O SEGREDO DA CAIXINHA REDONDA (Conto 2)
Capa por _jessyiam
Essa história começa como a maioria dos contos de fadas que costumavam nos contar quando éramos crianças... Ou nem tanto...
Era uma vez, em um lugar distante cujo nome é desconhecido pelos cartógrafos que mapearam o mundo, vivia uma linda garotinha de pele luzidia e escura, da cor do chocolate. Seu nome era Ana, uma pobre órfã que morava com seus avós em uma casinha de barro.
Quase tudo faltava naquele lugar, a vida era muito difícil, no entanto, a avó de Ana, dona Lúcia, era uma mulher alegre que distribuía sorrisos e palavras de sabedoria onde quer que andasse.
Dona Lúcia carregava consigo sempre uma caixinha redonda forrada com papel de presente barato e parecia ter muito amor por aquela caixinha, pois nunca a deixava longe de suas vistas e ninguém fazia a menor ideia do que havia ali dentro, afinal, jamais a viram abrir a caixa.
A menina vivia curiosa para saber o que tinha dentro da caixa de sua avó, mas sempre que perguntava, a senhora dava um sorriso quase sem dentes e dizia que algum dia ela saberia o que era guardado ali dentro.
Os anos passaram, a menina Ana cresceu e se tornou uma bela moça que aprendeu a sorrir apesar das dificuldades, e que sorriso lindo! Era perfeito, seus dentes branquinhos acentuados por duas covinhas nas bochechas encantavam a todos que eram presenteados com seus sorrisos.
Durante todos os anos em que morou com sua avó, a caixa redonda continuava um mistério. Houve uma vez em que Ana viu dona Lúcia abrir a caixa, porém, não pôde ver o que tanto a avó olhava ali dentro, apenas a viu pegar um papel e uma caneta e escrever algumas palavras, depois queimar o papel em um cinzeiro que seu falecido avô costumava usar.
Algum tempo depois, dona Lúcia ficou muito doente e não resistiu. Ela já era bem velhinha, tinha quase noventa anos. Em seu velório tinha mais de duzentas pessoas, a maioria delas com histórias sobre a falecida, contando como a matrona sorria até nos momentos mais improváveis e tinha palavras para consolar ou alegrar, não importavam as circunstâncias. A mulher era muito amada por todos.
— Um dia eu vi uma mulher branca zombando da pele escura da dona Lúcia, mas em vez de ela responder como qualquer outro faria, apenas disse que tinha um remédio perfeito para que a mulher pudesse andar sob o sol sem queimar sua pele delicada — disse um homem grisalho usando óculos.
— Sim, eu estava lá — completou a filha dele. — A mulher ficou tão confusa quando ela não respondeu com raiva! E depois pediu desculpas, envergonhada por sua própria atitude.
— Foi a dona Lúcia que me aconselhou a não fazer tudo que os meus colegas faziam só pra me sentir incluído no grupo — comentou um jovem. — Ela me ensinou que só merecia minha amizade quem me aceitava exatamente como eu sou.
— E quando o Seu Germano se foi, apesar de chorar pelo marido, ela contou histórias engraçadas dele, sorrindo enquanto lembrava do quanto ele era divertido e brincalhão — falou ainda uma senhora corpulenta de cachos ruivos.
Todos falavam de sua gentileza, bondade, compaixão e sabedoria.
O enterro da senhora foi o mais triste, principalmente para Ana, que agora estava sozinha no mundo.
Dias depois, quando arrumava as coisas de dona Lúcia, a moça encontrou em cima da cama da idosa a tal caixa redonda. Sobre a tampa estava um envelope que ela pegou, sentou numa velha poltrona e abriu uma carta que dizia:
“Querida netinha,
“Se está lendo isso é porque eu já não estou entre os vivos, mas não fique triste, eu vivi muito tempo, amei da maneira mais profunda que pude e fiz as melhores escolhas que consegui. Minha vida foi plena.
“Durante minha vida não acumulei posses ou bens materiais que pudesse deixar de herança a você, no entanto, quero que saiba que você foi a maior herança que eu deixei a todos que necessitem de bondade e empatia.
