(Equalize) Blyudo
Um conto do universo de "Dias Vermelhos"
CAPÍTULO ÚNICO
Escrito por Érika Batista
Eu entreabri o saco de papel e contemplei as baguinhas pretas se saracoteando para cá e para lá ao balanço do bonde. Senti meus lábios se curvarem num sorriso. Com que então eu conseguira feijão preto! A preço de ouro, sim, mas ainda me restavam rublos da Torgsin e eu não tinha mesmo no que gastá-los. Aquela loja continha literalmente de tudo! Não tenho certeza se eles não me arranjariam até um rim, desde que eu pagasse em dólar.
O bonde parou nas proximidades do apartamento de Natalia Petrovna e eu saltei. O vento outonal me saudou com intensidade e, ao ajeitar a capa para melhor me proteger, eu quase derrubei o material precioso. Consegui fechar o saco a tempo de impedir que os feijões se espalhassem na lama e terminei o percurso numa corridinha até a entrada do prédio da revolucionária, aproveitando para aquecer o sangue.
– Está aberta – veio a voz da russa, quando bati na porta.
Natalia Petrovna estava lendo um jornal no divã, e meramente ergueu os olhos, curvando a cabeça para espiar o vestíbulo, quando eu entrei.
– Olá, Maria – ela cumprimentou, com um sorriso enfeitando seu rosto fino. – Já está na cozinha – informou, antecipando-se à minha pergunta sobre o paradeiro de Pasha. – Pode ir de sapato mesmo – adicionou, com um gesto, ao notar que eu me atrapalhava toda para tirar as botas sem largar o saco de feijão.
Agradeci e cruzei a sala na ponta dos pés, tentando sujar o mínimo possível o tapete. Bati na porta da cozinha também, mas o rádio soava alto lá dentro, e adivinhei que Pasha não devia ter nem me ouvido, então entrei por conta própria.
A cozinha de Natalia Petrovna era razoavelmente espaçosa, harmonizando com os outros cômodos do apartamento. Compunha um quadro quase monocromático, em vários tons que variavam de um bege alaranjado ao marrom, destacando-se como exceção o piso cor de vinho. Uma pequena mesa retangular com duas cadeiras de madeira crua se apoiava contra a parede dos fundos. Acima dela estavam pendurados um relógio redondo e um pequeno retrato de Lenin, bem mais modesto que os quadros em tamanho quase natural dos líderes comunistas, que ficavam na sala de estar. Em frente à porta havia um armário alto de mantimentos ou louças. Ele era aberto no meio, formando uma pequena bancada, e uma terceira cadeira o defrontava, enviesada. A quarta parede suportava um fogão a gás, com forno a lenha acoplado, e a pia ampla, cuja parte inferior era ocupada por outro armário, e sobre a qual pendiam alguns ganchos com panelas e outros utensílios.
Localizei Pavel junto à pia. Estava totalmente absorto em sua atividade e, como eu imaginara, nem me notou entrar. Cantarolava sem abrir a boca, acompanhando o rádio, enquanto cortava algo, o corpo alto e esguio levemente curvado para frente. Ocasionalmente erguia a cabeça do trabalho e prestava atenção na música, fazendo até um gesto com a mão, como se estudasse os sons, antes de pegar a faca mais uma vez.
Mantive silêncio e aproveitei a distração dele para observá-lo com liberdade, demorando o olhar nos antebraços nus, nos cabelos claros desalinhados. Os suspensórios ele tinha removido dos ombros, para não atrapalharem sua movimentação, e pendiam ao lado das pernas. Enquanto eu cogitava se não iria assustá-lo caso circundasse sua cintura por trás, ele olhou para o lado da porta e me avistou.
– Privet, Masha – cumprimentou, com meu sorriso favorito.
Pavel secou as mãos no pano que tinha sobre o ombro, e se adiantou primeiro para o rádio, para baixar o volume, aproximando-se de mim em seguida. Pousou-me um beijo na testa, aproveitando para remover minha boina, e perguntou, com um olhar para o saco de papel que eu ainda abraçava:
– O que você tem aí?
– O feijão preto – respondi, entregando o pacote a ele.
– Então você achou mesmo! – Pavel exclamou, admirado, inspecionando o produto antes de largá-lo na mesa.
– Te falei que tem de tudo naquela loja.
– Que bom. Eu duvidava; estava até pensando em que outro prato poderíamos fazer com aquilo – disse, apontando para a pia, que continha uma caçarola e uma tábua de madeira, sobre a qual descansavam alguns miúdos de porco. – Talvez assar, embora não sejam os pedaços mais suculentos...
– Desperdiçados não seriam – respondi. – Mas se acalme que teremos nossa feijoada hoje.
