Capítulo 7 - LÍVIA
Recebi David alguns dias depois da insana ligação que lhe fiz. Sem muita explicação, eu havia entrado em contato com ele, conversamos por alguns minutos pelo telefone, foi uma conversa inocente, onde eu lhe relatei que gostaria de fazer algumas mudanças na decoração da casa e, após aquele encontro na loja de tintas, achei interessante a opinião de um profissional.
— Eu sempre soube que você se dá muito melhor com planilhas e gestão de negócios do que com decoração — David Menezzes disse, na ocasião, sua voz suave e feliz atravessando a linha telefônica.
E eu não pude conter algumas lembranças que, instantaneamente, cruzaram a frente dos meus olhos. Durante o tempo em que namoramos, uns seis ou sete anos depois de Alfredo ir para a França, eu era o tipo de mulher fechada e durona, centrada no trabalho, às vezes, severa demais em relação aos meus compromissos amorosos. David foi um dos pouco caras que se esforçaram para me entender realmente, entender por que eu não conseguia retribuir aos afetos e carinhos, às demonstrações de amor. Como sempre, eu não me abria com ninguém — além de Henrique — sobre meu passado com Alfredo. David foi um dos poucos que persistiram na relação, que tentaram atravessar, como ele mesmo disse no outro dia, o meu coração, quase intocável. Namoramos por cerca de um ano, e David, como alguns outros, saiu com o coração partido.
Ele pediu para que eu comparecesse à sua loja, no centro da cidade, para que pudéssemos conversar melhor. Na mesma hora eu quase senti o coração entalar na garganta. Ansiosa, toda uma série de acontecimentos começou a se formar na minha mente só de imaginar e andar sozinha pela rua... Coisas que poderiam realmente nem acontecer.
Por isso, preferi passar meu endereço e pedi que ele viesse até mim.
David veio. Conversamos somente o necessário. Ele não especulou minha vida nos últimos anos; na verdade, David foi muito profissional. Analisou os cômodos por qual eu o fiz percorrer, sempre me questionando como eu queria a nova decoração, para ele ter uma base e preparar o projeto.
Eu não soube muito o que responder. Apenas que queria um ambiente mais alegre e confortável. Ele não ficou mais que meia hora e pareceu entender de que eu não tinha a mínima ideia de como imaginava a decoração. Ele se foi, prometendo me ligar em alguns dias já com algumas ideias prontas.
E, ontem, quando Alfredo me perguntou sobre "o arquiteto", fiquei com uma terrível dúvida: eu deveria ou não lhe contar que o arquiteto que eu procurei é um ex-namorado? Por um instante, a dúvida pairou sobre mim como uma nuvem tempestuosa. Receei que Alfredo se sentisse enciumado ou incomodado... Que surtasse, que imaginasse coisas que não existem.
Afastando as dúvidas, acreditei ser melhor não lhe dizer nada, por enquanto, principalmente porque ele realmente me pareceu não se importar muito. Prometeu-me que faríamos isso juntos, mas já desistira parcialmente. Com o pretexto de que estará ocupado, deixou que eu resolvesse sobre isso sozinha... E também Alfredo sequer mostrou interesse em saber quem é o arquiteto, de onde eu o conhecia ou quem o indicou... E isso, de uma maneira esquisita, me aborreceu. A pouca demonstração de interesse do Alfredo me aborreceu.
Sendo assim, por ora não lhe direi nada.
— Você se dispersou outra vez, Lívia — Luís me trouxe de volta à realidade. Só então me dei conta de que estava deitada sobre o divã com a minha caderneta de sentimentos na mão, analisando cada uma das emoções que senti nos dias antes da sessão, e quando chegamos ao "duvidosa", Luís me perguntou por que eu me senti assim, da mesma maneira que me perguntou por que eu me senti em relação aos anteriores.
Dei um pigarreio e me ajeitei no divã.
— Isso ficará entre nós, certo?
