só dar um chá de sumiço que os homens voltam! Quanto tempo será que demora, hein? — Ela engoliu uma colher inteira de doce de leite, do tamanho do seu desespero.
— Quem é Luiz Albareda?
— Um guru do amor que eu achei no instagram. Ai Isabela, me ajuda. Diz pra ele me procurar.
Eu sorri. Ayla era a pessoa mais desencanada que eu já tinha conhecido e vê-la daquele jeito pelo Armane indicava que ela finalmente havia encontrado alguém à sua altura.
— Eu vou tentar, ok? Quer que eu lhe diga mais alguma coisa?
— Diz que eu sou muito perfeita pra ser desperdiçada. Que eu não sou qualquer uma e que eu sou muito linda. Eu quero que ele me peça desculpas!
— Porque você não liga pra ele? Não é mais fácil?
— Não! Não é. É o mesmo que você ligar pro Marcos.
— Não é não.
Eu a encarei com a minha expressão mais intimidadora possível, o que não era muito diferente da de um yorkshire.
— O que sua mãe achou dele?
— Ela se apaixonou, não tanto quanto pelo instrutor, mas foi o suficiente para que ela me deixasse em paz com a história do Bruno. Eu espero que tanto ela quanto ele tenham entendido que eu já enterrei essa história faz tempo.
Ayla concordou enquanto rodeava sua colher na tigela.
— E você vai mesmo mandar a cesta para aquele coroa chato? — perguntou, mudando o assunto da água para o vinho.
— Vou, já encomendei e mandei entregar na manhã de sábado. Tentei comprar uma mais discreta, mais elegante. Acho que ele vai gostar.
Seus olhos pousaram em um ponto fixo da mesinha da sala, mais dispersos do que os meus em dia de reunião. Eu a conhecia o suficiente para saber que ela estava fazendo um esforço enorme para tentar controlar a sua vontade louca de ligar para ele. Mas eu sabia que orgulho não ia resolver o problema.
— Ayla, liga pra ele.
— Amiga, não.
— Liga agora ou deixo de ser sua amiga!
Eu girei meu corpo sob o sofá, tentando manter minha pose de durona e na tentativa de validar minha ameaça, me afastei em direção ao quarto, pisando duro.
Ayla alcançou o celular sob a mesa e discou um número que eu sabia muito bem de quem era, sem vacilar. Eu não queria bisbilhotar, então fechei a porta e tentei me concentrar no meu trabalho.
— Oi Armane, tô te ligando pra você me pedir desculpas!
Sorri.
Funcionou, mesmo que de um jeito torto.
E foi assim que a paz voltou a reinar.
Passei o segundo dia do feriado inteiro vidrada na tela do computador em uma luta constante contra o bloqueio criativo, enquanto minha amiga baladeira aproveitava a companhia do ex — agora nem tanto— namorado.
Eu não me importava em ficar sozinha, juro. Na verdade qualquer coisa era melhor do que vê-la jogada contra o sofá, devorando boa parte do nosso estoque de guloseimas. Então aproveitei o tempo livre pra finalizar todas as correções e enviar o original corrigido para a equipe da editora.
Infelizmente, meu sossego foi arrancado de mim rápido demais quando Ayla chegou naquela noite e decidiu me tirar da toca, me enfiando em um cubículo clandestino. E pior, usufruindo uma outra identidade!
O da Cinderela.
— É hoje que a Cinderela perde as estribeiras! — gargalhou contra a rua deserta, alterada com uma latinha de Skol.
Ayla me arrastou pelo chão enquanto eu dividia minha atenção entre o vestido preto que não parava de subir e a entrada daquele beco escuro que agora parecia tão distante quanto a minha liberdade. Eu estava “vestida para matar” segundo ela, e a decisão de animar a noite de sexta e me jogar no covil dos leões veio minutos após ao convite inusitado do Armane. "Leva a vampirinha também" disse ele, ao telefone, quando convocou metade da equipe para um rolê.
Sinceramente, quem em sã consciência trocaria uma cama quentinha depois de um dia cansativo por um lugar hostil?