Fiz menção de tirar o sobretudo, e Pavel se postou atrás de mim para auxiliar. Suas mãos deslizaram por meus ombros e pelos braços, levando junto o tecido de lã grossa, e deixando um formigamento por onde passavam. Um suspiro pesado roçou meu pescoço antes de ele aparecer na minha frente, com o casaco dobrado sobre o braço. Falou para eu remover as botas também, que ele ia levar tudo para o vestíbulo, e eu atendi.
– Espere, não fique descalça – disse, tirando as chinelas caseiras que usava e empurrando-as na minha direção. – Não faz bem para a saúde pisar nesse chão frio. Já volto com algo mais apropriado.
Enquanto ele estava ausente, me aproximei da mesa de madeira, onde o rádio cantarolava suas canções da moda para o alho, a cebola e alguns maços de tempero verde. Acenei em aprovação; aparentemente os temperos estavam todos ali, mesmo os que eu tivera que descrever, por desconhecer os nomes deles em russo.
Desde que eu contara a ele sobre o prato nacional, Pavel vinha insistindo comigo que queria prová-lo, e apesar de eu achar que seria impossível preparar uma feijoada lá, por ausência de condições materiais, acabei cedendo e fornecendo-lhe a lista de ingredientes no dia anterior. "Se você conseguir todos eles, eu faço", prometi. No fim das contas, me empolguei com a ideia também e disse que eu mesma compraria o feijão, que era o único componente que ele não sabia onde podia arranjar. "Mas é um preparo demorado", avisei. Pavel garantiu que adiantaria alguns passos, para não gastarmos nosso pouco tempo juntos todo naquilo; e, pelo jeito, ele tinha cumprido sua palavra, porque os temperos estavam todos cortados e separados em pratinhos.
– Tome.
Sobressaltei-me ligeiramente. Pavel já tinha voltado e colocara diante dos meus pés um par de pantufas da tia dele. Eu troquei de calçado e, em seguida, pedi uma panela para colocar o feijão.
– Agora ele vai ficar de molho por uma hora – avisei, enquanto lavava o alimento na pia – antes que a gente possa juntar com o resto.
– Tudo isso? – Pavel se espantou.
– Sim, é necessário, se não fica duro, intragável – respondi, com uma careta ao evocar o gosto de feijão mal cozido. – Isso aí também tem que ferver bem, por três vezes – e eu indiquei com o queixo a carne que ele terminava de cortar.
– Se eu soubesse, teria acordado mais cedo – ele resmungou.
– O senhor estava dormindo?! – examinando-o com atenção, notei a cara de sono. Ela e o sorriso culpado com que ele respondeu à minha exclamação o deixavam ainda mais fofo.
"Pelo amor de Deus, Maria, para com isso, nem eu te aguento mais", minha consciência se pronunciou, entediada.
– É que eu acordei bem cedo hoje de manhã e andei a cidade inteira atrás da sua lista – ele se justificou. – Cheguei cansado e não vi mal em tirar uma sonequinha – admitiu.
Fiz uma falsa cara de censura e ele apenas riu.
– Já sei, já sei, não é o comportamento do komsomolets ideal.
Foi minha vez de rir. O komsomolets ideal era um mito ao qual eu já havia renunciado no meu último ano na União Soviética. A pessoa mais parecida com ele que eu encontrara fora Astrakhanov, e ainda assim com falhas. Para que me apegar a uma idealização, se o que eu tinha diante de mim era tão mais vivo e encantador?
– Eu não estou nem aí para o komsomolets ideal – respondi.
Juro que ele teria me tomado nos braços após essa declaração, se a caçarola já não os ocupasse. Uma pena. Panela depositada no fogão e fervendo, o rapaz olhou em volta.
– Acho que tudo o que era possível adiantar está encaminhado – comentou, alcançando a mesa em um passo e verificando os temperos. – Agora só nos resta esperar. Alguma ideia de como gastar o tempo livre? – perguntou, mordendo o lábio inferior, com um falso ar de inocência. Apenas cruzei os braços e estreitei os olhos, com a cabeça inclinada. Pavel deu uma gargalhada e me puxou para si.
Eu nunca me cansaria do gosto dele.
Por mais que dessa vez houvesse um elemento estranho e vagamente familiar misturado ali.
– Como foi seu dia hoje? – eu perguntei, baixinho, quando nos separamos.
– Nada demais – Pavel respondeu, distraído, desembaraçando com os dedos os meus cabelos sempre bagunçados. – Basicamente isso que eu já te disse. Acordei cedo, passei o dia andando pela cidade, e depois dormi um pouco.
Uma das únicas desvantagens da convivência diária era que não dava tempo de acumular novidades para contar, e na hora de engatar uma boa conversa, isso atrapalhava. Quando eu ainda pensava em como continuar o assunto, meu interlocutor adicionou:
– Sonhei com você.