“Minha doce menina, todos nós temos os instrumentos necessários para tornar melhor o dia de alguém. Se você parar pra pensar, um único sorriso muda tudo. Sorrir pode dar um pouco de cor e alegria para alguém que vê tudo cinza por causa da tristeza.
“Quando você sorri, está mostrando que é grata pelo dom da vida. Quando você é gentil com alguém, mesmo com quem não a trata com gentileza, você mostra que é capaz de sentimentos superiores. Um simples abraço pode devolver a alguém a vontade de viver. Carinho resolve muitos problemas simples.
“Você me perguntava desde pequena o que tinha nessa caixa e por que eu não mostrava a ninguém, agora ela é sua para descobrir. Porém, antes que você abra, quero que faça uma coisa: fique vinte e quatro horas sem perder a paciência ou dar respostas negativas às pessoas, mesmo que alguém te faça mal. Sorria e seja gentil com qualquer pessoa. Isso é mais difícil do que parece, mas somente quando você conseguir, poderá abrir a caixa e ver o que tem dentro.
“É claro que você pode trapacear, afinal, eu não estarei vendo, mas sei que a garotinha que eu criei é honesta e jamais recusa um desafio. Acredite, você vai se sentir melhor por abrir a caixa quando cumprir as exigências que fiz.
“Eu te amo, minha menina.
“Beijos, vovó.”
A moça achou estranho o pedido de dona Lúcia, entretanto, se essa era a vontade da sua amada vozinha, iria cumprir. Começou a contar naquela mesma noite. Sempre que alguém falava com ela, Ana sorria e era cortês. Não falou com muita gente, pois logo deu a hora de se recolher para dormir.
No dia seguinte, a jovem foi trabalhar. Ela era ajudante em uma padaria onde aprendia a fazer todo tipo de pães e massas, tanto salgados quanto os mais deliciosos doces.
Em determinado momento, um freguês se recusou a ser atendido por ela, dizendo que preferia que alguém “mais limpo” o recebesse. Mesmo com vontade de responder de forma que o deixasse calado, ela fingiu que não ouviu, deu um sorriso e chamou uma colega de pele mais clara para atender ao racista. Naquela época, racismo ainda não era considerado crime.
Mais tarde, enquanto arrumava as mesas que algumas moças usaram para comer, ouviu uma delas zombando de seus cabelos crespos. Mais uma vez ignorou e sorriu docemente, desejando um bom dia às garotas.
Assim passou o dia, vez ou outra alguém falava coisas ruins e a moça respirava fundo antes de sorrir e ser gentil.
Ao fim daquele dia, Ana foi para casa entristecida, pensando no motivo de sua querida avó lhe pedir algo tão difícil quanto suportar essas atitudes hostis das outras pessoas.
Tão logo chegou em casa, ela tomou um banho, cansada, e sentou em sua cama com a caixa redonda no colo. Respirou fundo e abriu a caixa, confusa por ver apenas um espelho, um caderninho, uma caneta e um isqueiro. Acima desses itens havia outro envelope com uma segunda carta de dona Lúcia.
“Querida Ana,
“Primeiramente, parabéns por ter passado um dia sem tomar para si as coisas negativas da vida. Isso mesmo, caso não esteja entendendo, vou explicar:
“Durante cada minuto do dia, o ser humano é exposto a todo tipo de comportamento social, seja ruim ou bom, e nosso cérebro funciona como um receptor desses comportamentos, por isso, às vezes temos a tendência de ser agressivos, mal-humorados e até amargurados com o passar do tempo.
“Eu vivi tempo suficiente para aprender a filtrar essas atitudes, escolhendo ignorar tudo de mal que me cercava e absorver só as coisas boas. Nós somos receptores dos comportamentos de outros, mas também somos responsáveis pelo que os outros vão receber das nossas atitudes.
“Essa caixinha redonda foi um presente da minha madrinha quando eu tinha mais ou menos a tua idade. Se chama 'caixa dos sentimentos', a partir de agora deverá ser tua companheira diária.
