|Capítulo 1|
28 de abril de 1945
A primeira coisa que sinto antes de abrir os olhos é a dor. Uma dor que queima o meu corpo inteiro e me faz querer resmungar a cada segundo. Não me lembro de como ela surgiu, mas desejo que vá embora logo, depressa... Todas as feridas trazem consigo lembranças ruins e deixam cicatrizes inesquecíveis. Não estou disposta a ter que guardar mais uma em minha alma melancólica.
O pesar em meus olhos indicam sinais de pálpebras cansadas por noites mal dormidas -ou talvez seja por algo a mais que esteja encoberto? Não sei... Minha cabeça está atordoada, memorias confusas entram e saem enlouquecidamente querendo encontrar por alguma resposta, mas é em vão. Desconfio que, se tenho lapsos temporais, alguma coisa me aconteceu, desde o último instante concreto das minhas lembranças. Contudo é inútil desvendar esse mistério agora.
Minha cabeça parecia pegar fogo e com meus pensamentos agitados, tudo piora. Minha falha tentativa de levar minha mão na cabeça me faz abrir mais os olhos para ver o que me impede: simplesmente nada, porém meu corpo parecia tão pesado, que não me deixa erguer livremente o braço e movê-lo como bem entender. Suspiro frustada.
Aproveito dos esforços para ficar com os olhos abertos e descobrir, por fim, onde estou; era de se estranhar a graciosidade da luz que me saudava todas as manhãs, esquentando um pouco o meu corpo frio, e o cheio estranho de sangue seco, urina, morte. Não apenas isso, como também os sussurros ao longe, gemidos entre cada respirada profunda por ar.
Meu corpo fica em alerta quando eu me deparo com uma cena caótica a minha frente: poderia não saber minha localização exata, mas não era tão ruim para estar em um mar de pessoas em macas provisórias, todas feridas urrando de dor, médicos correndo de um lado para o outro, tentando conter o caos do local. Eu estava em um hospital? Por que estava em um?
Lentamente eu forço o meu corpo para cima, para ficar sentada e conseguir observar melhor onde estou, mas quando encontro uma posição melhor, fecho os olhos suplicando pelos meus ferimentos físicos. O que aconteceu comigo?
As vozes alarmadas em desespero me fazem olhar para o lado e ver mais cenas horríveis: fragmentos de vidros, pedaços de madeiras atravessando algumas pessoas, ferimentos de bala, queimaduras... Meus olhos se tornam um borrão e sou obrigada a piscar para afastar as lágrimas, que escorriam rapidamente pelo meu rosto.
Nesses seis anos eu já tinha presenciado algumas cenas terríveis, porém nada poderia ser comparado aquilo à minha frente. A ânsia de vômito sobe por minha garganta e deixa a minha boca com um gosto desagradável, contudo o meu estômago estava tão ruim quanto, o embrulho nele me fazia querer virar na direção do chão e despejar os falsos alimentos que eu comi nos últimos dias. Nunca fui muito forte para se ver coisas como essas...
Levo a mão ao rosto horrorizada e tentando abafar o grito, que ameaçava a escapar de meus lábios secos e rachados, devido a falta de água em meu organismo. Não queria crer em meus olhos, contudo era irônico eu querer descrer no que vejo, enquanto vivo a mesma realidade -ou quase a mesma.
Não sei bem ao certo do porquê estou aqui, contudo fazendo uma rápida e vã auto avaliação como eu estou, eu pareço bem -se comparado as outras pessoas-, contudo eu não estaria em um hospital se não estivesse com algum problema.
Tento chamar alguma enfermeira, mas ninguém me dá uma devida atenção, fico apenas existindo naquele local esperando por algo a mais. Os murmurinhos a minha volta prende a minha curiosidade, finalmente chego a uma conclusão: estou em um hospital russo.
As vozes baixas de linguajar estranho me deixando confusas, nem era pelo medo de não entender o que diziam e conversavam entre si, mas pelo sufoco em meu peito de não entender o que eu faço em um lugar como esse. Se Beike soubesse que eu...
Beike! Um estalo em minha mente me faz olhar desesperada pelo local a sua procura. Onde ela estaria? Naquele momento, eu não me importava com seus insultos e reprovações sobre mim, eu precisava dela por ser minha família, a única que eu tinha certeza de que estava viva.
