Capítulo 21: O caminho é este
"O caminho é este
tem pedra, tem sol
tem bandido, tem mocinho
tem você amando
tem você sozinho
é só escolher
ou vai, ou fica.
fui."
— Martha Medeiros
As paredes do orfanato eram feitas de pedra, o que deixava o clima ainda mais frio. Entrava somente alguns feixes de luz através das janelas finas, como se nem mesmo o sol quisesse passear por ali, mas a escuridão já não me assustava como antes. Os meus medos haviam crescido junto comigo, agora, eram as pessoas que me causavam arrepios.
Enquanto atravessava o vasto corredor principal em direção ao refeitório, ouvia os meus passos ecoarem contra o piso antigo. Era impossível ignorar os olhares e, mais ainda, as vozes que sussurravam como espíritos a minha volta. Todos pareciam estar comentando o motivo pelo qual eu havia retornado. Em momento nenhum os julgamentos eram fáceis de lidar, mas estava feliz por ainda não ter encontrado aquele que eu tanto temia.
O salão em que fazíamos as refeições também era feito de pedra, o que tornava o ambiente bem menos acolhedor. Haviam longas mesas de madeira escura, onde éramos divididas por idade, um banco comprido de cada lado, alguns candelabros com velas brancas e só. Não era o lugar mais bonito que eu já havia visto.
Caminhei devagar até a última mesa, a fim de me sentar com as meninas mais velhas, porém, nenhuma delas abriu espaço para mim. Permaneci em pé sem saber exatamente o que fazer, sentindo o sangue subir e deixar minhas bochechas coradas. Definitivamente eu não me encaixava ali.
Observei seus sorrisos e olhares maldosos, escutei as risadas baixas em completo silêncio, engolindo toda e qualquer humilhação a qual eu estava sendo submetida. Lembro-me de pensar que devia merecer tudo aquilo, afinal, havia destruído o futuro de Charles, e colocado minha felicidade em primeiro lugar, ao invés de entregar tudo de mim para salvar minhas irmãs. — Ouvi dizer que ela se ofereceu para um dos senhores da casa. — Consegui distinguir uma das frases, sentindo toda a vergonha aumentar ainda mais.
— Pois me contaram que ela o matou quando ele a rejeitou. — Outra voz respondeu, fazendo a raiva e a vergonha ferverem dentro de mim. Deus, será que era isso que pensavam de mim? Me diminuiriam a algo tão terrível assim? Sabia bem que uma vez que os boatos começassem, seria impossível de controlar a verdade.
— Calem-se! — Uma voz feminina estridente fez todos os murmúrios cessarem no mesmo instante. — Não quero ouvir nem o som da respiração de vocês, a primeira que ousar falar algo passará a noite em punição.
Na mesma hora abriram um espaço para que eu me sentasse, apesar de saber que ninguém poderia controlar os olhares maldosos, conseguir comer em silêncio já era um começo. A sopa de legumes estava quente, então mesmo que eu não estivesse com muito apetite, foi bom me aquecer e esquecer os problemas um pouco.
Eu possuía plena consciência de que em breve a diretora me mandaria embora, e precisava rapidamente pensar no que faria, ou para onde iria. Portanto, fui a primeira a terminar o jantar, e segui para os dormitórios através dos corredores escuros, acreditando que uma boa noite de sono me faria bem.
Quando cheguei ao segundo andar, um calafrio começou a me deixar desconfortável, como se houvesse alguém me observando. Respirei fundo, após tudo o que eu passara nos últimos dias, não me surpreenderia se a minha própria mente resolvesse me enganar. Mesmo assim, apressei o passo, desejando com todas as forças que a sensação que me perseguia fosse somente minha imaginação.
Imediatamente me arrependi por ter sido a primeira a terminar o jantar, não havia ninguém por ali, e por mais que desejasse um pouco de tranquilidade, sabia que não apareceria nem uma alma para me ajudar se eu precisasse. As velas traziam uma iluminação fraca e amarelada, em geral não eram de grande ajuda, mas ao menos me guiavam através da escuridão. Estava quase chegando aos dormitórios quando uma voz me surpreendeu.