– Mesmo? O quê?
– Não lembro – ele disse, desviando o olhar dos meus olhos para a minha orelha e avermelhando levemente. Agora que eu reparava, ele já estava um pouco mais rosado que o normal. – Mas era uma coisa boa. E o seu dia, como foi?
– Bem normal, também. Assisti aula o dia inteiro, e depois fui à Torgsin.
– Aula de quê? Se não for segredo – acrescentou, rapidamente.
– Não – decidi, após meditar um segundo. – Materialismo histórico-dialético de manhã, e depois Teoria Marxista, à tarde.
– Você devia ter vindo para cá, em vez de ir para a aula. Isso até eu poderia te ensinar – Pavel brincou, depositando um beijo no meu maxilar. – Proletários de todos os países, uni-vos! Nada tendes a perder, a não ser as vossas cadeias – ele parafraseou junto ao meu ouvido, num cômico sussurro sedutor. Eu ri, apesar do arrepio e o encarei.
– O Manifesto Comunista, sério? Muito básico. Vai ter que melhorar o nível do conteúdo, se quiser substituir meus professores – desafiei.
– Quer algo mais avançado? Hm, podíamos estudar as várias formas em que os proletários de diferentes países podem se unir, o que acha? – ele perguntou, e, antes que eu tivesse tempo entender para onde rumava a conversa, senti as mãos que estavam em minha cintura subirem um pouco, levando com elas o tecido do meu suéter e da blusa, e voltarem ao local original, pousando sobre a pele nua.
Meus olhos se arregalaram.
– Pavel! – exclamei, confusa, e ouvi um "sh" baixinho em resposta. Que atrevimento era aquele?! Metade de mim queria empurrar as mãos dele; a outra metade estava muito distraída com os beijos que ele distribuía por meu pescoço.
Cada dia eu descobria uma faceta nova desse meu namorado; a de hoje era bem inesperada e... intensa. De onde saíram aqueles... galanteios, por assim dizer? E...
O pensamento foi interrompido; meu cérebro estava mais interessado em dar comandos para as mãos e para os lábios. E para a pele das costas, que descobrira cinco novos modos de se arrepiar, conforme Pavel a percorria com as palmas das mãos.
Por sorte, assim como minha capacidade de raciocínio, nós não demoramos a ser interrompidos.
– Queridos, eu vou descer para a reuni... oh!
Nos separamos de um salto, ajeitando a roupa, o cabelo, desviando o olhar para lados alternados, tentando ocultar a vermelhidão dos rostos. Natalia Petrovna manteve seu próprio olhar na panela, esperando pacientemente que nos recompuséssemos. Não era a primeira vez que ela se deparava com uma cena do tipo naquela semana, embora das outras vezes estivéssemos mais contidos.
Pavel tossiu.
– Pois não, tia? – murmurou, solícito.
– Eu dizia que vou descer para a reunião do coletivo do prédio. Não sei se voltarei a tempo de comer com vocês, porque hoje temos alguns assuntos polêmicos para decidir, como a punição de um camarada que chegou bêbado ao serviço pela terceira vez – ela disse. Eu ainda não estava com coragem de levantar os olhos para a senhora alta e elegante, a fim de verificar a expressão em seu rosto, mas pela nota divertida na voz, ela devia estar segurando o riso. – Queria pedir para guardarem um pouco dessa comida exótica para mim.
– Ah, sim, certamente. Pode deixar, tia. Boa sorte na reunião.
Ela suspirou.
– Sorte não, me deseje paciência! – disse. – Bem, vou indo. Juízo, vocês dois! Divirtam-se – recomendou, com um sorriso esperto para o nosso lado, antes de sair e fechar a porta.
Os cacos do clima arruinado pairavam ainda no ar, circundando-nos; eu e Pavel mal podíamos nos entreolhar.
– Então, nós...
– O que agora...
– Talvez...
– Acho que já está na hora de trocar a água – eu disse, apontando para a panela que continha as carnes, ao notar que o líquido borbulhante começara a transbordar em pequenas porções. Pavel agarrou a oportunidade e foi cuidar de sua tarefa prática. – Você comprou arroz? – perguntei.
No afã dos carinhos trocados, acabara esquecendo minhas outras encomendas; afinal, não dava para comer feijoada pura, e os acompanhamentos não iam se preparar sozinhos.
Pavel acenou positivamente, e largou a panela sobre a pia um instante, dirigindo-se ao balcão do armário. De uma sacola ali pousada, ele retirou um pacote, que me entregou, antes de voltar para a pia. Eu abri e corri meus dedos pelos grãos brancos, satisfeita.
