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Capítulo 3: Mistérios de Dover

"De quem é o olhar
que espreita por meus olhos?"

— Fernando Pessoa


A cidade vista pela luz do dia era completamente diferente, as cores, os aromas, o movimento, tudo era mil vezes mais intenso. Charles parou a carruagem perto da praça principal e me olhou por um momento — Estarei de volta até as cinco, me encontre neste mesmo lugar tudo bem? — assenti com a cabeça, observando um sorriso tímido surgir em seus lábios.
— Tudo bem — concordei — o armarinho é para aquele lado, não é?
— Sim, é bem em frente a mercearia, não tem como errar — Charles ajeitou o seu grande casaco e se despediu com um breve aceno de cabeça, andando na direção oposta da que eu deveria ir.
Não sabia o que havia dado nele, nem do porquê da sua súbita mudança de comportamento, talvez tivesse preocupações demais em sua cabeça ou percebeu que estava atrasado para a reunião, acho que nunca saberia ao certo.
Me dirigi até o armarinho, havia bastante gente na rua apesar da chuva. Barulhos para todos os lados, obviamente não tanto quanto havia em Londres, mas podia-se ouvir conversas, sons dos cascos dos cavalos batendo em ritmo e até sinos das portas das lojas que se abriam. Algumas pessoas ajudavam a arrumar os estragos causados pelo temporal, tirando galhos de árvores do meio da rua e alguns vidros quebrados que se espalhavam pelo chão. Me sentia uma estranha em um lugar onde todos se conheciam, como se eu fosse uma intrusa em seu mundo.
Atravessei a rua e empurrei a porta pesada de madeira para entrar no armarinho. — Boa tarde — cumprimentei o senhor que se encontrava atrás de um balcão. — vim buscar a encomenda da Senhora Grace.
— Oh, bom dia — falou com um tom parecendo surpreso pela minha presença — vou dar uma olhadinha lá atrás, fique a vontade.
Permaneci em pé no mesmo lugar me sentindo sem jeito, o lugar tinha um cheiro estranho, uma mistura de mofo e frutas secas que fazia meu estômago embrulhar. Ouvi alguém pigarrear e só então notei que não estava sozinha, uma mulher muito bem vestida se encontrava em um canto próximo à uma parede repleta de amostras de tecidos e botões de todas as cores possíveis. — Quer dizer que senhorita é a famosa Helene White? — a mulher tirou seu chapéu fino para poder me analisar melhor e meu corpo se encolheu de imediado.
— Perdoe-me, mas nós nos conhecemos? — questionei, como que ela podia saber meu nome?
— Não querida, mas veja bem, esta é uma cidade pequena qualquer coisa que aconteça por aqui se espalha rapidamente entende? — perguntou abrindo um sorriso presunçoso. O senhor ainda não havia voltado com a encomenda de Grace e eu rezava para que ele chegasse logo, algo dentro daquela loja estava me sufocando, roubando o ar de meus pulmões, mas talvez fosse só o cheiro enjoativo. Ou o olhar severo daquela mulher sobre mim. — Falaram que está se adaptando bem, isso é bom sabe? — ela continuou, mesmo que eu não a respondesse — Fazer amigos e aliados nesta cidade é sempre bom. Nunca se sabe quando as máscaras das pessoas irão cair.
Abri um sorriso tímido, ela estava querendo me intimidar? Ou quem sabe me dar alguma espécie de aviso, de qualquer maneira resolvi ignorar. Não se passou mais do que alguns segundos até que o senhor aparecesse novamente. — Aqui está os tecidos para a Sra. Grace — entregou um pacote bem embrulhado em minha mão e sorriu de forma amigável, paguei com a quantia que Grace havia me dado e saí voada pela porta.
Precisava de ar fresco o mais rápido possível, parei assim que cheguei até a calçada e respirei fundo algumas vezes, estava tudo bem. Ainda me restavam umas boas duas horas até que chegasse o horário combinado com Charles e resolvi ir até a praça dar uma volta para esfriar a cabeça.