— Ora, por que a pressa? — Senti uma mão robusta segurar meu antebraço, justo quando estava prestes a abrir a porta do quarto. Um medo começou a tomar conta do meu corpo, pois eu sabia bem quem estava ali. — Deixe-me ao menos lhe dar as boas-vindas.
— Deixe-me em paz Smith — pedi calmamente, tentando não demostrar o quanto queria que ele sumisse.
— Você sempre foi uma mocinha muito petulante, não é mesmo? — Pude sentir sua respiração quente se aproximar da minha nuca, fazendo uma repulsa começar a crescer dentro de mim.
— Você não sabe nada sobre mim — retruquei.
— Sei mais do que imagina. — Ele me virou de forma brusca, batendo minhas costas contra a porta, e prensando seu corpo contra o meu. Quase como por instinto senti minha mão se fechar em um punho. — Preste atenção, posso fazer com que não a joguem na rua para apodrecer como os ratos, sabia? E, quem sabe, viver com um pouco mais de conforto do que suas colegas. Tudo o que tem que fazer é seguir minhas instruções.
— Pode ter certeza de que eu prefiro os ratos a você. — O encarei com todo o ódio que sentia, torcendo para que ele se afastasse, porém, seu sorriso demostrava o contrário. Ele estava se divertindo.
— Minha querida Helene, — sua mão chegou até meu rosto, fazendo carícias que mais pareciam espinhos — você não possui escolha, então fique quietinha.
Smith soltou uma risada fraca, enquanto descia as mãos pelo meu corpo que estava completamente paralisado de medo. Fechei os olhos, era exatamente como um dos vários pesadelos que tive nos últimos meses, porém, dessa vez, eu não acordei.
Tentei inutilmente controlar a minha respiração, me sentia enojada somente com a sua presença, quem diria o que seu toque seria capaz de despertar em mim. Quando senti sua boca chegar até minha pele, soube que precisaria fazer algo, não o deixaria se aproveitar de mim dessa maneira.
Ele continuou beijando meu pescoço com voracidade, enquanto os meus olhos permaneciam fechados tentando conter as lágrimas. Foi quando me lembrei das lições de Isabelle, e comecei a repassar todos os seus ensinamentos de defesa mentalmente. É claro que a agradeci mentalmente antes de coloca-los em prática.
Levantei meu joelho de forma rápida, acertando em cheio o meio de suas pernas, Smith gritou no mesmo segundo, juntando as mãos na frente da parte que eu havia atingido. Ele levantou os olhos em minha direção, sem tentar esconder toda a raiva que sentia, mas eu já havia dado o primeiro passo, e não desistiria sem lutar.
Fechei a mão direita e acertei um soco bem em seu pescoço, Belle havia me explicado que era um ponto fraco para machucar alguém quando necessário. Smith cambaleou para trás, até se chocar contra a parede de pedra atrás dele. — Fique longe de mim! — Avisei, mantendo a voz firme, pensando que ele me deixaria em paz, que eu estaria livre.
Entrei rapidamente no dormitório, que era somente um quarto comprido e escuro, com diversas camas enfileiradas. Não havia ninguém ali, porém, durante os segundos em que fiquei encostada contra a porta, senti uma falsa sensação de segurança. O que eu não estava esperando, era que a ira dele seria tanta, que conseguiria derrubar a porta, jogando meu corpo para trás.
Senti uma fisgada de dor atingir meu ombro, estava caída no chão perto da porta, torcendo para que ele só me deixasse em paz. Eu já havia sofrido o suficiente, não estava de bom tamanho? Smith fez questão de caminhar lentamente até onde eu estava, fazendo seus passos ecoarem pelo cômodo.
— Você não irá aprender nunca? — Perguntou, me erguendo com um puxão só para acertar um tapa contra meu rosto. Senti minha bochecha latejar, enquanto todas as dores que eu sentia se mesclavam em uma só. Outro tapa me atingiu, e mais outro, e mais outro, até que não me restassem forças nem para gemer. Só poderia aceitar a dor, e que aquele seria meu destino dali em diante.