Já era. O meu sossego havia se tornado um caso de calamidade pública. Estava frio e o chão molhado me fazia sentir uma prisioneira em um cenário de um filme dos anos 90, sem chance para um agasalho. Eu já sabia que a equipe da editora tinha gostos peculiares quando o assunto era diversão e todas as sextas, eles se reuniam em bares e restaurantes exóticos para comemorar mais uma semana concluída e descarregar o estresse provocado pelo poderoso chefão. Era como uma festa na fogueira. Jogavam gasolina em seu nome e dançavam ao redor, enquanto o imaginavam queimando aquele corpinho esculpido.
Eu só não sabia o quão exótico era.
Eu corri pela rua deserta seguindo minha amiga eufórica e alucinada pelas latinhas de cerveja em sua bolsa e assim que atravessamos o letreiro chamativo, um homem forte e alto nos parou com a mão. Seu olhar era frio como de alguém que havia acabado de cometer um crime e seus músculos marcados deram o ar da graça assim que ele cruzou os braços. Seus olhos correram pelo meu corpo dos pés a cabeça e eu me encolhi atrás daquele vestidinho minúsculo que não cobria meio palmo.
— Ayla querida — sussurrei entre os dentes. — Mas que buraco é esse que você resolveu me trazer?
Ela não respondeu. Um sorriso maroto brotou em seu rosto indicando que a resposta com certeza me faria voltar atrás, então resolvi guardar minha intimidação e seguir o plano. Àquela altura a minha única preocupação era voltar viva para casa e não levar um tiro.
(Eu e minha língua afiada).
— Estamos com o Armane — disse, ao segurança.
O homem de mais de dois metros de altura se afastou, liberando a passagem e me encarou por cima dos olhos como se eu fosse uma formiga minúscula. Assim que eu me aproximei ele me parou com uma das mãos.
A moça não pode entrar.
Ayla retornou à entrada balbuciando um xingamento que eu não consegui escutar.
— Sim, eu posso sim — cruzei os braços na defensiva e ele arregalou o olhar, deixando o branco dos seus olhos ainda mais a mostra.
— Não, não pode!
Eu estava no fundo do poço e não havia nada que pudesse me tirar dele. Tudo bem ser humilhada todos os dias pelo meu chefe. E tudo bem também ter sido trocada por uma vizinha oxigenada, mas ser recusada em um lugar que eu nem queria ir e por um segurança de meia tigela me parecia demais. Era o universo me cobrando por todas as vezes que recusei passar pra frente as correntes de oração que minha tia me mandava no whatsapp.
Barrados no baile 2.0? Só pode ser castigo!
— Espera aí, qual o problema? — perguntou Ayla, impaciente, enquanto batia a sola do sapato contra o chão.
Sua expressão intimidadora e o tamanho 1,58 não foram suficientes para mover aquele monte de músculos da frente daquela porta.
—Menores de idade não são permitidos!
— Mas eu não sou menor de idade! Olha bem pra minha cara e vê se eu aparento ser menor de idade! — reclamei, balançando a peruca rosa.
(Pausa dramática).
— Parece.
AAAAAAHHHHHHH!
Eu distribuí o peso do meu corpo entre as pernas, ciente de que mais cinco minutos em pé seriam suficientes para que aqueles saltos 15 me levassem ao hospital. De fato, não era necessário violência. Eu era uma pessoa pacífica, dona da minha vida e sabia resolver os problemas sem a necessidade de uma discussão acalorada. Então resolvi tomar as rédeas da situação e tentar resolver a situação da forma mais amigável possível.
— Cadê o gerente desse lugar, eu quero falar com ele! E pode ir se despedindo desse emprego, babaca! — Eu cutuquei seu peitoral com um dos dedos, como se fosse o suficiente para perfurar a pele daquele homem.
— Mas você é bem abusada hein!
— Bem vindo ao clube, fico feliz em saber que não sou o único que pensa assim.
Ótimo! Quem foi que chamou o assunto da festa?
Não foi necessário me mover para descobrir que meu chefe estava bem atrás de mim com aquela mesma cara de sempre. Ele era o pior tipo, com aquela confiança descarada estampada no rosto pronto para salvar uma donzela em apuros. Tudo pra chamar atenção.
Eu não era uma donzela.
Eu não queria ser salva.
E se ele não me deixasse em paz, ele que estaria em apuros!
Ele se aproximou, com as mãos nos bolsos e uma expressão divertida no rosto, enquanto ignorava os olhares afoitos de mais duas garotas do outro lado do beco. Fiquei olhando os seus movimentos com uma expressão dúbia quando Ayla se adiantou, desesperada.
— Marcos! Graças a Deus.