— Claro — Luís assentiu, as pernas cruzadas, me olhando por cima dos seus óculos, com um habitual bloco de notas na mão. — Agora me diga por quê, e em relação a que, você sentiu dúvidas?
Tomei fôlego para meus pulmões e contei tudo a Luís. Da ideia de Alfredo pintar as paredes — porque seria divertido —, do meu encontro súbito com David, o ex-namorado, de eu tê-lo contratado para uma ajuda profissional e da minha dúvida se contava ou não para Alfredo sobre David ser quem ele é.
— Por que sentiu essa dúvida? — Luís perguntou, anotando alguma coisa em seu bloco.
— Não sei. Receei que Alfredo ficasse enciumado... ou alguma coisa assim. Ele, às vezes, surta com facilidade... Talvez eu quisesse apenas evitar uma confusão.
— Nada mais do que evitar uma briga com seu marido? — O psicólogo instigou, e nesse momento eu precisei olhar para ele.
— Haveria algum outro motivo? — Perguntei, querendo entender que tipo de insinuações Luís estava fazendo.
— Se você queria evitar uma discussão é porque se importa com seu casamento?
Pestanejei um segundo.
— Não... quer dizer. Eu me importo, mas...
— Mas quando discutiu com Alfredo no outro dia havia dito que não se importava, que você não o amava. Estou certo?
— Sim, eu disse essas coisas.
— Ainda acha que não o ama? Que continua a não se importar com seu casamento?
Precisei de alguns segundos para analisar a minha própria vida conjugal. Precisei me lembrar de Alfredo, do seu sorriso, do seu abraço, do seu modo sutil de estar tentando uma reaproximação — como essa história de pintura —, e fiz um esforço para sentir a mesma admiração de sempre.
Mas tudo que encontrei foi uma mistura de descaso e carência. Era um sentimento muito confuso.
— A verdade é que eu não sei. Desde tudo tenho dificuldade de me relacionar com Alfredo, nem consigo mais ter relações íntimas com ele... Não existe muito ânimo para isso e porque sempre me recordo... — e parei por um segundo, sentindo um nó na garganta.
— Entendo. — Ele disse apenas, e eu senti necessidade de continuar.
— Mas ao mesmo tempo que sinto isso, também sinto que se Alfredo tivesse me dado o divórcio quando pedi, eu me sentiria extremamente irritada e magoada.
Luís pareceu interessado na minha confidência.
— Por quê? — Indagou apenas.
— Porque ele estaria desistindo de mim, da nossa relação, mais uma vez.
— Mais uma vez? Ele já desistiu de você antes?
— Sim. Há uns dois anos. Estávamos noivos, e eu passei pelo momento mais delicado da minha vida. Enzo foi diagnosticado com leucemia, e Alfredo prometeu que passaríamos por essa fase juntos. Mas então ele descobriu a paternidade do menino, discutiu com Henrique, o irmão dele, porque queria reconhecer a o filho — Soltei outro longo suspiro. Por que mesmo estava revivendo tudo aquilo? — Henrique se opôs, é claro, por uma vida inteira ele fez o papel a qual eu privei Alfredo... Não que à época fizesse diferença... Enfim. A questão é que Alfredo desistiu. Voltou para a França e me deixou sozinha, com nosso filho numa cama de hospital fazendo tratamento contra a leucemia... Tudo para dormir com uma vagabunda qualquer! — Apertei o bloquinho em minhas mãos sentindo a raiva subir pelo meu corpo.
Ou seria ciúme por me recordar de me deparar com uma mulher no seu apartamento quando fui procurá-lo?
Luís acenou apenas e escreveu algo mais no seu bloco de notas.
— Se Alfredo tivesse lhe dado o divórcio quando pediu, há pouco mais de um mês, acha que o sentimento de mágoa e irritação que sentiria poderia ser comparado a quando ele retornou à França e te deixou?
— Sim, seria o mesmo sentimento.
Outro aceno de cabeça e mais algumas anotações. Passamos para os próximos sentimentos e fizemos o mesmo processo. Luís sempre instigando, apontando, questionando, perguntando, insinuando...