❣
Estava perdida e completamente sem esperanças, havia passado os dias seguintes me isolando de tudo e de todos, não havia um pingo de coragem em mim, nem sequer queria sair debaixo das cobertas. Porém, estando em um orfanato, eu sabia que me trancar no quarto não era uma opção.
Os boatos não haviam acabado, nenhuma das meninas queria ser vista ao meu lado, ou sequer ousar conversar comigo, quem se aproximava era somente para rir ou soltar alguma piada de mau gosto. Mesmo assim, não cometi novamente o erro de andar sozinha pelos corredores, estava sempre esperando um grupo de garotas passar para segui-las. É claro que não existia nada que impedisse Smith caso ele decidisse me encurralar outra vez, porém, me sentia um pouco mais segura quando havia alguém por perto.
— Pois bem, Helene, vamos ao assunto. — Sra. Stewart disse, ajeitando os pequenos óculos redondos sobre o nariz. Eu estava sentada em uma das cadeiras feitas de madeira a sua frente, já sabendo o que viria a seguir. — A aceitei de volta em nosso orfanato como um gesto de caridade, porém, ambas sabemos que sua idade me impede de mantê-la aqui.
— Eu compreendo Senhora, mas não tenho para onde ir — comecei, sabendo que de nada adiantaria implorar. Havia passado a semana à procura de um lugar que me aceitasse, alguém com bom coração que me oferecesse abrigo em troca de trabalho, mas todos fecharam a porta bem diante do meu nariz. Estava claro, não havia lugar para mim em Londres.
— O máximo que posso fazer é lhe dar uma semana a mais. — Ela levantou os olhos, me fitando com certa frieza. — Contudo, precisarei que trabalhe para nós durante esse tempo, a fim de pagar por sua estadia.
— Sim Sra. Stewart, farei o que for necessário.
— Bem, sendo assim você ajudará Mary a cuidar das crianças mais novas essa semana — falou, juntando as mãos a sua frente sobre a escrivaninha — sugiro que se esforce um pouco mais para arrumar um lugar, não poderei dar-lhe mais tempo, há outras meninas necessitando de uma cama para dormir.
Essa era uma realidade que eu conhecia bem, e me perguntava quantas crianças estariam naquele exato momento chorando a procura de um abrigo? Querendo um prato de sopa e alguém para conversar? No entanto, ali estava eu, ocupando uma cama que poderia perfeitamente ser de outra menina. Não era justo, eu havia estragado a minha oportunidade de ter uma vida melhor, não podia tirar a delas também.
Talvez eu devesse somente desistir de tudo, ou então partir desse mundo para um lugar melhor. Fracassara em ajudar minhas irmãs, deixara Emma escapar de minhas mãos duas vezes, e só Deus sabia onde Abigail estaria. Como se não bastasse, colocara a vida e a felicidade de Charles em risco, definitivamente qualquer um que se aproximasse de mim sairia ferido.
Passei a mão sobre os olhos, jogando as lágrimas para longe. Havia entrado em um dos armários de vassoura no segundo que saí da reunião, necessitava de um tempo para me acalmar, desistir não seria uma opção. Passei o resto do dia junto de Mary, ajudando a cuidar das crianças mais jovens, e rezando para que Deus me enviasse um sinal de que sim, havia uma saída. Sempre haveria.
Após dois longos dias servindo o jantar, lendo e colocando as meninas mais novas na cama, as minhas preces foram ouvidas. Cheguei ao dormitório como se fosse um dia comum, pronta para cair no sono, porém, sobre a colcha de retalhos havia um envelope. Meu coração acelerou, todo o meu corpo formigava de ansiedade, seria a minha luz no fim do túnel?
"Querida Helene,
Como você está? Torço para que a vida não esteja sendo ainda mais dura com você, sei o que passou e rezo por você todos os dias, para que encontre dentro de seu coração forças para se reerguer. Gostaria de poder trazer boas notícias, contar como tudo se ajeitou por aqui após os eventos daquela noite, mas não estaria falando a verdade. Dover está de cabeça para baixo.