— Qual o problema aqui?— perguntou.
— Essa arruaceira. Está querendo entrar no cassino sem permissão.
Ayla, você me trouxe em um cassino? UM CASSINO, AYLA?
Um pequeno sorriso brotou em seus lábios, deixando aquele estilo despojado ainda mais atraente quando seu par de olhos azuis se voltaram para mim.
— É, é a cara dela fazer isso — reclamou, ignorando a minha expressão assassina em sua direção. — Mas pode deixar entrar, conheço ela. É maior de idade.
O segurança me encarou, duvidoso, antes de se dar por vencido e liberar o nosso acesso à Vegas brasileira.
Tudo era luminoso: o teto, as escadas e até mesmo o chão parecia com uma casa estadunidense na época de natal. No ar, o barulho das máquinas e os gritos eufóricos dos jogadores se misturavam às conversas paralelas e às músicas de uma boate barata. Os garçons se misturavam, num constante vaivém levando bebidas pelo salão e se inclinavam em direção aos convidados na tentativa falha de escutá-los em meio ao barulho. Ao fundo, dançarinas com imensas plumas brancas e lantejoulas nos vestidos, se sacudiam ao som da música e atraiam os olhares curiosos de todos que estavam presentes. Haviam chefes de família, damas de companhia e empresários dispersos por todas as partes. As máquinas de caça-níqueis não eram muitas, mas estavam cheias a ponto de formar uma pequena fila para o seu uso. As mesas de blackjack e poker, se misturavam às de sinuca e outros jogos considerados não tão ilegais e só de olhar tive a sensação de perder todo o meu dinheiro, que não passava de 10 reais.
— Agora entendi o motivo do sigilo — comentei com Ayla, enquanto encarava o teto luminoso.
— Ali estão — Apontou ela, para o outro lado do cassino.
Caminhamos em direção à equipe da editora ávida em um jogo de sinuca. Assim que Ayla se aproximou, Armane envolveu sua cintura com uma das mãos e depositou um beijo em sua testa, animado.
— Saca só, esses caras são feras!
Um dos homens ergueu o olhar para ele antes de tragar o cigarro e se concentrar na próxima jogada. 3 bolas, uma a uma, foram direto para as canaletas quando Carmem xingou do outro lado da mesa.
— Assim eu vou perder todo o meu dinheiro! — Ela alcançou o giz e o esfregou na ponta do taco velho. Percebi uma nuvem de preocupação tomar conta do seu olhar ao observar toda a sua poupança do mês indo pro ralo.
Aquele era um ambiente familiar pra mim. Os jogos, a sinuca e a bebida traziam junto o cheirinho da minha infância, onde passei boa parte entretida com as disputas no bar do meu pai. Não era muita coisa, a guarda compartilhada não permitia que eu ficasse lá mais do que um final de semana, mas foi o suficiente para aprender. Com as mãos agarradas na mesa e o olhar fixo na bola, comecei a desenvolver minhas habilidades na sinuca muito antes de atingir a maioridade, e modéstia parte, eu era boa pra caramba. Comecei ganhando uns trocados e no fim, usei todo o dinheiro para ajudar nos custos da moradia estudantil da faculdade.
— Você vai gastar todo o giz do cassino desse jeito! — reclamou Armane, no momento em que vi duas moças gigantes se aproximarem com as bebidas.
E elas não pararam de chegar. Garrafas e mais garrafas brotavam pelo chão e inundavam as mesas sem a nossa permissão.
Eu não queria beber, eu juro. E eu tinha motivos importantes pra evitar esse pandemônio em minha vida. Meu corpo não respondia bem ao álcool e minha mente se tornava um tanto quanto confusa quando eu colocava a substância para dentro. O senhor Pincinconini teria um infarto ao me ver chegando com ressaca logo pela manhã — isso se eu chegar! Beber perto do meu chefe não me parecia uma boa opção — e eu não queria que isso fosse refletido em minha carteira no fim do mês.
MAASS…
O ódio em meu peito começou a se formar assim que vi pela visão periférica, uma das dançarinas se aproximando do Marcos. Ele sorriu para ela, sem graça, no momento que alcancei a primeira taça de martini e comecei a tapar o buraco do meu coração bandido.
Safado!