“Dentro dela tem um caderno, metade dele com folhas divididas em retângulos destacáveis e a outra metade com páginas normais. Funciona da seguinte forma: sempre que alguém te tratar mal e você tiver sentimentos ruins por causa disso, deve escrever em um retângulo destacável tudo que você gostaria de fazer ou responder para aquela pessoa, depois queimará o papel. Isso servirá para aliviar tudo de mal que tenha sido gerado aí no seu coração, o ato de queimar o papel significa que aquilo é tóxico, é lixo e você não quer na tua vida nada que te deixe doente.
“Quando, por outro lado, você receber elogios, felicitações ou qualquer coisa que te faça bem, escreva nas páginas normais como você se sentiu naquele momento e como isso te motiva a ser uma pessoa melhor. Isso deve ser relido sempre que você estiver se sentindo mal, para reafirmar que as coisas ruins não importam, só as boas devem ser absorvidas.
“O espelho está na caixa para que você treine seu sorriso, admire suas formas e imagine como as pessoas se sentem quando o veem em seu rosto. Perceba que o sorriso deixa as feições mais relaxadas e a face mais bonita.
“Não guarde palavras de rancor ou maldade, apenas ofereça suas palavras quando elas fizerem bem a outras pessoas, mas nunca se esqueça: ser gentil não é se deixar ser pisada por outras pessoas e sim mostrar que você é melhor sem precisar falar que é. Não entre em contendas que não vão fazer diferença, apenas lute fervorosamente com as pessoas certas nas lutas certas, assim você poderá mudar, pelo menos um pouco, a sociedade em que nascemos.
“Conquiste o respeito e a admiração das pessoas, então chegará o dia em que elas te defenderão das injúrias, jamais permitirão que ofendam você. Sei que agora pode parecer impossível, porém, se tem algo que posso falar por experiência própria, é que eu parti desta vida cercada por pessoas que me amavam. O amor é o sentimento mais importante, nunca o perca.
“Com amor, vovó.”
Ana guardou as palavras de sua avó no coração e as praticou pelo resto da vida. Foi assim que ela se destacou em tudo que fazia e se tornou conhecida como uma das primeiras mulheres negras a declarar que todas as pessoas do mundo são iguais, não importa a etnia, crenças religiosas ou gênero. Ela lutou pela igualdade e conquistou importantes batalhas em prol da criminalização do racismo, nunca deixando de sorrir.
Assim como sua avó, Ana foi amada por todos com quem fazia contato e criou seus filhos com o ensinamento de que um sorriso muda tudo.
Com as atitudes certas, ela fez a diferença.
(1771 palavras)
Esse conto é uma homenagem a todas as mulheres negras na história da humanidade que lutaram para acabar com a segregação racial e o racismo.
Apenas para citar algumas delas, temos a dançarina norte-americana Katherine Dunhan, por causa de quem foi criada e aprovada a lei apelidada "Afonso Arinos", que foi a primeira lei antirracismo no Brasil; a brasileira Antonieta de Barros, primeira deputada negra no Brasil; Ruth de Souza, primeira atriz negra a protagonizar uma novela; Tia Ciata, que apoiou o samba na época em que foi criado como uma forma de protesto contra a segregação racial; Rosa Parks, costureira dos EUA conhecida como a "mãe do movimento pelos direitos civis".
Existiram muitas outras, é claro, essas foram só algumas.
Você deve estar se perguntando por que uma escritora que não é negra escreveu um conto que envolve o racismo.
Posso não ter nascido negra, mas sou descendente de negros como a maioria do povão desse Brasil e tenho amigos de pele escura também.
A temática desse conto foi pensada para ser outra, mas essa semana passada aconteceu uma situação que me deixou revoltada e eu precisava colocar isso em alguma história de alguma forma.
Uma amiga que estimo muito sofreu preconceito por causa da cor da sua pele e eu sei que isso, infelizmente, ainda acontece muito na nossa sociedade, mas ela é minha amiga e dói mais quando vemos alguém que gostamos magoada por essas coisas.
Não vou falar o nome dela, mas seu apelido. Ana, essa história foi pra você. Sorria apesar das coisas horríveis e mostre que você é melhor do que as pessoas desprezíveis que tentaram te diminuir. Beijos no coração.
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