– O homem que me vendeu estranhou – ele contou. – Disse que eu era a primeira pessoa sem origem chinesa que comprava arroz com ele esse mês.
– Nossa – eu ri. – Mas faz sentido. Não lembro de ter comido arroz nenhuma vez na... na escola – completei, recolhendo a sigla ELI da ponta da minha língua no último segundo.
– Você almoça sempre lá? – Pavel perguntou.
– Quase sempre.
– É como um internato, então?
– Sim. Posso usar essa panela aqui? – questionei, apontando para uma das que pendiam dos ganchos, mais com intenção de mudar de assunto do que qualquer outra coisa.
– Claro.
Pavel devolveu as carnes ao fogo e ficou me olhando lavar o arroz, de braços cruzados.
– A couve e as laranjas, você conseguiu?
Ele acenou positivamente. Parece que teríamos uma feijoada completa! Quem diria. Faltava farofa, é verdade, mas eu também não precisava abusar.
– Pode preparar o suco? – pedi.
O rapaz logo começou a se mover pela cozinha atrás dos utensílios necessários. Deixou o maço de couve ao meu lado, e se foi com peneira e jarra e meia dúzia de laranjas para a mesa. Afastou os temperos para abrir espaço e aumentou o som do rádio, ao perceber que a voz de um violino se destacava em meio à estática. Partita nº 3 em E maior, de Bach, anunciou o locutor, ao retornar com o programa.
Pasha baixou o volume de novo.
– Você gosta de música clássica? – eu perguntei, olhando para ele por sobre o ombro. Um sorriso leve surgiu em seu rosto.
– Eu gosto de música – resumiu.
– Eu sei – disse, um pouco desconcertada pela resposta. Deixei o arroz de molho e passei a lavar as folhas de couve, antes de tentar me explicar. – Perguntei porque achei que, bem, quem gosta de jazz geralmente tem um estilo mais moderno, e muitos acabam rejeitando coisas antigas... como Bach.
– Clássico não é meu estilo favorito, realmente – Pavel admitiu, – mas gênios são gênios, e se deve admirá-los. Além disso, as peças são quase sempre complexas, ótimas para estudar.
– Entendo... – murmurei, incerta. – Você estuda muito?
– Teoria, sempre que tenho chance. Mas sempre que escuto música eu estou estudando, de certa forma. Prestando atenção em como os sons progridem e se harmonizam, nos intervalos, nos silêncios, e nas sensações que eles produzem.
– Parece complexo.
– Nem tanto. No fim das contas o processo criativo é em grande parte instintivo.
– Ah, eu tinha esquecido que você compõe – exclamei, virando-me para ele, interessada.
– Compor é uma palavra forte. Eu rabisco alguma coisa.
– Muito bem. O que está rabiscando atualmente? – perguntei, sorrindo. Pasha voltou a atenção para a jarra, e continuou a espremer as laranjas, como se não tivesse me ouvido. O rubor em sua face, no entanto, denunciava que ele tinha. – Certo... – arrastei a palavra, ao ver que o silêncio se prolongava. – A curiosidade me consome mais do que nunca agora, mas vou respeitar o seu segredo, assim como você respeita os meus – declarei, voltando a retalhar a couve.
– Não é segredo – a voz de Pavel soou, alguns minutos depois, ligeiramente contrariada. – Era só... surpresa.
– Surpresa? – e eu o encarei mais uma vez, intrigada.
– É uma melodia sobre você.
Minha boca se abriu em formato de "o" e eu deixei a faca cair, por pouco não decepando um dos meus dedões. Pavel se adiantou e juntou o talher, lavando-o antes de me devolver.
– Fico lisonjeada, mas... – murmurei – eu gosto de Olhos Negros.
– Eu também, e ela diz muito a seu respeito – ele concordou, tomando meu rosto nas mãos e tocando de leve minhas pálpebras com os polegares – mas também diz sobre muitas outras mulheres... não para mim, claro, mas para milhares de homens do povo, porque é uma canção que pertence ao povo – disse. – Eu quero uma que seja só nossa. Só sua.
– Pavel...
– Há muito mais em você, e a cada dia eu conheço algo novo. Quero te traduzir em música, não em letra, em notas e acordes, porque essa é a minha linguagem.
– Pavel...
– Oi?
– Seus dedos estão cheios de suco de laranja – eu exclamei, livrando meu rosto das mãos dele e correndo a lavar os olhos.
– Ai, perdão!
Houve um momento de atrapalhação, ele tentando me ajudar ao mesmo tempo em que vertia pedidos de desculpas. Tive que estapear as mãos dele – que ainda estavam encharcadas de suco de laranja, no fim das contas – para que me deixasse cuidar do meu próprio socorro. No fim, a ardência se foi e uma vermelhidão sobrou como única sequela do pequeno acidente.