Cada gole era um grito desesperador da Carmem que estava prestes a perder a própria casa num jogo imbecil de sinuca. Eu estava eufórica, irritada e depois da terceira garrafa, não consegui distinguir o imaginário do real. Não deu pra perceber de fato, quando tudo mudou.
Olhei para os lados, alucinada pelo martini mágico que mascarava os meus sentimentos. As luzes coloridas piscavam mais forte e confundiam meus olhos com tanta informação.
— A bebida quando não te mata, te humilha — soquei a mesa e gritei para Armane, desmaiado nos ombros de Ayla depois de entrarmos em uma conversa profunda e reflexiva — Foi Platão que disse isso.
— Não amiga — gargalhou ela por entre a música. — Foi Aristóteles sua doida!
Todos estavam alterados.
Marcos já nem se importava com seu ódio pela Cinderela quando resolvemos apostar quem terminava a torre de bebidas primeiro. Cruzei as botas sob suas pernas e joguei a cabeça para trás rindo, quando alcancei a vitória antes dele.
— Mas você é uma praga de cabelo rosa mesmo.
— A bebida entra e a verdade sai — sorri. — Quando é que você vai admitir que se rendeu aos meus encantos? Deixa de ser grosso garoto!
— Só nos seus sonhos — sorriu, presunçoso.
Eu era pura felicidade.
Comecei a imaginar como o universo estava conspirando a meu favor, ao ver meu disfarce intacto.
E pela primeira vez, senti que tudo estava bem.
Menos para Carmem.
Essa se jogou aos prantos sob a mesa de sinuca, e embora não tivesse bebido, estava pior do que todos nós, se arrastando pelo vale dos desolados.
— Me deixa pelo menos ficar com dois reais! — implorou, entre soluços, para a chaminé humana em nossa frente — Pro ônibus!
— Vamos neném, passe a grana e tudo ficará bem! Jogo é jogo.
O homem alto jogou o cigarro no chão e o amassou contra o sapato preto.
Lágrimas escorriam pelo seu rosto quando a compaixão me atingiu e então num ato heróico, consegui retirar do meu chefe avarento o cartão de débito da empresa.
— O dobro ou nada! — gritei em alto e bom tom.
Uma explosão de sons se misturaram aos gritos eufóricos e comemorativos da equipe quando senti cinco dedos afundando em meu braço.
— Você ficou maluca?— perguntou Marcos. — Me devolve esse cartão!
Ayla gargalhou histérica, perdida em seus próprios sentidos. Eu balancei o cartão no ar antes de enfiá-lo bem no meio do meu decote, e sorri para sua cara de espanto.
— Vem pegar — sussurrei.
— Cinderela, tem 115 mil reais nesse cartão…do Nelson.
— Que não está nem aí pra gente. Larga de ser mão de vaca Marcos! Não vê que a menina tá deprimida?— gritou Ayla.
Gotas de uma bebida desconhecida caíram sob meu corpo desviando a minha atenção para um grupo de jovens que dançavam sob uma mesa com a garrafa na mão. Aos poucos os gritos se tornaram borrões e a sala, antes estática, parecia dançar no ar. Tudo estava rodando, mas eu ainda tinha uma missão e estava feliz por poder ajudar.
Mesmo se tratando da empata projetos.
Se eu estava feliz e todos estavam felizes, porque ele também não poderia ficar?
Vou te deixar feliz Marcos.
— Eu vou dobrar esse valor e vou dançar com esse prêmio lá no palco! Você vai ver.
Eu me virei em direção a mesa e sorri para os dois homens requintados. Eles tinham sapatos lustrosos, um terno caro e rosto de malandro, uma cópia perfeita da máfia europeia. Por sorte, eu aparentava todas as características de uma golpista: um belo decote e um sorriso encantador. Um dos meliantes me encarou por cima dos óculos em uma expressão divertida e debochada enquanto mastigava o limão de sua bebida.
— Senhores, posso jogar com vocês?— perguntei exibindo o meu sorriso mais cativante.
— Gracinha, acredito que seja melhor você deixar esse jogo para quem entende— respondeu um deles. — Você viu sua amiga, sinuca não é um jogo para mulheres. Volte para casa, de onde não deveria ter saído.
Eu sorri. Fixei meus olhos nos dele e estiquei minha mão ao taco mais próximo, em silêncio. Em seguida, me apoiei sob a mesa deixando o decote ainda mais evidente e forcei uma voz melosa.