— Na última sessão eu te pedi para que tentasse, aos poucos, melhorar sua relação com Alfredo. Você fez o que te pedi?
— Sim. Tentei uma conversa.
— E como se sentiu?
— Como me senti em conversar com meu próprio marido?
— Sim.
— Eu não queria conversar. Apenas deitar e dormir. Mas perguntei a ele como tinha sido seu dia no Avenue. E depois ele quis saber do meu. E só. Não me estendi muito.
— E como você se sentiu? — Luís repetiu a pergunta, percebendo que eu não fora tão objetiva.
— Culpada.
— Por quê?
— Porque eu estava fazendo aquilo contra a minha vontade. Porque eu precisei me esforçar muito, muito mesmo, para iniciar um diálogo com ele. Porque aqueles olhos azuis brilharam esperançosos quando eu lhe perguntei do seu dia... Eu me senti culpada por não estar sendo sincera com ele. E no final, eu acabei me desculpando por isso.
— Se desculpou com Alfredo por estar sendo orientada a conversar com ele? — Abanei em positivo. — E qual foi a reação dele?
— Alfredo disse não se importar, que estava feliz pela minha tentativa.
— E como se sentiu em relação a isso?
— Eu não sei. Às vezes só tenho medo de magoá-lo.
— Se sente medo de magoá-lo é porque se importa? Talvez, lá no fundo, você sabe que ainda o ama?
E essa pergunta ecoou por um bom tempo na minha mente.
***
David me ligou cerca de uma semana depois que esteve em casa. Pediu-me desculpas por ter demorado e explicou que foi por causa de um segundo projeto que apareceu em sua empresa. Quando meu celular tocou, e identifiquei seu número na tela, me afastei alguns metros, já que Alfredo estava na sala jogando uma partida desastrosa de God of War com Enzo. Afastei-me pelo barulho de gritos e risadas dos dois e também porque queria um pouco de privacidade para falar com David.
Parecia bobagem minha, mas continuava indecisa se falava de Menezzes para Alfredo ou não.
— Já estou com seu projeto pronto — disse ele, após se desculpar. — Pode vir dar uma olhada quando quiser... — Fiz um silêncio denso por alguns segundos. David pareceu me entender. — Ou se você preferir, posso levar para você.
— Seria ótimo se pudesse vir aqui em casa.
— Claro, quando quiser.
— Amanhã, por volta das dez está bom?
— Sim, está ótimo. Estarei aí nesse horário. Até lá, Lívia.
Voltei para sala, Alfredo ainda sentado no sofá, o controle na mão, retorcendo o corpo como se resolvesse para os movimentos do personagem do jogo. Ele ria, Enzo dava alguns gritos, indicando movimentos que deveriam ser feitos. Por fim, Alfredo não conseguiu passar de fase, e teve de ceder o controle a Enzo, que resmungou alguma coisa sobre mostrar a ele como se fazia.
Alfredo me viu parada perto à porta, encarando os dois com um leve sorriso — e ele sorriu de volta.
Se sente medo de magoá-lo é porque se importa? Talvez, lá no fundo, você sabe que ainda o ama?
— Quem era ao telefone? — Me perguntou, mas não saiu do lugar.
— O arquiteto — e forcei um sorriso. — Está com o projeto pronto, me trará amanhã. Estará aqui para ver comigo?
— Não poderei, amor — e suspirou, como se realmente estivesse chateado com a situação. — Bernardo e eu teremos de ir até a prefeitura protocolar alguns documentos do alvará de funcionamento da nova filial. Sabe como essas coisas são burocráticas, não sabe?
Cruzei os braços e senti uma necessidade de me desviar do seu olhar. Por que mesmo eu estava ficando magoada por ele estar tão desinteressado em algo que ele mesmo sugeriu?
— Tudo bem. Achei que poderia contar com a sua opinião, já que eu não moro sozinha nessa casa — despejei, mais ríspida do que ponderei.
Ele me olhou, levemente assustado com a minha reação.
