Capítulo 2 - LÍVIA
VOLTEI PARA A SESSÃO onde Henrique me esperava. Assim que entrei no local, as luzes já se encontravam apagadas e o filme já havia começado. Caminhei lentamente de volta para o meu lugar ao lado dele, ainda meio atordoada com o esbarrão no garoto de profundos olhos azuis. Não estava realmente aturdida com o nosso encontro súbito, mas a tensão que percorria meu corpo de ponta a ponta era pelo fato de, irracionalmente, eu ter ido a um banheiro masculino e ter limpado a camisa de um estranho com as portas trancadas. Eu realmente não sei explicar essa atitude insana, impensada e quase inconsciente que me tomou.
O fato de tê-lo visto sem camisa, tensiona ainda mais os meus músculos. Devo admitir que Enzo Bitencourt, como se apresentou segundos atrás, é um jovem muito bonito. Tem o rosto triangular, os cabelos são médios, castanhos claros, e bem penteados, o rosto exibe uma barba tímida, como se ele, de tempos em tempos, usasse a navalha. Mas, sem sombra de dúvidas, o que mais chama atenção nele são os olhos. De um azul profundo, sua íris é notável a muitos metros de distância e é totalmente encantadora. Eu diria que seus olhos chegam a ser sedutores.
O corpo, pelo rápido momento que pude observar, também é bem cuidado, músculos sem exageros e sua linha da virilha é extremamente forte. Eu fico ruborizada somente em lembrar.
Neste exato momento eu percebo como minha atitude precipitada vai além da insanidade. Por mais que Henrique seja pacífico e não tenha demonstrado nenhum tipo de ciúme obsessivo ou agressividade, eu sei que o fato o incomodaria. Sei porque sinto uma empatia enorme neste momento.
Tentando afastar os últimos minutos da minha mente, volto para o meu lugar ao lado dele. Assim que me vê, expressa um sorriso curto e segura minha mão quando me sento.
— Você demorou. — Diz com seu sorriso ainda curvado. — Onde está o refrigerante? — inquiriu e jogou alguns pipocas do balde entre suas pernas na boca.
Minutos antes de toda a confusão, tínhamos esquecido de comprar o refrigerante para acompanhar a pipoca. Então retornei para buscá-lo e na volta houve o desastre que me atrasou e me fez esquecer de adquirir outros para substituir o primeiro.
É, eu sei, sou uma desajeitada. Até agora não entendo como foi que eu consegui derramar o líquido nele. Talvez fosse culpa desses scarpins. Henrique me disse para não vir com eles, mas eu insisti, e agora me arrependo de não tê-lo ouvido.
Suspirei e sorri.
— Esbarrei num garoto. Eu o molhei todo com o refrigerante. Foi um desastre — conto — Com a confusão acabei me esquecendo de comprar outro.
— Você está bem? — Perguntou-me, sempre com seu ar protetor.
— Sim. Foi só um contratempo bobo.
Evidentemente eu ocultei o fato de ter estado com outro homem trancada em um banheiro masculino. Nossa relação é bem aberta, confidenciamos tudo ao outro, eu confio em Henrique e sei que ele confia em mim, mas por algum motivo eu não quis tocar nessa parte da história. E nem acho que seja necessário, visto que nunca mais irei me encontrar com esse garoto.
Henrique acena brevemente e me traz para um beijo singelo. Logo nos atentamos ao filme. Para nossa sorte temos o mesmo gosto por filmes: terror e comédia romântica. Hoje optamos por terror e eu gosto dessa onda de conforto que tenho ao lado dele quando me assusto com alguma cena e ele aperta minha mão de forma protetora.
Após o cimena, vamos a uma pizzaria e a noite corre de forma agradável. Henrique tem uma conversa afável, seu sorriso e suas gargalhada são contagiantes e eu gosto do modo como os olhos castanhos dele brilham intensamente.
Estamos juntos há pouco mais de dois meses. Conhecemo-nos numa manhã ensolarada no parque da cidade. Eu estava indo para a faculdade e ele fazia uma caminhada no perímetro. Fui atender ao meu telefone celular e, sem perceber, deixei minha carteira cair. Muito gentilmente Henrique veio até mim e me entregou. Agradeci sua gentiliza e ele me acompanhou o restante do caminho, já que nossos trajetos eram o mesmo.