– Você pode chamar sua nova música de Olhos Vermelhos – brinquei.
Pavel riu nervosamente, e murmurou mais umas desculpas.
– Apenas termine o suco – eu respondi – e lave as mãos.
Ele aumentou o volume do rádio, e nos concentramos nas respectivas tarefas. Refoguei a couve, coloquei o feijão para cozinhar e peguei um pouco da cebola cortada antecipadamente para preparar o arroz. Após terminar o suco, Pavel trocou a água das carnes uma última vez, e se retirou para perto da mesa, acudindo somente quando eu lhe pedia que me alcançasse alguma coisa. Afinal, já tinha entendido que muito ajuda quem não atrapalha.
Por fim, a música acabou, dando lugar a um programa de notícias, e Pasha desligou o rádio. O silêncio que reinou na cozinha pedia para ser preenchido. No entanto, eu, que geralmente iniciava nossas conversas, estava muito ocupada tentando cuidar de três pratos ao mesmo tempo e não arruinar nenhum, coisa que há muito não fazia. Assim, tocou a Pavel puxar assunto.
– Masha, como você pensa que será o futuro?
– O futuro? – perguntei, despejando água quente na panela de arroz e abafando-a. – Como assim, amanhã, mês que vem?
– Mais distante. O futuro da humanidade. Os anos dois mil, por exemplo.
Pensei por um instante, enquanto remexia a couve.
– Hm... sei lá. Espero que o homem seja livre e feliz – resumi. – E justo, não dá para ser feliz sem justiça – acrescentei, mais para mim.
– Não, não foi isso que eu quis dizer – Pavel descartou, pulando de pé, entre impaciente e empolgado. – O aspecto moral é um problema mais complexo. Estava falando de coisas... científicas. Tecnológicas.
– Como carros voadores? O homem indo ao espaço? Fissão do átomo?
– Isso!
Eu ri. O entusiasmo dele era quase ingênuo e tão genuíno, que eu dei trela só para ouvi-lo falar e falar, como ele raramente fazia. Pavel não era uma pessoa de longos discursos; por carta se estendia mais, mas pessoalmente precisava ser constantemente provocado para emitir suas opiniões sobre a maioria dos assuntos. Aquele, porém, o interessava sobremaneira.
Observei-o andar pela cozinha tagarelando sobre esteiras que substituiriam as calçadas, inteligência artificial, colônias em marte, dispositivos que as pessoas atrelariam à cabeça para aprender sem esforço, e outras baboseiras tiradas diretamente dos livros de ficção científica e das revistas de ciência ou pseudociência que devorava. Confesso que aquela voz naturalmente suave me fascinava muito mais do que todos os progressos sobre os quais ela especulava.
– Quantas inovações – eu comentei, quando ele se calou, parecendo finalmente ter esgotado o assunto. Por ora, ao menos. – Não sei eu me acostumaria com tudo isso.
– Ah, mas nada irá acontecer de hoje para amanhã. Talvez algumas previsões se realizem ao longo da nossa vida, outras só depois, e outras nunca. Mas tudo será bem lento, dará tempo de se adaptar.
– Bem, o que me preocupa é justamente essa adaptação. O que essas mudanças farão com a cabeça dos seres humanos.
– Elas incharão.
– Quê?
– As cabeças. Alguns cientistas acreditam que os homens do futuro serão mais cabeçudos, de tanto conhecimento que vão acumular em seus cérebros – Pavel explicou. Estava apoiado entre o armário alto e a bancada além do fogão, de braços e calcanhares cruzados, e seu tom levemente irônico me impediu de saber se ele estava falando sério ou não.
Eu sacudi minha própria cabeça, tonta com aquelas teorias malucas, e verifiquei, feliz, que já era hora de misturar as carnes e o feijão, o que me daria uma ótima justificativa para não responder.
– Pasha, pode me ajudar aqui?
Transportamos para a mesa os pratos prontos – isto é, o arroz e a couve – e trouxemos os temperos. Pavel separou as carnes em uma travessa, e eu preparei a caçarola para receber a feijoada, fritando cebola e alho na manteiga. Refoguei o feijão e fui adicionando as carnes, linguiça, e as ervas, auxiliada por Pavel, a quem eu explicava cada passo.
– Pronto – declarei, por fim, me afastando do fogão e batendo as mãos uma na outra. Pavel se aproximou e me abraçou por trás, apoiando o queixo em meu ombro. – Missão cumprida, moço. Aqui está sua feijoada. Agora é só esperar apurar.
– Obrigado. Falta muito? – ele perguntou, alçando minha mão direita e a beijando, o que me deixou um pouco constrangida, porque a mão estava cheirando a cebola, mas ele não teceu comentário a respeito.