— Tenho 115 mil nesse cartão — respondi, rodando-o entre os dedos. — Se vocês ganharem, saímos daqui direto para um banco.
— E se você ganhar?— O amigo cerrou os olhos em minha direção, analisando cada parte do meu corpo.
— Qual é parça? Olha o tipo dela— gargalhou. — Essa daí vai perder na primeira jogada!
Joguei a cabeça para o lado e observei sua reação exagerada. O bigode branco me chamou atenção quando o mesmo acendeu um novo cigarro próximo aos pelos.
— Se eu ganhar, vocês nos devolvem todo o dinheiro da nossa amiga.
Uma linha tênue entre o desejo e a adrenalina se formou em sua testa e permaneceu ali, até não ser capaz de recusar.
— Tudo bem então— respondeu, antes de levar até a boca um palito de dentes já mastigado — Vou ser cavalheiro e ceder a primeira tacada para a dama. Você quer começar?
O tom de escárnio em sua voz revirou meu estômago. Agora era uma questão de honra.
— Guarde seu cavalheirismo quando for me devolver o dinheiro. Pode ser um de vocês.
— Você ficou maluca?— Marcos sussurrou em meu ouvido, tenso, vendo o homem acertar mais do que 6 bolas. — Se a gente perder esse jogo, pode esquecer a sua publicação.
Eu inclinei a cabeça para o lado e sorri como uma garota qualquer. Eu sabia o que eu estava fazendo. Meu histórico era implacável e todo o meu corpo começou a responder positivamente quando escutei Artic Monkeys dando a voz naquela espelunca com a música "Do I wanna know?".
Mastiguei meu chiclete no ritmo do som e andei lentamente pela lateral da mesa esbanjando sensualidade e confiança enquanto mantinha minha atenção fixa na bola de número 5. A adrenalina tomou conta de mim quando me inclinei lentamente e posicionei o taco milimetricamente em direção à esfera.
Assim que bati contra ela, observei-a rodar pela mesa e sorri quando atingi o alvo. Ergui meus olhos para os dois e sorri, em resposta ao menor sinal de desespero em suas expressões.
— Vou perder na primeira jogada, não é?
Eu podia ver meu chefe, pela visão periférica tendo uma morte lenta e dolorosa, com todos aqueles músculos contraídos. Ele me observou dar a volta na mesa e contraiu o maxilar quando me inclinei novamente para acertar mais uma bola.
— Isso garota!— gritou Ayla e Carmem ao mesmo tempo.
Não tiveram chance para uma revanche. Os dois mafiosos paraguaios cruzaram os braços esperando por sua vez, que definitivamente nunca chegaria. Uma a uma, consegui virar o jogo até acertar a última bola que deslizou lentamente pela mesa em direção à vitória.
— Ganhamos! — gritou Marcos, eufórico, me levantando no ar.
Assim que meus pés retornaram ao chão, recolhi o dinheiro sob a mesa e devolvi o cartão para ele, ainda boquiaberto. O som alto e o barulho das mesas vizinhas dificultavam qualquer tipo de comunicação, nos obrigando a manter uma proximidade razoável e perigosa. Tentei bloquear a ideia das suas mãos em minha cintura e da sua boca em minha pele quando ele se aproximou ainda mais e sussurrou para mim.
— Vamos dar o fora daqui
Caminhamos lado a lado, seguidos por Ayla e Carmem que distribuíram o peso do Armane entre si. Carmem estava radiante e o prêmio da sinuca já estava escondido no fundo de sua bolsa, de onde nunca deveria ter saído. E eu me sentia uma heroína, dona da cidade de Las Vegas, sem acreditar no que eu tinha acabado de fazer. Coisas que Isabela nunca faria.
Assim que atravessamos a área dos caça níqueis, senti um par de mãos puxarem as minhas com toda a força, me jogando para trás.
— Já tá saindo, gracinha?— O cheiro forte do cigarro invadiu minhas narinas, me causando um leve incômodo estomacal. — Mas nós ainda nem terminamos de conversar.
Ele me puxou para si, na tentativa de me prender contra seu corpo e ergueu uma das mãos para o alto, revelando a arma até então escondida. O pânico foi geral.
— TODO MUNDO NO CHÃO!— gritou. — Ou vão sair daqui cheios de furinhos.