Não irei dizer que foi amor à primeira vista, mas surgiu instantaneamente uma química diferente entre nós. Sua companhia, nos primeiros segundos, me fez me sentir um pouco acuada. Sua estatura imponente, talvez 1,90 metros, perto dos meus 1, 69, o corpo bronzeado naturalmente e alguns músculos pelo tórax e abdômen em que eu pude reparar, já que ele estava sem camisa. As pernas eram compridas e as panturrilhas, torneadas, à mostra por conta da bermuda de nylon que trajava. O rosto preenchido por uma barba cheia e bem aparada. A beleza dele era meio intimidadora, além de estonteante.
Mas o receio de sua presença logo se foi. Henrique vestiu a camisa e se apresentou. Muito educado e cordial, não houve um segundo que ele tenha demostrado segundas intenções. Por fim, mantivemos contato porque eu estava com alguns problemas trabalhistas com uma antiga empresa e Henrique, como estudante de Direito, se prontificou a me ajudar.
Ele me aconselhou bastante e depois me indicou um ótimo advogado que resolveu o meu impasse. Depois disso, nos víamos sempre, trocamos telefone e perfis nas redes sociais.
Uns três meses depois que havíamos nos conhecido, Henrique me pediu em namoro.
E desses dois meses e pouco pra cá têm sido os melhores. Henrique é carinhoso, atencioso e não é do tipo obsessivo ou ciumento, não é do tipo que me impõe com que roupa devo sair, ou se devo ou não falar com outros homens, nem me priva de querer sair sozinha com minhas amigas. E isso é ótimo pra mim, já que, da mesma maneira, eu não imponho nada a ele.
É isso que me faz o ver com outros olhos, com uma admiração completamente diferente.
Era quase meia noite quando chegamos em casa. Convidei-o para entrar e ficar mais alguns minutos comigo.
— Está tarde. Seu pai não irá gostar. — opôs- se.
— Sabe que ele não liga pra isso, Henri — rebati alisando a gola da sua camisa.
— Acho que esse é o problema dele. — Comentou bem humorado.
De fato meu pai, Marcus, não dá importância para esses fatos. Na realidade, já havia dito se Henrique quisesse passar uma noite ou outra comigo não haveria problema. Marcus Diniz é o homem mais liberal do mundo que eu conheço. E isso nunca me fez “sair da linha”. Ao contrário. Sempre fiz por onde honrar a liberdade e a confiança que ele depositou a vida toda em mim.
Ri de sua colocação e segurei suas mãos:
— Você sobe ou não?
— Vinte minutos. — Cedeu com um sorriso e subimos para meu quarto.
Deitei ao seu lado, aninhando-me em seus braços, já vestindo um pijama. Quando as mãos dele afagam meus cabelos, eu sinto a mesma sensação de aconchego e proteção que esse ato me proporciona. Ficamos muito mais que vinte minutos enroscados um ao outro. Perdemos a noção de tempo por dois motivos. Um: pela nossa troca de beijos e carícias. Henrique acarinha os meus ombros, meu colo; roça seus dedos sobre a linha da minha mandíbula enquanto a outra mão circunda minha cintura e sua boca trabalha calmamente na minha em um beijo macio e molhado. Dali a um segundo estou sobre seu peito, segurando seu rosto com as duas mãos e deixando tudo mais intenso.
Com um sorriso envergado, ele me afasta delicadamente e passa as costas dos seus dedos longos pela minha maçã do rosto. Sussurrando, alega que é melhor pararmos antes que avancemos mais do que devemos. E eu não posso deixar de sorrir diante a esse zelo. Não que Henrique não queira ter uma relação mais íntima, ele mesmo já deixou isso claro, mas ele tem respeitado o meu tempo. Eu ainda não me sinto preparada para darmos esse passo.
Dois: após nossa troca de beijos e carinhos, apagamos as luzes e pedi que ele ficasse comigo até eu dormir, só então Henrique poderia seguir para sua casa. No entanto, ele acabou sucumbindo ao sono e dormiu ao meu lado até as três da manhã.
— Lí, estou indo pra casa — sussurrou em meu ouvido, saindo do meu lado. No mesmo instante, apesar de estar quase inconsciente, meu corpo protestou ao sentir falta do calor da pele dele sobre a minha.
— Você tem mesmo que ir? — resmunguei sonolenta
— Infelizmente sim. Te vejo amanhã?
Acenei positivamente e Henrique se despediu deixando um beijo úmido e quente em meus lábios. Antes de sair definitivamente, me cobriu com o edredom e sussurrou um “eu te amo”.
Murmurei de volta e então ele se foi.
Voltei a dormir e em algum momento do meu sono eu sonhei com os profundos olhos azuis.