– Um tantinho.
– Estou orgulhoso de você – e o próximo beijo foi na minha bochecha.
– Também estou orgulhosa de mim – admiti. – E de você. Você ajudou.
– Eu quase te deixei cega – Pavel retorquiu, enfaticamente.
– Minúcias... – eu ri, contemplando os pratos sobre a mesa. – Um jantar completo, até com suco – aprovei. – Só faltava uma sobremesa para complementar. E eu bem que gostaria de um docinho... – suspirei.
– Ah, mas eu não ia deixar faltar logo isso, não é? – Pavel revelou, com um sorriso misterioso, soltando uma mão do abraço e alçando-a para a bancada do armário. Da sacola aparentemente vazia que ali descansava ele tirou um objeto retangular. – Para você – disse, entregando-me um pequeno embrulho retangular em papel azul claro com o desenho alguns ursos subindo numa árvore.
"Ursinho Desajeitado", lia-se na embalagem, abaixo da ilustração. E no canto, o nome da fábrica: Outubro Vermelho, de Moscou.
Chocolate!
Escutei minha própria voz emitir uma exclamação extasiada, e girei nos calcanhares, equilibrando-me na ponta dos pés para selar os lábios de Pavel com força, num agradecimento.
– Pasha! Não precisava! – eu disse, me sentindo um pouco culpada. Se somássemos tudo o que ele gastara com aquele jantar, em especial considerando os ingredientes mais raros, decerto daria metade do seu salário. Esperava sinceramente que ele tivesse ganhado algum tipo de adicional de férias, porque não queria ser responsável por sua ruína financeira.
Pavel fez uma careta.
– Tolice! Claro que precisava. Você devia ver sua cara agora – ele riu. – Vamos, prove, o que está esperando?
Quando ele terminou a frase, eu já estava abrindo o pacote. Quebrei um quadradinho de chocolate e o larguei sobre a língua, deixando-o derreter. Um gemido baixo escapou-me dos lábios quando o sabor doce inundou minha boca.
– Malavilhoso – eu balbuciei, e Pavel riu novamente. – Como sabia que eu ia sentir falta de um doce?
Ele encolheu os ombros.
– Palpite – pausa. Após um momento, acrescentou: – Você é uma formiga, Masha.
Foi minha vez de rir.
– E não é que você me conhece direitinho?
Quebrei outra parcela do doce e ofereci a Pavel, mas ele abanou a cabeça.
– Não quero – disse. – É seu.
Insisti, tentando introduzir a força o pedaço de chocolate na boca dele, mas ele manteve os lábios firmemente cerrados, sacudindo a cabeça para se livrar da minha perseguição bem intencionada. Por fim, prendi o pedaço de chocolate entre os meus dentes da frente.
– Assim eu quero – o rapaz deu o braço a torcer.
Ele me manteve no alto após o beijo. Seus braços me sustinham com firmeza, de modo que meus dedos dos pés não precisavam suportar todo o peso do corpo naquela posição que, normalmente, seria incômoda. Meu maxilar, apoiado em seu ombro, ainda se movia, esmigalhando um terceiro pedaço da iguaria que eu detinha na mão direita e contemplava, distraída.
Ao cabo de alguns momentos de silêncio, relanceei os olhos para o relógio, percebendo que já era bem tarde.
– Receio que não fique pronto a tempo de eu comer com vocês – eu disse, com um muxoxo chateado na direção da caçarola.
– Por quê?
– Na escola tem... um toque de recolher.
– Mas hoje é véspera do dia livre, eles certamente não se importam se você demorar – Pavel falou, afastando-se um pouco para me olhar no rosto, suas sobrancelhas levemente franzidas. – Qualquer coisa você pode dormir aqui – ofereceu, então. Como eu erguesse as sobrancelhas, ele rapidamente se deu conta do que havia dito e tentou consertar, soltando-me e recuando um passo. – Eu não quis dizer comigo... necessariamente – adicionou, após um instante.
– Ah!
Um pequeno sorriso se escondia em sua barba, apesar do rubor subindo pelas bochechas.
– Mas se quiser também pode; eu saberia te respeitar. Quero dizer, já fizemos isso antes...
Ele certamente se referia ao dia em que adormecêramos olhando as estrelas em Leningrado. De fato, apesar de todo o sem jeito da situação, soubéramos administrá-la bem. Mas o contexto era outro. Não havia certeza de afeto, nem gosto de lábios, nem textura de pele clamando por mãos curiosas. Se tentássemos repetir a façanha, certamente o final seria diferente. E, por mais que eu o desejasse, ainda não me sentia pronta para aquele nível de intimidade.
