Dose número 15
Eu equilibrei os copos de café na mão e empurrei a porta da entrada principal do prédio. Era só mais uma manhã como todas as outras: cafés, recados, chefe enfurecido e uma mãe louca gritando no telefone. A recepção do edifício parecia uma estação de metrô com todo aquele tumulto e algazarra. Amplo e arejado, o térreo possuía cadeiras confortáveis e plantas decorativas dispostas por todo o lado, cenário perfeito para proporcionar um descanso aos funcionários. O piso era tão branco que eu poderia facilmente me enxergar no chão e retocar a maquiagem.
Haviam dois elevadores e embora um sempre estivesse com defeito, ninguém com amor à própria vida, se sacrificava nos 30 mil lances de escada para chegar no trabalho. Era minimamente impossível e a sensação era igualzinha a de se estar subindo as pirâmides de Gizé. Por isso, e por ter que compartilhar o cubículo com os empregados de mais 9 empresas, diariamente costumávamos chegar atrasados na editora. Obviamente meu chefe nada simpático, distribuía reclamações grátis, sempre direcionadas a mim.
Como se eu tivesse culpa pelo elevador quebrado!
Se o elevador quebrou, era culpa minha.
Se o café estava quente demais, era culpa minha.
Se Israel e Palestina estavam em guerra, também era a minha culpa.
O meu único consolo naquele momento era saber que amanhã eu teria o dia de folga. Eu estava preparada para passar o feriadão jogada em um canto do meu quarto, escrevendo todas as ideias que surgiam em minha mente e comendo todas as besteiras que o meu salário podia pagar. Mas antes eu precisava descer ao inferno e liquidar meus pecados.
Cinderela foi convocada para uma nova reunião, dessa vez na presença de toda a equipe, para discutir o enredo do livro. Felizmente a minha ausência seria facilmente justificada por uma intoxicação alimentar provocada pelo frango de padaria, agravada logo após o almoço. Era a justificativa perfeita para encerrar qualquer reticências que meu chefe maluco pudesse ter.
Eu me aproximei da recepção e abri um largo sorriso para o único homem que ainda não me decepcionou.
— Bom dia Seu Paulo, tem alguma encomenda pra Contágio?— perguntei, me apoiando sob o balcão enquanto tentava espiar o nosso escaninho.
Seu Paulo era uma pessoa incrível e por mais que eu tentasse resumir, não conseguiria descrevê-lo em uma linha. Ele tinha 1,60 de altura, 64 anos e um sorriso acolhedor que só de olhar, transformava o meu dia em flores. Seu coração era gigante, feito ao de um avô, e não se contentava em me ver triste. Me dava os melhores conselhos e elogios só pra me ver feliz.
— Bom dia minha filha, na verdade tem sim, mas é pra você! — Suas mãos dispuseram uma cesta gigantesca sob o balcão e eu me afastei, dando lugar àquele amontoado de objetos. — Alguém está querendo o seu perdão.
— Quem mandou? Não tem cartão?
— Não tô vendo. O que eu faço com ela? Deixo aqui por enquanto ou você vai levar pra editora?
O urso marrom exibia um sorriso desconcertante. Rodeado por chocolates e rosas vermelhas que apontavam para todas as direções, trazia entre as patas um pequeno coração escrito me perdoe.
— Deixa eu ver quem mandou — respondi, rompendo o laço rosa.
Eu abaixei o embrulho transparente, muito irritante por sinal, e comecei uma busca incansável pelo cartão, que só fui achar perdido no fundo da cesta. O pequeno papel branco, não tinha remetente, mas eu pude identificar o destinatário assim que comecei a ler.
Rosas são vermelhas, violetas são azuis. Me perdoa coração, em nome de Jesus.
B.
Mas o que significa isso?
Eu soquei aquele maldito cartão dentro do envelope, amassando-o ainda mais a cada tentativa.
Que culpa tinha eu se fabricaram um envelope minúsculo para um cartão do tamanho da cara de pau do meu ex?
— Filha, tá tudo bem?— Seu Paulo uniu as sobrancelhas em resposta ao meu ataque de fúria.