Bem, logo após a sua partida, os guardas decidiram levar as investigações da morte de Dylan mais a sério. Aparentemente, encontrar a arma do crime despertou a curiosidade deles, temem que os franceses queiram invadir, e que essa morte seja apenas um começo. Tenho medo do que pode acontecer, e que a verdade seja mais obscura do que todos pensam. Lene, gostaria de revelar tudo o que sei sobre aquela noite, mas não creio que uma carta seja o meio certo para isso.
Contudo, existe algo que eu deveria sim contar neste momento. Primeiro peço que me perdoe por não ter divido esse meu segredo antes, eu sempre temi o julgamento alheio, e deveria ter confiado em você do mesmo jeito que confiou em mim. É claro que você deve ter notado todas as vezes que eu desaparecia, durante o dia ou à noite, e a explicação é bem simples. Eu estava me encontrando com alguém, mas veja bem Lene, não é quem o mundo espera que seja, eu achei o amor verdadeiro, mas ele veio para mim de uma outra maneira. O nome dela é Amélia Jones, a mulher mais incrível que eu já conheci. Ela é filha de uma faz famílias do círculo de confiança dos Taylor, provavelmente você passou por ela diversas vezes durante os bailes e nem sequer a notou, mas os meus olhos não se saíam dela nem por um segundo.
É por isso que, assim como você, eu sei o que é amor verdadeiro, sei o que é sofrer por amar alguém que não deveríamos. Acontece que nosso coração não escolhe classe ou gênero, nós amamos aqueles a quem estamos destinados, e não devemos jamais nos culpar por amar. Mais do que qualquer um, especialmente neste momento difícil, você deve estar duvidando de si mesma, se perguntando se fora certo se permitir viver esse amor impossível com Charles. E por experiência própria eu lhe aconselho, lute por ele. Não deixe com que nada nesse mundo a impeça de ser feliz, pois assim como você está sofrendo, ele também está. E é exatamente quando chego ao assunto que me motivou a lhe escrever esta carta.
Charles está vivo, e mesmo que esteja de cama, sua condição é estável. Passou duas noites desacordado após o ocorrido, nem o médico sabia ao certo se ele acordaria, porém, no terceiro dia o impossível aconteceu, ele despertou. Não parou de chamar por seu nome nem por um segundo, teve delírios durante a noite por causa da febre, e em um certo momento até me confundiu com você. "Fique comigo Helene, e sei que tudo terminará bem. Não posso prometer acabar com todos os nossos problemas, mas lhe prometo que você não os enfrentará sozinha" ele disse. Não sabemos se Charles irá se recuperar algum dia, contudo, creio que em alguns poucos casos, o amor é o melhor remédio.
A cada dia que passa, isso tudo afeta ainda mais a Sra. Taylor. Ela não para de falar sobre esse momento ser a ruína da família, pois mesmo que tenha tentado diversas vezes pedir o perdão do Sr. Bennet, ele jura que irá se vingar de algum modo, que não deixará as coisas como estão.
Sinto sua falta com todas as minhas forças Lene, finalmente compreendo como você deve ter se sentido ao ser afastada de suas irmãs, pois agora que perdi a minha me encontro perdida. A guardarei em meu coração, mas tenho esperanças de que nos reencontraremos algum dia.
Com amor,
Isabelle Thompson"
Não soube ao certo como reagir, assim que terminei a leitura voltei para o início, e reli aquelas palavras até que as tivesse memorizado. Belle amava alguém, esse tempo todo ela esteve segurando seu fardo sozinha com medo dos julgamentos, enquanto me ouvia falar sobre minhas próprias preocupações. Estava extasiada, eu havia rezado para que Deus me mostrasse que havia um caminho e, bem diante dos meus olhos se encontrava a resposta. A partir daquele momento eu sabia o que fazer, iria fugir do orfanato e enfrentar meu destino.
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