O dia estava agradável e o tempo parecia estar passando rápido conforme conhecia mais o centro da cidade, sentei em um banco a beira do lago na praça principal e aproveitei alguns raios de sol que haviam saído de trás das nuvens e refletiam na água cristalina a minha frente. Uma brisa passou por entre as árvores e bagunçou as mechas soltas do meu cabelo, me obrigando a segurar meu chapéu. Naquele momento me senti agradecida por estar ali naquela cidade, por tudo estar caminhando para acabar mais ou menos bem. Mais ou menos bem para mim bastava,quem sabe não demorasse para que eu não me sentisse mais como uma intrusa,  mas eu ainda não sabia o que estava por vir.
Uma sombra se mexeu em algum lugar perto de mim, de início pensei ser apenas coisa da minha cabeça, olhei primeiramente para a esquerda, haviam alguns arbustos e mais distante pessoas caminhando calmamente. Devia estar ficando louca, pensei. Olhei então para a direita, um conjunto de árvores tampava a minha visão, mas algo dentro de mim formigava e me fazia sentir como se estivesse sendo vigiada.
Me levantei rapidamente ao notar que já deviam ser cinco horas de tarde, andei em direção ao portão de ferro pesado da praça olhando em todas as direções, quando acabei esbarrando com alguém e caí direto no chão. — Me desculpe! — falei eufórica, fechando os olhos por alguns segundos para tentar me recompor, e assim que os abri novamente notei algo estranho, não havia ninguém ali. Pelo menos não a minha volta.
Me levantei devagar, apoiando as mãos no chão de terra batida para manter o equilíbrio, alisei a saia do meu vestido e endireitei meu cabelo, colocando o chapéu de Isabelle de volta na posição certa. — A Senhorita está bem? — escutei alguém perguntar e me virei para ver os olhos de uma Senhora bondosa me encarando.
— Sim, muito obrigada, acho que fiquei um pouco tonta.
— Tome cuidado por aqui, a cidade é calma mas nem todos são bons. — franzi a sobrancelha, sem entender exatamente onde ela gostaria de chegar. Parecia que todos haviam decidido me dar avisos misteriosos em forma de enigmas, não seria muito mais fácil simplesmente me falar o que havia de tão esquisito?
— Sim, certamente, já me alertaram disso — abri um sorriso forçado e a senhora se afastou, continuando a fazer seu caminho normalmente. A acompanhei com os olhos até que saísse pelos portões da praça e dei um passo a frente, foi quando notei uma sombra atrás de uma árvore ao longe. Pisquei os olhos com força algumas vezes para ver se não era coisa da minha imaginação, mas a sombra continuava ali, imóvel atrás das árvores. O sol estava se pondo, me informando que estava atrasada para meu encontro com Charles, mas a minha curiosidade só aumentava.
Andei calmamente até as árvores que haviam por perto da entrada, sem tirar os olhos da sombra, que ainda se encontrava parada no mesmo lugar. Não escutava mais nada, ali só havia eu, as árvores e a forma escura escondida nos arbustos. Estiquei a mão quando estava perto o suficiente para afastar os galhos e ouvi algo se movimentando com rapidez entre as folhas. Uma mão tocou meu ombro me fazendo tremer da cabeça aos pés e soltar um grito apavorado.
— Me solte! — gritei, sentindo meu coração acelerar.
— Calma Srta. White, sou eu, Charles. — Me virei rapidamente em sua direção, sentindo algumas lágrimas descerem espontaneamente pelo meu rosto — Está tudo bem? O que estava fazendo?
— Sim, eu... — hesitei — acho que vi um passarinho preso entre os galhos, estava indo ajudá-lo.
— Ah sim, parece que ele conseguiu se soltar, não estou vendo nada. — Charles se aproximou, fitando com mais atenção as árvores a nossa frente. — podemos ir? — Concordei, enquanto nos aproximávamos da carruagem.
Eu não estava ficando louca, eu havia visto, tinha certeza. Antes de Charles chegar, eu havia encarado a mata bem o suficiente para ver dois pares de olhos escuros me encarando de volta. Não estava ficando louca, não estava. Repeti para mim mesma mentalmente o caminho todo de volta.