— Tá sim — sorri. — Me faz um favor seu Paulo? Tá vendo aquela rua ali?— Eu coloquei a mão no quadril e apontei para fora do prédio. —Pega essa cestinha bonitinha e dá pra primeira pessoa que passar. Diz que é um presente do Nelson. Tá bom?
Eu juntei minha bolsa, esquecida sob o balcão, e cruzei metade do hall de entrada antes de decidir dar meia volta para pegar os chocolates. Pelo menos os chocolates.
É evidente que meu ex namorado fanfarrão não me deixaria em paz, principalmente depois daquela matéria cabeluda dizer que eu estava em um relacionamento com o meu chefe. Relacionamento não, amante.
Um homem totalmente desprovido de empatia e humor com uma princesa feito eu.
Nunca li tamanho absurdo.
Eu estava tão do avesso que cruzei aquele prédio como um furacão, xingando qualquer pessoa que me dirigisse a palavra. Definitivamente era um péssimo dia pra me pedir perdão.
Felizmente, minha ansiedade acabou me trazendo à editora meia hora antes do expediente começar, tempo suficiente para que eu pudesse sufocar o meu desconforto e conseguir treinar um sorriso para qualquer um que me pedisse um café.
Eu me arrastei para fora do elevador, a passos lentos, em silêncio, quando percebi os olhares do meu rival na minha direção. Marcos atravessou a editora e se aproximou no mesmo momento que descartei com desdenho duas barras de chocolate sob a mesa de Ayla.
— Tá tudo bem por aqui? — Ele enfiou as mãos nos bolsos e me encarou sob os óculos, preocupado.
Ok, ele ficava muito charmoso com aqueles óculos quadrados, mas bastava as lembranças da noite anterior invadirem a minha memória que a minha vontade louca de beijar aquela boca passava.
— Sim — respondi. — Não se preocupe, eu estou bem.
Eu me arrastei para atrás da minha mesa esperando que ele voltasse para sua sala, mas ele ficou ali, com os pés colados no chão me encarando. Garoto propaganda do super bonder.
— Precisa de mais alguma coisa?
Ele suspirou e fechou os olhos como se estivesse com dor.
— Na verdade eu preciso de um favor. Eu prometi que levaria o meu sobrinho no parque de diversões e aproveitando o feriado de amanhã, gostaria que você aceitasse o meu convite...nosso convite. Você gostaria de ir comi...nosco?
Depois de ontem?
Not em inglês.
Nein em alemão.
Hayir em turco.
E finalmente em português...
— Não— respondi. — Não vou mais a lugar nenhum com você. E além disso sou só uma secretária, não faço hora extra!
Marcos precisava entender que eu era difícil. Que não bastava simplesmente me pedir desculpas e me olhar com aqueles olhos de cachorro que caiu da mudança pra que eu me derramasse aos seus pés.
Foi minha culpa ter alterado a voz. Foi minha culpa ter fugido dele como um gato assustado, achando que seria o suficiente para sufocar os meus sentimentos. Mas foi ele que começou com todo aquele silêncio sobre o beijo. Na verdade, o silêncio entre nós começou assim que pisei naquela editora, e só agora eu me dei conta disso.
— Eu sei Isabela! Eu sei — Ele levou as mãos ao cabelo bagunçando-o ainda mais quando o encarei irritada — Eu não estaria te pedindo isso se não fosse necessário. É que ele não para de falar em você e se você não for…
— Marcos, ele é só uma criança! — reclamei. — Não acho que essa nossa relação seja saudável, você pode dar uma desculpa. E eu já tenho planos importantes para amanhã que não podem ser desmarcados.
Marcos arqueou uma das sobrancelhas curioso e eu continuei a encará-lo para tornar a minha mentira mais convincente.
— Duvido que tenha — murmurou. Ele se aproximou avaliando a minha expressão enquanto mantinha os olhos fixos em mim — Eu aposto o seu salário do mês que vai passar o dia em casa escutando a sua amiga falando do ex-namorado.
Infeliz.