Sou tomada pelo pânico de não encontrar a última família que me resta neste mundo e começo a chorar desesperadamente. Tudo o que eu mais queria naquele momento eram suas ordens e xingamentos, pois assim eu saberia que estaria aqui comigo... Mas não estava! Por que ela se afastou de mim?
Arregalo os olhos ao analisar os fatos que eu tenho e concluo que não foi ela quem se afastou, foi eu quem sumi de sua vista. O QUE ACONTECEU COMIGO? Por que eu estou em um hospital russo? Por que meu corpo inteiro dói?
Choro por sentir solidão. Pela dor de meu ferimentos superficiais. Pela ausência de meu irmão e não saber onde ele está... Pelo caos em minha mente e pela destruição de minha cidade por conta da guerra. Minha alma esvaece um pouco por sentir o mundo morrendo e as pessoas não perceberem isso. Apenas fico ali, deixando as lágrimas fluírem como rios em meu rosto, escorrendo por minhas bochechas e pingando em minhas pernas.
Se meu destino era de encontrar com a morte, não iria impedir a sua chegada. E, por favor, que seja logo, porque eu não aguento mais sofrer...
O tempo se arrasta e logo chega a tarde, e sinto meu corpo fraco pedindo alimento. Salivo e passo a língua nos lábios ao ver as enfermeiras indo e voltando com tigelas de sopa, meu estômago ronca com a expectativa de comer, estava esfomeada por dias.
Uma moça dos cabelos presos e estatura mediana, que usava boina e uma camiseta de botão que fechava até em cima, com um cinto ao redor de sua cintura e calças gentilmente largas, caminha até mim e me entrega uma tigela de sopa de beterraba. Olho para aquilo, no primeiro momento julgando por ser diferente, mas no segundo instante já estava apreciando a comida que me foi dada.
Devorava o meu único prato de refeição com gosto, era incrível de se pensar como as nossas necessidades podem passa na frente dos outros em um segundo. Até pouco tempo atrás, eu olhava para todos com pena, pensando quem sobreviveria e se recuperaria totalmente dos machucados feios e expostos, mas agora eu, assim como todos, estávamos lutando para viver com aquela sopa...
Sem perceber eu me via no mesmo barco que essas pessoas, talvez bem menos ferida e com mais chances de sobreviver a essa guerra, contudo isso não me elimina da verdadeira realidade: eu posso morrer a qualquer hora e qualquer dia, não tem como fugir desta confirmação. A morte vem para todos, cedo ou tarde...
Uma tosse ao meu lado me desprende de meus pensamentos e eu paro de me deliciar da sopa e me viro. Meus olhos percorrem pelo cômodo inteiro até ver, ao meu lado, um soldado ferido, deitado desconfortavelmente na maca provisória. O homem tosse novamente e faz uma força exagerada para se erguer e ficar sentado, continuo olhando para ele enquanto ele não nota a minha presença.
Sua mão esquerda rapidamente se encontra com o braço direito e sua expressão facial é de dor. Muita dor. Mais uma tosse. O homem se ajeita para tomar sua refeição, sussurra palavras antes de pegar a tigela, e logo após fatia o pedaço de pão, come lentamente. Pego-me pensando o porquê eu o olhava além de comer... Não chego a alguma resposta lógica.
Pisco suspirando por todos nós estarmos no mesmo barco e volto a comer, desta vez faço o mesmo que o homem, fatio o meu pedaço de pão e como devagar. Não teria a necessidade de comer rápido, já que não irei para nenhum lugar e aquela refeição não seria dada a minha novamente.
Terminado a refeição, deito-me aproveitando as últimas fagulhas solares em minha parte, logo mais a Terra de deslocará trazendo em algumas horas o anoitecer. Eram poucas as chances de eu ficar relaxando e descansando despreocupadamente sobre a luz solar, antes da guerra tudo era mais fácil, porém nos dias de hoje, ir para fora de casa era sinônimo de testar a morte. Eu só saia por pura necessidade humana de querer água e alimentos.
Reflito comigo mesma como minha situação mudou drasticamente de um dia para o outro, porém a que custo? O que esta vida arrancou de mim para eu ter esse "luxo"? Esse mistério precisa ser solucionado de uma vez, pois não aguento mais o suspense... Anseio pela resposta. Mas mesmo eu ter mudado de endereço, eu saia que a guerra estava logo à minha porta, esperando fazer uma nova vítima. Eu escutava os barulhos das bombas, os assobios das artilharias russas avançando e destruindo tudo a sua frente.