***
Despertei às sete da manhã com meu alarme soando irritante. Espreguicei meu corpo e por um segundo tentei entender que sonho maluco foi esse que eu tive com o garoto do cinema. Nos delírios do meu sono, Enzo, sem camisa, agarrava-me pela cintura e me punha em cima da bancada da pia do banheiro masculino. O vívido de seus olhos azuis eram tão reais no meu sonho que por um segundo eu quase acreditei que o beijo intenso e totalmente tentador que ele me dava era real.
O pior de tudo era que eu retribuía, juntando em seus cabelos, mordendo seu lábio inferior, escorregando a mão por todo seu tronco despido. Acordei em um salto quando, ainda no meu sonho, Henrique abriu a porta do banheiro e nos flagrou.
Devo ressaltar que alívio me percorreu quando a verdadeira realidade se fez presente e eu percebi que tudo não passava de um sonho. Todavia, continuava sem entender o porquê eu sonhei com ele.
Afastei os pensamentos absurdos da minha mente, me vesti para ir à faculdade e desci até a cozinha comer alguma coisa. Terminava minha higiene bucal quando ouvi o som da buzina do carro de Henrique. Agarrei minha bolsa, livros e cadernos e sai ao seu encontro.
Recebeu-me, como de costume, com um beijo e fizemos nosso caminho. Henrique deixou-me em minha faculdade e seguiu para a dele.
As palavras do professor ecoavam em minha mente, longínquo. Meu corpo estava presente, mas meus pensamentos insistiam em rebobinar as cenas quase eróticas do sonho com Enzo e, consequentemente, me fazendo lembrar dos olhos azuis penetrantes, do corpo bem cuidado e da voz meio rouca.
Mesmo tendo ciência que precisava me atentar às explicações do professor, para que eu pudesse fazer o exercício que ele daria a seguir, eu simplesmente não conseguia parar de pensar em Enzo, no encontro repentino, no azul intenso dos seus olhos. Dizem que a primeira impressão é a que fica, pois bem, aquele olhar sedutor, a tonalidade azul de sua íris que parecia ter vida própria, o modo como ele baixou os olhos pra mim enquanto limpava sua camisa; sim, eu tinha sentido esse olhar e cada centímetro do meu corpo vibrou imaginando ser um olhar 43.
Mas eu queria parar de pensar nele. Na minha concepção não é certo ficar com os pensamentos em outro homem quando se é comprometida. É verdade que eu não penso em Enzo com malícia. Não, não! Mas é quase impossível eu não me lembrar dos olhos azuis, do cabelo bem ajeitado, do rosto belo, do corpo com músculos tímidos e da voz bonita e agradável. Mas, principalmente, do sonho quente que tive com ele.
Eu quase posso jurar que senti meu corpo estremecer na vida real com o beijo que trocávamos no sonho. Era como se fosse possível que as sensações sentidas nos meus delírios pudessem atravessar a película entre realidade e imaginação e tornar aquele momento palpável, real.
Balancei a cabeça pela vigésima vez, tentando afastar a imagem de Enzo da minha cabeça. Precisava fazer algo para tirá-lo dos meus pensamentos; tentei me concentrar na aula; o professor andava de um lado a outro, gesticulando, fazendo anotações, contas e cálculos matemáticos no quadro branco, mas não foi o suficiente.
Peguei meu caderno, abri na última folha e comecei a rabiscar, escrever coisas sem nexo, palavras sem sentido, desenhos e rabiscos. Virei a página, de trás para frente, e fiz o mesmo processo. Virei outra e mais outra. Na quarta folha, estaquei. Nela havia uma pequena frase escrita, assinada com duas letras das iniciais de um nome e sobrenome, dono daquela caligrafia que eu bem conhecia. Ri baixinho, para não atrapalhar a aula, a mim mesma.
Nunca se esqueça que eu te amo
HH
No mesmo instante parei de pensar em Enzo, no sonho absurdo com ele, e me lembrei de como Henrique é carinhoso, gentil, amável e como sempre me diz coisas bonitas; recordei-me de como gosto de sua companhia, das mãos compridas e dos dedos longos alisando a linha da minha mandíbula, correndo soltos pela pele do meu braço, quando se emaranham nos meus cabelos e os massageia ali, no alto da minha cabeça, fazendo-me relaxar instantaneamente.
Outro riso. Perto da frase que deixou escrito ali, que ele certamente escreveu num desses dias em que esteve em casa, rabisquei um coração e escrevi:
Eu também.