— Sugiro que aposte algo mais valioso do que o meu salário. O valor não dá nem pra comprar uma tequila barata.
Um pequeno sorriso se instalou no canto de sua boca como se estivesse se divertindo com aquela situação. O que serviu para me deixar ainda mais irritada. Talvez eu não devesse ter citado a tequila, ou talvez eu simplesmente devesse ter dito não. Mas a sua insistência era estarrecedora. Talvez até demais para quem teve um desafeto na noite anterior. Eu não sei quanto tempo levei para entender a real situação e o motivo que o levou a estar ali, mas eu esperava que fosse somente uma ideia maluca da minha cabeça.
— Eu não acredito… você disse que estamos juntos?
Ele enfiou as mãos nos bolsos envergonhado.
— Eu não disse, ele viu nossa foto no jornal e eu não consegui convencê-lo do contrário — suspirou. — Acredite, é tão difícil pra ele quanto é pra mim entender você — Eu balancei a cabeça na defensiva tentando me controlar. — E então? Prometo que será rápido e você também está em dívida comigo. Se hoje eu tenho uma sogra, foi graças a você.
Eu abri a boca incomodada com a cobrança repentina mas o máximo que eu consegui foi gaguejar. Então fiquei ali, imaginando se meu chefe teria um estoque de óleo peroba em casa, o skincare perfeito pra sua cara de pau.
Era humilhante pensar em como cheguei naquele nível. Como se não bastasse ser humilhada no emprego, com todas aquelas malcriações e funções que ninguém dava a mínima, agora, eu estava me rendendo às suas chantagens. Por pura obrigação! (vamos deixar claro isso aqui).
Eu não estava em condições de argumentar, então acabei decidindo virar o jogo.
— Tá bom, eu vou se a minha mãe for.
Ele apertou os olhos para mim, incrédulo.
— Ela ainda acha que estamos juntos e sua ideia é bem melhor do que um jantar. Não quero ser obrigada a fingir duas vezes que gosto de você.
— Isso significa que não estava fingindo quando me beijou? — sorriu, no que presumi ser a sua expressão mais debochada. Marcos se apoiou no balcão exalando convencimento quando revirei os olhos sob a sua tentativa de me colocar contra a parede.
— Você está fugindo do assunto!
Um pequeno brilho se instalou em seu olhar e ele se afastou.
— Ok, pego vocês as 7, tudo bem? E se puder demonstrar paixão, eu agradeço.
Eu ergui o olhar para ele e deixei cair o véu da empatia. Foi muito fácil fixar os olhos bem no meio da sua testa e imaginar um tapa, bem ali, entre aqueles fios de cabelo rebeldes.
— Tá brincando comigo, né?
— Prometo um aumento, um que dê para comprar mais do que uma dose de tequila — Ele piscou aqueles olhos para mim, de uma forma que ele sabia que era o suficiente para me irritar.
— Agora eu tenho a absoluta certeza que não te conheci antes porque Deus teve pena de mim — esbravejei e ele sorriu, exibindo aquelas malditas covinhas traiçoeiras — Seja como for, que seja rápido e eu já vou avisando que não vou na montanha russa, não gosto de altura!
— Certo — suspirou, cansado. — Vou deixar você trabalhar.
Ah claro, estou atoladíssima com o trabalho. Muitos recados e sabores de café pra escolher!
Marcos se distanciou e eu não pude deixar de notar a sensação estranha no estômago. Eu odiava toda aquela chantagem e odiava ter que dividir o meu tempo com ele fora da editora, mas eu sabia que seria um alívio reverter o problema que eu mesma criei com a minha mãe. Depois da morte do meu avô, dona Lúcia se tornou moderna o suficiente para topar qualquer compromisso que tivesse um pouco de adrenalina e eu tinha certeza que ela não iria recusar. Eu apoiava, claro, desde de que me deixasse de fora. Eu digitei uma mensagem de texto para ela e esperei a confirmação que não demorou mais do que dois minutos:
“Pode confirmar, mal vejo a hora filhota”
Nem eu, mãe! Nem eu!
Valha-me nossa senhora!
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