Passei o resto do dia quieta. Entreguei a encomenda para Grace e fui fazer o restante do meu trabalho. Não sabia se devia contar a alguém sobre o que haviam me dito, ou sobre o que eu havia visto. Nem se iriam acreditar na minha palavra, mas estava disposta a entender tudo o que estava acontecendo por trás daquilo tudo.
Terminei de colocar o ultimo prato no armário e pedi licença a Sra. Grace para me retirar para dormir. Estava muito cansada, sentia meus ossos doerem e meus músculos gritarem a cada movimento que fazia, precisava urgente de uma boa noite de sono.
A noite estava quieta, uma brisa noturna bateu contra meu rosto e observei o céu estrelado sobre minha cabeça, as nuvens foram embora. Enquanto caminhava até a casa dos funcionários dei uma ultima olhada para a residência dos Taylor e notei uma luz fraca vindo do quarto de Charles, continuei fitando a janela na esperança de poder vê-lo, porém o que me apareceu foi Charlotte. Pude jurar que ela olhou em minha direção antes de fechar as cortinas, mas talvez estivesse olhando as árvores, as estrelas ou quem sabe alguma outra sombra.
Não me levem a mal, Charles era somente uma companhia boa, um raio de sol em um dia de chuva se é que posso fazer essa analogia. Alguém que me fazia sorrir, o que era bem raro ultimamente. Esperava poder manter sua amizade, mesmo que tudo tivesse ficado estranho entre nós de repente.
Tirei os sapatos assim que cheguei ao quarto, Isabelle se encontrava deitada com a coberta até o pescoço e virada para a parede. Achei que estivesse dormindo então troquei de roupa em silêncio, sentindo o frio bater contra minha pele que me fez entrar debaixo das cobertas o mais rápido possível. Fechei os olhos e rezei em silêncio, como fazia todas as noites. Pedi proteção para minhas irmãs, mesmo que estivessem longe, e que Deus guiasse meu caminho.
— Muito trabalho hoje? — escutei Isabelle perguntar — Estou te achando muito quieta.
— Achei que estivesse dormindo. — falei, tentando mudar de assunto.
— Não me enrole Helene, o que aconteceu? — se virou na cama, ficando deitada de lado na minha direção me fitando com aqueles grandes olhos azuis.
— Bem, nada demais — comecei — conheci uma doida na cidade que ficou me dizendo para fazer aliados porque as pessoas são falsas por aqui, claramente alguém que parece estar em uma crise pessoal. — Isabelle gargalhou, o que me fez abrir um sorriso.
— Realmente, me parece uma pessoa bem esquisita, mas por que isso te incomodou tanto?
— Não sei, de verdade — parei alguns segundos para pensar se devia ou não comentar sobre o que havia visto na praça, estava começando a fazer uma amiga em Dover, não queria estragar tudo a fazendo me achar maluca. — Não foi só isso, o temporal ficou forte no meio do caminho e Charles resolveu parar um pouco para esperarmos a chuva melhorar, estávamos conversando sabe?
— Então você e o famoso Sr. Charles tiveram um tempo para conversar? — ela me encarou com um sorriso divertido nos lábios e um olhar acusador.
— Pare com isso! — comecei a rir — Nós só estávamos conversando e então ele mudou de repente, fechou a cara e começou a ser todo formal comigo. O que eu entendo que deveria ser o normal, mas só estávamos nos divertindo, não há nada de errado nisso, certo?
— É complicado, você sabe, não é? — assenti com a cabeça — Existem todas essas regras que nós supostamente devemos seguir e não podemos ultrapassar nem sequer um centímetro a linha, mas fica na nossa cabeça a pergunta, e se nos atrevermos?
— Vamos ser condenadas a forca, ou quem sabe nos enfiem em um hospício o resto da vida.
— Helene! — começamos a rir, apesar de não haver nada de engraçado naquilo, era a verdade. — Quer saber o que eu acho? Acho que Charles não se importa com as regras, mas é esperto o suficiente para saber seu lugar e as consequências de seus atos.
— Faz sentido — bocejei. — acho que estou cansada.
— Vamos dormir, temos muito o que fazer amanhã também, boa noite Helene.
— Boa noite Isabelle.