— Eu olho quando vier almoçar. Se eu tiver alguma objeção, você avisa ao arquiteto. Tudo bem assim?
Não lhe dei uma resposta verbalizada. Acenei em positivo e o deixei na sala com Enzo.
***
David chegou no horário combinado. Estava impecável e casual dentro de um blazer preto e jeans azul, os cabelos como sempre bem alinhados, e um cheiro quase inebriante de colônia importada. Trazia uma pasta debaixo dos braços, que caiu no chão quando, desajeitadamente, ele me deu um abraço. Rimos de seu desastre, e eu o ajudei a juntar a papelada.
— Vamos até o escritório — disse, o conduzindo pela casa — Podermos conversar com mais privacidade lá.
David entrou e parecia analisar o cômodo que se abria à sua frente. Atrás de uma mesa de carvalho, perto de uma enorme janela de vidro, havia uma estante com livros — também enorme. Entre livros e decoração, espalhava-se molduras de fotos, diversas delas...
À direita do escritório, uma poltrona confortável nos convidava para relaxarmos nela com algum livro nas mãos, enquanto, bem diante nossos olhos, a imagem do jardim desenhava-se através da janela de vidro.
David sentou-se em uma das cadeiras frente à mesa. Pegou um retrato nas mãos e olhou para ele.
— É sua filha e seu marido?
O retrato em questão mostrava Alfredo com Lara nos ombros, de costas, caminhando pela praia num entardecer esplêndido. Fora há cinco meses essa foto.
Sorri brevemente e me sentei do outro lado da mesa.
— Sim, são eles.
— É uma bela foto. — Elogiou e a pôs no lugar. Seus olhos foram para trás de mim, numa das prateleiras da estante. — E aquelas são...? — E apontou; olhei para trás, vendo um retrato de Sophie com Lauren. — Desculpe, estou sendo tão intrometido...
— É a primeira esposa do Alfredo, e Lauren, filha deles.
David me encarou com o semblante enrugado, confuso com minha declaração. O que era compreensível. Acho que não fui muito clara.
— Sophie já faleceu, assim como a pequena Lauren, num acidente de carro. Tem uns cinco anos.
Acredito que esse fato o perturbou um pouco, pois sua expressão mudara bruscamente.
— Isso é terrível. — Disse, soltando o ar dos pulmões.
— Sim.
— E você não se importa em ter uma foto da primeira esposa do seu marido na sua casa, no seu escritório?
— E por que eu me incomodaria? Não posso apagar da vida dele a passagem de Sophie. E nem quero. Ela foi de suma importância para ele... Parte do que Alfredo é hoje se deve a ela.
— Claro. — David sorriu, taciturno. — Acho que poucas mulheres seriam tão compreensivas. — Ele comentou, pondo sua pasta sobre a mesa e a abrindo. — Talvez devêssemos mudar de assunto, não?
— Também acho.
David tirou algumas impressões da sua pasta e foi me mostrando algumas ideias que criara para a redecoração da casa. Fora muito profissional, me explicando paleta de cores, combinações com ambiente, móveis e texturas. Escolhi três dos que ele me trouxe — um deles, inclusive, fez de toda a casa, do jardim à copa, por iniciativa própria — e disse que mostraria a Alfredo para saber a opinião dele.
Ao final, eu o acompanhei até a saída, conversando mais um pouco:
— A sua casa é linda e já tem uma decoração muito bonita também, não entendo por que quer redecorá-la.
Suspirei, levantando os ombros.
— É uma história um pouco longa. Quem sabe uma hora eu te conte.
David respeitou meu silêncio. Segui-o até seu carro, estacionado no pátio de frente para a casa. Ele entrou, puxou o cinto e deu a partida. Antes de ir, olhou para mim mais uma vez e disse:
— Acha que uma hora dessas poderíamos tomar um café juntos e colocarmos a conversa em dia? Para, talvez, você me contar essa história longa?
Um sorriso involuntário se manifestou em mim.
Não sabia se era certo ou errado, mas respondi, dizendo:
— Quando você quiser.
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