– Melhor não. A última vez que eu violei o toque de recolher, recebi uma punição exemplar – comentei, apoiando-me na parede mais distante, ao lado da porta, enquanto Pavel voltava a atenção para a panela, cujo cheiro começara a levantar.
– E quando foi isso? – ele perguntou, provando o caldo, e fazendo uma careta aprovadora logo após.
– Ah, faz quase um ano. Lembra da festa do dia da revolução? Pois então.
– Desculpe por isso. Ainda me corrói o remorso quando lembro que te deixei voltar sozinha. E se algo te acontecesse no caminho?
Eu afastei o pedido de desculpas dele com um aceno.
– Eu é que devia ter voltado mais cedo. Tudo culpa daquela maldita vodca. Nunca mais quero ver aquele líquido na minha frente.
Pavel ergueu a cabeça subitamente da panela, e olhou para mim em parte com ar divertido, em parte cara de criança culpada. Seus olhos relancearam muito rapidamente para o chão ao lado do armário alto. Ele deu um passo naquela direção, e iniciou um assunto novo que eu nem ouvi. Estendi o braço e o afastei, seguindo a mesma direção do seu recente olhar furtivo. Nem precisava ter feito isso: o gosto familiar que sentira mais cedo, a suave vermelhidão no rosto dele e até sua desenvoltura pouco usual denunciavam que certamente eu encontraria naquele canto uma garrafa de vodca com algumas doses faltando.
Voilá.
Me admirava não tê-la notado antes.
Voltando a meu lugar original, cruzei os braços e estreitei os olhos para ele.
– ...dane-se o komsomolets ideal? – ele tentou, repetindo minhas palavras de mais cedo.
Como eu permanecesse séria, Pavel apoiou os punhos no fogão, curvou-se para frente, e deu um profundo suspiro derrotado.
Então se virou para mim. Engolindo em seco, ele disse:
– Eu decidi que não deixaria minhas limitações me afastarem de você, mesmo que para isso eu tivesse que apelar para... reforços externos.
Ele gesticulou vagamente em direção à garrafa. Seu tom era claro e sincero, mas também era seguro, de maneira que eu jamais pudesse confundir aquela explicação com um pedido de desculpas.
– Meus muros altos já nos roubaram tempo demais.
Permaneci calada, roubada do dom da fala. Pavel, interpretando meu silêncio como permanência da zanga, esforçou-se por cuspir ainda um par de frases.
– Quero que você tenha de mim o quanto desejar... e o máximo que eu puder oferecer.
Seu rosto estava completamente vermelho, agora, e ele parecia quase fisicamente cansado. Os olhos cinzentos, no entanto, não se desviaram dos meus por um segundo, como garantes da justeza daquelas afirmações. E que a vodca lhe dava coragem, eu não podia negar. Uma dose daquela bebida precedera nossa primeira dança. Das duas vezes em que tive maiores esperanças, no mês que passei em Leningrado, que algum sinal de afeto pincelou nossa convivência, ele também tinha bebido.
Mas agora, estava na hora de abrir mão daquele remédio. Outro melhor viera substituí-lo.
Quando Pavel já parecia incomodado pela minha pasma quietude e acabava de desviar os olhos para o rádio sobre a mesa, eu dei um passo adiante e envolvi o rosto dele com as mãos, virando-o para mim.
– Meu querido...
O tom afetuoso com que essas palavras me escaparam dos lábios atraiu as orbes cinzentas de volta para as minhas. Meus polegares traçavam suavemente o contorno dos lábios dele.
– Você não precisa mais disso. Deve te bastar a certeza...
Eu diria mesmo aquela frase? Eram palavras tão pesadas, quando carregadas de verdade.
– ...a certeza de que eu te amo.
A luz que iluminou o rosto dele ao me escutar me encheu de mais alegria que qualquer dos beijos trocados naquela noite. Ele rapidamente me puxou, pousando a destra em minhas costas, enquanto a mão esquerda mergulhava avidamente em meus cabelos.
– Eu também te amo, Maria – Pavel murmurou, apoiando o rosto no topo da minha cabeça e me aconchegando a seu peito. – Eu te amo tanto.
A intensidade daquela última palavra pedia um instante de meditação, para que fosse assimilada, e permanecemos quietos.
– Há muitas coisas que eu descobri em mim mesmo nesse tempo que nos conhecemos, e que eu não fazia ideia que estavam lá – ele comentou, após um momento, soando realmente impressionado.
Ah, eu conhecia a sensação, como conhecia.
– Talvez nossas almas tenham quebrado algumas comportas, enquanto buscavam o caminho para se conectar – eu palpitei.
Ele me afastou e examinou meu rosto com um sorriso incrédulo e divertido.