Fui trazida de volta à realidade quando o professor bateu fortemente um livro na mesa, me fazendo sobressaltar. No mesmo instante, vi as pessoas se levantando, pegando suas coisas e saindo. Olhei no meu relógio de pulso. Era a hora do intervalo.
***
A semana voou como o vento e eu nem percebi. Era tanta coisa que eu tinha de fazer, que abrir e fechar os olhos, entre manhã e noite, era como uma fração de segundos. Faculdade, trabalhos, seminários e provas somados à correria que eu tinha na loja onde eu trabalho, conferir mercadoria, contar o estoque, realizar pedidos e tantas outras questões administrativas atribuídas a minha responsabilidade que quando eu percebi outro ciclo da minha semana estava se reiniciando.
Por mais que os últimos dias tenham sido uma loucura total, eu e Henrique conseguimos encontrar uma brecha para nossos encontros e momentos a dois. Como eu estava demasiadamente cansada com todos os meus afazeres, não quis sair para lugar algum, por isso Henrique trouxe DVDs, barras de chocolate, amendoins e mais uma porção de guloseimais hiper calóricas. Estourei pipoca e fizemos uma combinação ainda mais desnutritiva jogando leite condensado. Deliciando-nos com todas essas porcarias, assistimos a alguns pares de filmes entre romance, ação, aventura, comédia e, claro, terror.
Consigo apenas me recordar de estar farta de tanto doce e de adormecer entre as pernas de Henrique.
Para o meu alívio, não tive nenhum outro sonho com Enzo. A imagem do seu par de olhos azuis sequer passou pela minha mente e eu não pensei mais nele como tinha sido no dia seguinte a toda confusão que se deu no cinema.
Pondero que tudo tenha sido, realmente, uma coisa momentânea. Além de que, tenho certeza, meus momentos com Henrique preenchiam minha cabeça, e meu coração, não me permitindo ter qualquer tipo de pensamento com Enzo Bitencourt. E nem haveria porquê para pensar.
Abri os olhos e minha rotina começou tudo de novo. Me arrumei pela manhã, encontrei com Henrique e seguimos juntos para a faculdade; à tarde fui em casa, almocei e uma hora depois segui direto para meu trabalho.
Há dois anos que estou empregada em uma loja chamada Moda e Conceito, onde se vende roupas masculinas e femininas, sapatos e acessórios, todos de marcas renomadas e grifes. Junto comigo, minha amiga abre a loja por volta das nove da manhã. Victória Santos é uma doida varrida. De cabelos louros curtos e repicados, os lábios carnudos, a pele branca e os olhos verdes, é uma típica garota que adora ter encontros casuais.
Vic, como eu gosto de chamá-la, está na loja comigo há pouco mais de seis meses, quando minha patroa a contratou para cobrir o horário da manhã enquanto estou na faculdade.
Entrei na loja e a vi encostada ao balcão, fazendo algumas anotações. Segui para um cômodo onde deixamos nossos pertences pessoais, guardei minha bolsa, ajeitei meu uniforme, desamassei os cabelos, retoquei a maquiagem e voltei, pronta para trabalhar.
Ela me esperava com um sorriso radiante, com certeza ansiosa para me contar mais uma de suas aventuras sexuais. Era sempre assim. Desde o primeiro dia em que ela veio fazer um teste. Não se incomodou em confidenciar sua vida íntima comigo, a quem ela acabara de conhecer. Apesar da sua indiscrição, nossa primeira conversa me rendeu muitas gargalhadas por conta desse jeito desvairado que é sua personalidade. Desse modo, criei um afeto instantâneo por ela e deixei de me importar com seu jeito único e irreverente.
Enquanto ela tagarelava sobre sua noite anterior, dizendo como o garoto com quem saiu tinha os olhos maravilhosos, caminhei em direção às araras de jaquetas e comecei a conferir se estava tudo em ordem, sempre atenta as palavras de Vic, para que ela não ficasse furiosa comigo, caso não tivesse prestando atenção em suas desventuras.
Ajeitei algumas peças e passei para a próxima arara. Gosto de manter tudo organizado, por isso, é ritual eu chegar e conferir se tudo está em seus devidos lugares, aproveitando, dessa maneira, para ficar atenta ao estoque e às peças que a loja possui.
Continuei verificando as araras, sempre de costas para a porta principal. Virei-me um segundo depois que ouvi a campainha da entrada soar e, junto, passos adentrando a loja, pronta para receber o cliente que chegava.
Minhas pernas tremeram momentaneamente e meu corpo vibrou quando topei com aqueles olhos azuis penetrantes.
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