Os gritos abafados se tornaram ainda mais evidentes quando a música cessou. Ayla apontou seus olhos assustados em minha direção quando comecei a sentir os primeiros sinais da adrenalina em meu corpo. Minhas pernas estavam bambas, minha respiração descompassada e os olhos, escancarados, percorreram o ambiente à procura da única pessoa que não poderia ter me soltado a mão. Mas ele não estava lá. Marcos não estava lá e eu iria morrer num cassino brasileiro clandestino, vestida feito prostituta e nos braços de um homem fedorento. Eu nem mesmo tinha trago meus documentos.
Meu deus, vou ser dada como indigente.
Estávamos presos.
— E aí neném? Gostou da surpresa? Achou que eu ia deixar você levar nossa grana embora?
— Abaixa essa arma, vamos conversar!— respondi, atônita.
— Claro que abaixo gatinha, mas pra isso você vai fazer o que eu mandar, tá bem neném?— meu corpo estava rígido, paralisado e eu mal conseguia me manter em pé — ME RESPONDE PORRA!
— Tá-tá bem.
— O negócio é o seguinte: você vai pedir encarecidamente pra sua amiga ali pra me devolver o dinheiro — Seu hálito quente alcançou meu ouvido quando sua boca se abriu em um meio sorriso. — O MEU DINHEIRO! Se você não quiser que o meu revólver 38 estoure seus miolos. Entendeu amor?
Voltei minha atenção para Carmen no momento em que a vi abrir a bolsa para retirar o pacote. Ainda abaixada, ela se desviou dos outros clientes e lentamente se aproximou de nós, tão assustada quanto eu.
As pessoas em volta observavam cada passo, temendo pela própria vida, em silêncio. Cada minuto a mais era uma lembrança de tudo o que já vivi, como em um filme, e nada me tirava da cabeça o olhar, agora duplamente preocupado, de Ayla.
Quando suas mãos se ergueram em nossa direção, um forte impacto me atingiu, jogando o meu corpo para frente, contra o chão.
Gritos estridentes preencheram o galpão e eu cobri a cabeça com as mãos tentando me proteger.
O homem rolou sob meu corpo quando duas mãos desesperadas tatearam pela minha pele, me puxando para fora de cena. Ayla me apertou contra si, num abraço desesperado, e então vi meu chefe debruçado sobre o homem em uma luta constante pela posse da arma.
Marcos desferiu dois socos em seu rosto fazendo com que a arma em uma das mãos, se soltasse. Rapidamente ele chutou o revólver para longe antes de acertar novamente o punho cerrado contra seu corpo, mas dessa vez no estômago, impossibilitando o oponente. Um grito de dor alcançou meus ouvidos quando vi Marcos se levantar e correr em nossa direção.
— Vamos embora!— gritou, me puxando pelas mãos.
Rapidamente um grupo de seguranças se aproximaram e ergueram o homem machucado.
Vê-lo sangrando no chão, depois da expressão perturbadora do meu chefe, era a cereja do bolo para o meu fim de noite. Algo assustador que eu não conseguiria esquecer pelas próximas semanas.
Ayla e Carmen seguraram Armane e o carregaram para fora do prédio. Nunca imaginei que ficaria feliz ao ver aquele beco escuro novamente. E dessa vez eu nem pude reclamar do vento frio.
— Céus, você é um ímã para encrencas — reclamou meu chefe, atraindo minha atenção. Sua respiração ofegante se acalmou, embora ainda estivesse descompassada. — Me lembre de nunca mais sair com você.
Seus olhos cruzaram os meus por alguns instantes antes daquela energia estranha nos envolver. Foi difícil fingir que estava tudo bem e não demonstrar que eu me importava. Aquela vontade louca de pular em seus braços e enterrar minha boca na sua, que eu teoricamente não deveria sentir. Mas o sentimento estava ali, pulsando em meu peito e vibrando em cada centímetro da minha pele.
Eu observei seu rosto marcado de sangue e em seguida abaixei os olhos para as mãos, destruídas. Marcos uniu as sobrancelhas, confuso, antes de me puxar para um abraço apertado. E foi ali, no calor dos seus braços, que me senti a pessoa mais segura do mundo.
Olá bebês, mais um capítulo pra vocês. Peço perdão pelo tamanho, acho que exagerei, mas não queria dividi-lo. Espero de coração que estejam gostando e agradeço por todas as mensagens que vocês tem me mandado. Isso incentiva demaaaais!!! Obrigada, um beijo e um cheeeiro ❤️
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