|Capítulo 48|
Leah Pfeifer
11 de Julho de 1945
Eu passei mais uma noite em claro, tentando pensar em como Rustan estava e se voltaria logo. Nunca gostei dessa separação entre eu e um ente querido, pois a primeira vez que isso me ocorreu, papai faleceu e eu nunca tive a oportunidade de conversar com eles sobre alguns assuntos pendentes, que ele me prometeu que falaríamos assim que retornasse. Não aguento o silêncio em que a cidade se encontra, mergulhada nessa falsa esperança de que tudo vai bem e que logo voltaríamos as rotinas costumeiras.
Nada está bem. Nunca seremos como antigamente.
Paro com o tremor de minha perna, que estava apoiada no chão e as cruzo na cama, um modo eficiente de controlar o meu nervosismo crescente. Porém, mais tarde eu volto a mexer as minhas mãos em vez de pernas, significando que não suportaria mais aquela calmaria.
Saio de minha cama e perambulo o apartamento, olhando os destroços no cômodo com a luz fraca do solar que invadia todos os furos da parede e os buracos deixados por balas e bombas jogadas próximas daqui. As sombras dançavam sobre a minha visão e eu sorriso tentando entender o que se mexia assim.
Pescoço para olhar para fora e descobrir um pano preso em uma das paredes acidentais, poderia ter se enroscado com a ventania de ontem, que preludia uma tempestade. Se acontecesse uma chuva ali, eu teria que repensar o meu abrigo, pois me encontrava totalmente despreparada para suportar uma chuva forte.
Volto a andar pelo apartamento, indo em direção da saída, sempre com passos silenciosos para não acordar Johannes e Beike, que começaram a dormir juntos ao meu lado. Fui surpreendida quando meu amigo confessou que tinha certa quedinha pela minha prima, porque eu não esperava por aquela notícia. Ainda mais por saber do passado dela e não senti-la pronta e preparada para um novo recomeço. Porém, quem sou eu para falar isso, sendo que foi exatamente isso que me sucedeu após conhecer Rustan?
Depois que Rustan foi cumprir sua missão por ordens superiores, eu fiz Johannes abrir a boca para saber sobre o que eles conversaram quando ficaram sozinhos no corredor. Ele me relatou que era dever dele cuidar de mim enquanto Rustan não voltasse, também me falou que tentaria me fazer mudar de ideia, mas eu ri na mesma hora, porque era impossível eu deixar de me apaixonar por Rustan, o homem que salvou a minha vida e me ensinou a viver novamente.
Já não tinha volta, pois amar Rustan era o mesmo que respirar. Esse sentimento fincou em meu coração e criou raízes profundas, que somente com a morte poderia me afastar dele, porém, nunca seria possível apagar essa chama ardente em meu peito.
E foi assim que ele percebeu que não teria nenhuma chance mais comigo, pois eu só tinha olhos para o meu soldado soviético. Johannes começou a investir em Beike, que até agora não deu nenhuma brecha naquele muro impenetrável, mas eu dava umas cutucadas para ajudar com as penetradas, e funcionou - um pouco, todavia sempre são com os pequenos passos que alcançamos longas distâncias.
Saio de minha casa e ando pelo corredor fantasmagórico somente ouvindo os roedores correrem de um lado para o outro em busca de comida e isso me lembra que acabou o último pote de ração que Rustan havia trazido. Estávamos dividindo tudo em três para que tivéssemos mais chances de sobreviver, mas também comecei a vender os cigarros deixamos por Rustan para que ganhasse um extra. Nos primeiros dias os homens achavam que eu vendia o meu corpo, mas logo coloquei eles em seus devidos lugares e não tentaram mais nenhuma gracinha.
As vendas não eram muitas, porém, o pouco que vendia eu conseguia levar um pouco mais para casa. Beike parou de se prostituir, após conversar comigo e eu a convencer a não fazer mais isso, pois encontraríamos uma saída em ter que se humilhar daquela maneira. Ela passou a trazer água para casa, não muito, mas o suficiente para não nos permitir morrer de sede.
Nossas vidas tem se resumido a isso: colher as migalhas de esperança que a vida tem lançado pela cidade e agarrar-se a isso até tudo acabar.
Desde que Johannes chegou ao nosso apartamento, houve uma ou outra ronda de soldados passando por essas áreas, a primeira alegou procurar soldados foragidos, que poderia estar se escondendo nos antigos campos de guerra. Mas conseguimos despistá-los e esconder nosso amigo para não houver mais suspeitas. Já o segundo grupo era de soldados bêbados somente conversando sobre temas triviais.
Sabíamos que poderia ser perigoso com ele ali, ainda mais um soldado procurado, contudo, não daríamos o braço a torcer e entregá-lo tão facilmente. Entendíamos os riscos que estávamos correndo ajudando-o, mas o que poderíamos fazer? Ele é nosso amigo, parte de nossa família. Um membro da sobrevivência. Só por cima do meu cadáver eu deixaria ele para trás.
- Aonde a senhorita pensa que vai? - a voz dele soa pelo corredor, estava em um tom cansada e um pouco sóbria, similar a minha, assim que eu dizer algo. Johannes também não dormiu noite passada pelo jeito. Ele me confessou que estava preocupado com os soldados rondando essas áreas, mesmo sabendo que a guerra acabou no interior de Berlim. Meu amigo não gostava nada de nós nos arriscarmos por ele, mas seria assim até as coisas mudarem.
- Espairecer a mente - respondo voltando meus olhos para ele. Eu não o enxergava perfeitamente por causa do horário e a falta de luz no ambiente, mas eu via sua silhueta e por conhecê-lo apostava que tinha um fraco sorriso em sua face, uma sobrancelha erguida com aquele ar de sabe-tudo. - Eu não consegui pregar os olhos neste noite.