– Que coisa mais mística – brincou, repetindo minha acusação de tempos atrás.
Revirei os olhos, com um muxoxo.
– É a convivência – acusei. Pavel apenas riu.
– Você sabe que bem lá no fundo nós somos iguais – retorquiu, suave.
– Não estrague o momento – resmunguei, enroscando meus braços no tronco estreito.
– Estragar? Jamais. Pretendo melhorá-lo – e, com dois dedos, ele contornou a lateral do meu rosto, curvando-se em minha direção... mas saltando para trás logo em seguida, com um – Ai!
Só entendi o que tinha acontecido quando ele girou no lugar, os dentes trincados de dor, tentando enxergar as próprias costas por sobre o ombro. Pequenas manchas de cor marrom manchavam-lhe a traseira da camisa. Ele estivera perto demais do fogo e tinha sido fustigado por alguns respingos da feijoada, que agora borbulhava intensamente. Catei a colher de pau e me aproximei do prato, com cuidado para não ser também atingida. Verifiquei a densidade do caldo, provei, e aprovei o resultado.
Para uma feijoada gringa, até que estava bem decente.
Desliguei o fogo.
– Acho que já podemos co...
Minhas palavras morreram na garganta quando eu me virei para Pavel.
– Ah, me desculpe! Eu já coloco de volta. Só tirei porque se ficasse colado na minha pele, capaz de me queimar mais ainda. Assim que secar eu visto de novo.
– Sem problemas...
Chocolate, comidas com gosto de casa, um "eu te amo" ao pé do ouvido, e a visão daqueles ombros angulosos e sardentos que sempre me provocavam sensações inusitadas.
Eu não teria outro jantar como aquele tão cedo.
Melhor aproveitar.
***
TRADUÇÕES E NOTAS EXPLICATIVAS
1. Blyudo (título) – prato (comida).
2. Borsch (na sinopse) – prato típico russo, de origem ucraniana, consistente numa densa sopa de beterraba, que eles consomem com bastante frequência, como o nosso feijão com arroz.
3. Privet, Masha – Oi, Masha
4. Masha é o apelido russo para Maria, o nome da protagonista e narradora (Maria Clara).
5. Pasha é o apelido russo para Pavel.
6. Torgsin – abreviatura de "Torgovlia s inostrantsami" (comércio com estrangeiros). Era o nome de uma rede de lojas existente na União Soviética na década de 1930 que vendia produtos locais e importados, e que as pessoas pagavam com uma moeda própria daquela loja (rublos da Torgsin), que podia ser obtida em troca de ouro ou moedas estrangeiras. Essas lojas serviram como uma forma de o governo soviético fazer as pessoas entregarem ouro ou moeda estrangeira que tinham em casa, e assim conseguirem dinheiro para investir no crescimento, industrialização e modernização do país.
7. Komsomolets – Rapaz pertencente à Juventude Comunista (Komsomol) na União Soviética. O feminino é "komsomolka". A propaganda do governo da União Soviética dizia que o "komsomolets ideal" não bebia, nem fumava, não se metia em encrencas e desordens, era trabalhador, bom estudante, ajudava as velhinhas a atravessar a rua, etc., quase um escoteiro crescido.
***
RECADO DA AUTORA:
Olá leitores e leitoras, e especialmente olá @Skyliine_ Skyliine_ :)
Primeiramente, quero agradecer a vocês por lerem "Blyudo", e à Aretha pela oportunidade de participar nesta divertida e eclética coletânea.
Espero que vocês tenham passado uma meia horinha agradável lento este conto. Ele não seguiu trecho por trecho de "Equalize", mas eu ocultei várias passagens da letra nas falas dos personagens. Você conseguiu encontrar?
Equalize tem tudo a ver com #Marvel, que, para quem não sabe, é nome do ship formado pela Maria e o Pavel de "Dias Vermelhos", o casal que protagoniza este conto. A música reflete muitos elementos do relacionamento deles, que não é tão explorado no livro principal, por ter que dividir espaço com outros assuntos, isto é, os estudos da Maria para ser revolucionária.
Se a Maria e o Pavel te conquistaram nessas poucas horas que você os assistiu fazerem uma feijoada, se você gostou da minha escrita, pode gostar também de fazer uma visitinha a eles em "Dias Vermelhos" e conhecer mais sobre o contexto dos dois, e de diversos outros personagens que – espero – igualmente te cativarão.
Além de Dias Vermelhos, tenho muitas outras obras no perfil, a maioria delas completa, de contos a romances épicos, e seria um prazer te ver por lá.
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Érika, muito obrigada pelo conto! Estou curiosa para conhecer mais desta história incrível. E se você gostou também, basta segui-la aqui no Wattpad: erikasbat.
Abraços, Aretha.
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