Não sei bem onde está o foco da guerra, por simplesmente não me localizar nesta fábrica antiga, agora usada como um hospital, contudo estava mais perto do que eu imaginava. Os estrondosos sons estremeciam as bases do hospital, eu apenas orava fielmente para o edifício não cair sobre as nossas cabeças durante o dia.
Meus olhos pesados aos poucos perdem o contato com este mundo, os sons ao meu redor começam a se dissiparem e ficarem distantes de mim, e eu vou a um lugar que imaginava que jamais iria novamente: eu volto a sonhar.
[...]
Meu apartamento nunca mudará sua aparência de velha e destruída, por mais que eu tente arrumar e me esforçar em deixá-lo o mais organizado possível. Lamento silenciosamente sem querer chamar a atenção de Beike, caso acontecesse, ela virá correndo até mim e se realizará me pondo para baixo e me culpando por tudo. Satisfazer seu ego me humilhado renova as forças dela, por mais que eu queira negar...
Ando calada pelo edifício que se desfazia e caia aos pedaços a cada dia, vou até o porão e Beike surge avisando que o alarme do bombardeio já fora soado e que precisamos nos esconder por ali mesmo, mesmo sendo contra e fazendo protestos.
O silêncio trazia fortes sinais da morte e onde ela pareava. Prendo a respiração ao escutar passos no andar de cima e corro para me esconder, fico agachada e orando para não nos encontrarem, contudo três homens russos descem as escadas e meu coração para.
Beike é nocauteada com a arma e fica desacordada, os homens riem como se tudo fosse uma grande piada, eu iria me safar se não fosse por um deles que me vê levanto a mão para a boca para silenciar a minha respiração. Eles vêm em minha direção e me arrancam a força de meu esconderijo. Suas risadas maldosas voltam.
O brilho malicioso e perturbador dos olhos eles me deixam enojada, faço de tudo, luto para sair da mãos deles, porém é inútil. Ninguém vem ao meu socorro, estou perdida, condenada para sempre...
Eis que surge mais um dentre os três, o quarto era violento, tempestuoso, arranca os homens de mim e aponta a arma para eles, esperando o próximo passo deles, porém eles se calam e saem. O homem novo que surgiu, caminha preocupado em minha direção...
[...]
-Acorde, acorde -abro e fecho os olhos sonolenta sem entender o que acontecia. Um vulgo preto surge em meu campo de visão. Fecho os olhos e abro preguiçosamente confusa. Um homem estava me chacoalhando em um movimento repetitivo para me acordar. Ele parecia preocupado, só não entendo o porquê. -Senhorita, você está bem?
[...]
Minha mente se embaralha com a voz me chamando e os risos maléficos em minha direção. Não estou mais em meu porão, mas em meu apartamento. Dois homens me agarram com força, lágrimas escorrem com fúria e medo. Era impossível me libertar, inútil gastar minhas forças lutando para viver... Um terceiro soldado aparece e caminha em minha direção rindo.
Ele era semelhante aquele quarto soldado. Ou não? Tão iguais, contudo tão diferentes... Levo um tapa por espernear e tentar me soltar. Engulo em seco e grito em agonia quando o terceiro -ou fora o quarto soldado?- arranca a minha roupa com malícia nos olhos e um sorriso perverso...
[...]
-Senhorita -eu ainda estou sendo acordada pela mesma voz de antes. Sinto o meu rosto inteiro grudento por... lágrimas? O sonho fora real? Eu havia sido...?
-Por que me acordou? A noite ainda nem chegou -digo perdida com as coisas ao meu redor. Olho para fora confirmando com a minha fala, ainda estava de tarde. Não fazia sentido. Era um sonhos, não era? Esses homens não existem...
Um pouco mais acordada eu vejo quem era o homem, de início eu não reconheço, porém ao focalizar melhor, vejo quem eu nunca achei que veria novamente. O meu coração martela contra o meu peito fortemente e meu corpo inteiro acorda, saio com toda a força que tenho de suas mãos por sentir nojo, repulsa, humilhação...
Meu corpo inteiro dói e eu sinto a agonia em minha alma entendo o porquê eu estava no hospital, porquê Beike não estar comigo... Entendo as dores por todo meu ser, os machucados físicos, as dores... Eu não queria crer em minha visão, porém meus olhos já arregalados trazem a certeza absoluta de quem era ele: o homem dos meus sonhos, aquele que havia me... estuprado.
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