- Nem eu - ele admite os meus pensamentos tombando o corpo ao lado e apoiando no batente da porta, ele cruza os braços e sua cabeça se vira como se olhasse para trás. - Fiquei conversando com Joana até ela dormir e aquela mulher fala muito! Se eu soubesse... Como é possível alguém ter tanto assunto?
- Vocês, homens, que não sabem conversar a respeito de tudo. Veriam como é interessante falar sobre os assuntos banais da vida - respondo erguendo os lábios e sentindo um pouco do peso em mim sair. Sempre foi fácil conversar com Johannes, até mesmo há seis anos atrás, ele é um grande amigo e ouvinte.
- Eu já não diria isso, porque existem coisas muito mais interessantes do que conversar, mas vocês, mulheres, gostam de usar a boca para falar sem parar! - eu finjo estar ofendida e solto um ar de indignação, cruzando os braços para me defender do argumento dele. - Ei, nem me venha com essa carinha, pois sabe muito bem do que eu estou me referindo. A senhorita e o seu soldado andaram por muito tempo sozinhos, eu até posso adivinhar as coisas que tenha feito...
- Simplesmente nada do que o senhor alega. Mas esse não é o tópico do assunto, estamos discutindo a respeito de conversar e ser ouvido. Mulheres gostam de falar e saber que os senhores prestaram atenção em cada palavra.
Ele ri se aproximando de mim, vindo para o ponto iluminado, onde a fraca luz invadia o ambiente e o deixava mais vivo. As roupas costumeiras estavam ainda mais amassadas, os cabelos sem um fio no lugar, o rosto com um ar cansado e olhos com olheiras. Se ele estava assim eu nem queria me ver.
- Isso me faz lembrar de uma coisa engraçado que uma vez ouvi de seu pai - aquela frase me faz parar tudo o que passava em minha mente e todas as minhas células focarem em sua voz com desejo de ter mais de meu pai, aquela presença tão familiar em meu ser. Poderiam se passar milhões de anos, mas ainda sim, meu corpo se recordaria do toque ásperas de suas mãos em meus ombros, o cheio único dele de loção pós barba com um perfume adocicado que eu nunca entendi como ele gostava daquilo, a voz grave que fazia piadas para mim quando criança... Precisava desfrutar de mias, pois nunca seria o suficiente que eu tenho deles registrados em mim.
- Por favor, conte-me - eu peço segurando as mãos dele, olhando para seus olhos com urgência do que ele queria me dizer.
- Foi no período em que eu fazia as aulas com ele, treinava aviação e ele vivia reclamando, no bom sentido, das mulheres de sua casa. Cada hora inventavam alguma coisa na qual ele seria obrigado a fazer, porque não se pode negar um pedido para as mulheres. Com isso, ele contou sem intenção futura o quanto a senhorita falava por horas, sem se cansar, e eles tinham que te ouvir. Seu pai me contou que no dia em que pegou uma peça de teatro nas mãos, passou dias falando e interpretando todos os personagens do enredo e...
- E de tanto que eu falei, eu os enlouqueci e fui mandada para a casa da vizinha, uma pobre senhora já viúva, que teve que me aturar e depois me devolveu por não me aguentar também - eu complemento a história, rindo com ele com aquela lembrança quase esquecida de minha memória.
- E foi ali que eu aprendi que é melhor deixar as damas falarem, porque o que era só um problema pode se passar a serem dois!
- Não foi a minha culpa que a senhora gostava de silêncio! Eu só queria alguém para atuar comigo. Mas depois o quanto ela reclamou para meus pais que não me controlavam, que uma dama só fala quando lhe é permitido e com poucas palavras... Passamos a rir deste evento por dias!
Ele se aproxima mais um pouco e abre um sorriso diferente do costumeiro, sem aquele ar esnobe ou debochado. Johannes abre um mais sincero e vulnerável, coisa que não estava acostumado - muito menos eu!
- Mas uma coisa que eu nunca vou me esquecer: seu pai vivia dizendo que a senhorita faria um belo par com um soldado alto, cabelos castanhos escuros, olhos azuis, só que ele esqueceu a parte de mencionar que ele seria um soldado russo.
- Ele é ucraniano.
Johannes ri e me puxa para um abraço sem jeito, eu sou pega desprevenida e franzo a testa estranhando o gesto, até ele dizer beijando minha testa com ternura, como um irmão mais velho:
- Feliz aniversário, Leah, eu não tenho presentes, bolos ou qualquer coisa física para te dar, mas se nossa amizade significa algo, eu quero lhe entregar a minha eterna gratidão pelos seus cuidados e prometer te proteger até o seu último suspiro. Conte comigo para sempre. Posso não ser o homem da sua vida, como pensávamos que seria a seis anos atrás, porém, não quer dizer que eu não possa ser seu irmão. Seu pai foi como o meu que eu nunca tive e tenho um grande respeito por ele, desejo honrar sua memória te ajudando a viver, dividindo os fardos para fazer a vida ser mais leve.
Eu retribuo o abraço e respondo com um sorriso largo por saber que as pequenas coisas, que parecem sem importância no meio de uma guerra ainda aquecem o meu coração e não conseguiria mais apagar aquela chama da esperança, que se acendeu a muito tempo.
- Obrigada, Johannes.
Saio dos braços de meu amigo e caminho para fora do prédio onde a pequena luz da aurora rompeu com a escuridão dos céus e abriu um buraco naquela camada impenetrável, iluminando toda a cidade. Aquele curto tempo de silêncio e majestade eu levaria para a vida por toda a eternidade.
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