— Hoje teremos um grande evento — Grace começou, falando para todos que estavam na cozinha — O baile de máscaras da família Taylor acontece uma vez por ano no segundo sábado de Novembro. Tudo deve ocorrer perfeitamente bem, sem erros, sem desculpas, acredito que todos farão seus trabalhos perfeitamente.
Todos a minha volta sorriram empolgados, parecia ser o tipo de comemoração que contagiava. Imediatamente assim que Grace acabou de falar todos andaram de um lado para o outro para cumprir suas tarefas até a noite. A festa iria acontecer no salão de eventos, que era uma grande sala com sofás e mesas para todos os lados no andar principal. Haviam arranjos de flores chegando, candelabros com grandes velas nos cantos da sala e tecidos enfeitando as mesas sob um lustre enorme bem no centro do salão. Terminei de colocar os centros de mesa nos lugares e fiquei olhando em volta maravilhada, a cada minuto que passava, cada rosa a mais colocada no salão, ficava mais bonito. — Já arrumou sua máscara Srta. White? — escutei uma voz divertida falar ao meu ouvido, quando vi que se tratava de Charles meu coração acelerou imediatamente, já podia sentir até minhas bochechas corarem.
— Vejo que o Senhor está de bom humor hoje. — brinquei, abrindo um sorriso.
— Sim, bem, é difícil não estar, eu adoro festas. — ele segurava uma máscara dourada e preta que cobriria seus olhos e seu nariz, combinaria com qualquer coisa que usasse.
— Gostei da máscara.
— Charlotte que escolheu para mim, na verdade queria algo mais impactante, assustador quem sabe — ele riu — é uma oportunidade, uma vez por ano posso usar uma máscara maluca sem que me julguem.
— Oras, e por que não usa? Se eu pudesse escolher usaria uma bem doida também. — ele abriu um sorriso e deu de ombros, como quem diz que não é como se tivesse muita escolha. Ele abriu a boca para começar a dizer algo quando ambos escutamos barulhos de salto alto, nos informando que não estávamos mais sozinhos.
— Mas você não pode, na verdade não pode nem estar aqui a toa, tem muito trabalho a ser feito antes que os convidados cheguem. — Me virei para ver Charlotte vindo em nossa direção usando um vestido vermelho com rendas nas mangas que a deixava deslumbrante. Me irritei comigo mesma por admitir. — A máscara que escolhi para Charles foi confeccionada em Londres por um dos estilistas mais famosos que existe, não é como se a senhorita fosse entender.
— Charlotte, não há necessidade para... — o interrompi, já havia sido humilhada o suficiente para permanecer naquela sala.
— Está tudo bem Charles, me desculpem realmente tenho trabalho a fazer.

Isabelle estava na cozinha cortando cenouras distraída quando cheguei, peguei a faca de sua mão e comecei a cortar no seu lugar. — Ei está maluca? — falou, enquanto eu terminava de picar as cenouras em várias rodelas pequenas, precisava de algo para fazer, algo para me ocupar e não me deixasse pensar no que havia acabado de acontecer. — Helene, o que aconteceu? — não conseguia falar, continuei picando as cenouras loucamente enquanto tentava fazer as lágrimas que formavam em meus olhos sumirem.
— Nada — falei, enquanto sentia a primeira lágrima cair.
— Tudo bem — ela disse, tirando a faca de minha mão e me arrastando para dentro da despensa, fechou a porta e ficamos sozinhas no meio das prateleiras de farinha, arroz e açúcar. O lugar era apertado para duas pessoas, tinha cheiro de mofo e uma iluminação fraca. — Me conte agora.
— Eu odeio aquela mulher — falei, enquanto Isabelle me envolvia em um abraço confortável.
— Quem?
— Charlotte! Ela me humilhou na frente de Charles, eu não sabia onde me enfiar ou o que fazer então saí o mais rápido possível. — as lágrimas continuavam escorrendo pelas minhas bochechas enquanto Isabelle me apertava em seus braços.
— Acho que nossa conversa de ontem não resultou em nada não é? Existem regras, e com o tempo vamos aprender a respeitá-las do jeito que devemos. — me afastei, secando as lágrimas e a olhando nos olhos por alguns segundos.
— Ou podemos aprender um jeito melhor de ultrapassá-las. — Isabelle abriu um sorriso travesso.
— Helene, está maluca? Coloque nessa sua cabeça que não somos ninguém, se cometermos algum erro vamos direto para a forca, você tinha razão sobre isso ontem. — balancei a cabeça me negando a aceitar aquilo.
— Não, não temos que aceitar tudo, não devo ficar calada e ser humilhada por Charlotte. Não devo me privar de conversar amigavelmente com Charles só porque trabalho para ele, as coisas não deveriam ser assim! — Exclamei, começando a sentir meu rosto formigar.
— Mas são assim que elas são por enquanto minha cara, me prometa que não vai fazer nada de maluco hoje. — revirei os olhos, é claro que não ia, não sem um plano primeiro.
— Prometo.

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