Garoto Cheio
"Já inventei todo tipo de personagem. E nenhum deles 'se apossou de mim' ou 'tomou conta da minha história', como dizem alguns escritores por aí, com certo orgulho de sua parceria com o além. Os personagens dominam essa estirpe nobre de artista da mesma forma que vermes caem sobre cadáveres."
Escrevendo No Escuro – Patrícia Melo
Criei Alastor quando tinha 12 anos. No começo ele era apenas um garoto da minha mente, que escutava meus desabafos e me consolava com palavras doces. Ele era alguém bom, do sorriso brilhante e olhar estrelado, com a voz aveludada e jeito agridoce.
† Primeiro Flashback – Garoto Cheio †
Corri meus olhos pela vizinhança, enquanto tentava pelo que parecia ser a milésima vez me ajeitar no pequeno espaço quadrado delimitado pela janela. De baixo de mim um fino travesseiro ajudava a me equilibrar no espaço pequeno e em meu colo repousava um caderno, aberto em uma folha em branca, somente com a data e o tema do trabalho anotados.
Era sempre desconfortável ficar pendurada na janela, mas a vista para o quintal do meu vizinho recompensava o sacrifício. Ele tinha um quintal cheio de árvores e arbustos floridos que me davam a sensação de estar presa em uma floresta encantada. Muitos pássaros passavam por seu quintal, deixando a rua mais alegre com suas melodias. Gostava de fazer meus deveres os ouvindo cantar, era relaxante.
Nesse dia específico, porém, a bela vista do quintal não parecia me trazer muita inspiração, já que me faltava vontade para começar a escrever sobre educação.
Batuquei a caneta em cima do papel, tentando pensar em um bom começo para a redação. Não entendia minha dificuldade, o dia na escola não havia sido tão ruim e a conversa animada da minha mãe com minhas tias no cômodo ao lado não me atrapalhava.
Em meu íntimo eu sabia, havia algo me incomodando. Isso não era novidade, sempre havia algo me incomodando.
Nada de incomum, apenas algo normal da idade. Estava entrando na adolescência e me rebelando contra o mundo. Também estava com depressão e frequentando duas vezes por semana o psicólogo.
Eu era alguém paranóica e sempre me achava o centro do universo, como a Terra no século XIX. Eu era alguém muito insegura com minha personalidade e aparência e costumava montar uma fantasia onde eu era alguém especial, de que algum dia veriam o quão incrível eu era.
Isso acabava me fazendo parecer arrogante e arredia com as pessoas, supondo que eu era melhor que elas, de que era diferente da maioria dos adolescentes.
Passava a maior parte do tempo sozinha, imaginando o dia em que tudo mudaria. Queria poder ter amigos verdadeiros que se orgulhassem de mim e um namorado, alguém que me amasse incondicionalmente e nunca fizesse eu me sentir sozinha.
Não, eu não namorava. Até aí nunca tinha nem beijado ninguém.
Já houveram alguns garotos que tentaram ser mais próximos, mas eu sempre me achei jovem demais. E eu nunca quis isso assim, para mim todos os garotos da escola pareciam vazios. Vazios demais, já se importando mais com o corpo das meninas do que com o meu sentimentalismo barato.
Se fosse para namorar eu queria um garoto cheio, cheio de vida, de carisma, de sentimentos. Um garoto cheio dos melhores traços que guardei de todos os garotos que já amei. Aqueles traços marcantes que ficaram guardados na memória.
Eu me lembro de gostar desse pensamento, tanto que larguei meu artigo de opinião sobre educação e comecei a escrever sobre um garoto perfeito, meu garoto perfeito.
O meu garoto perfeito teria sim a aparência do Esdras; o senso de humor do Roger; os olhos do Diego; o carisma do Paulo; a inteligência do Israel; a voz do Rafael; e o senso de aventura do Felipe. Mas ele também seria cheio de todo amor que eu merecia.
Eu gostei disso, parecia ser uma boa ideia ter um garoto que saberia exatamente o que dizer para me tirar do meu rio de decepções e do meu poço de solidão, que saberia me fazer feliz.
Contemplando minha lista e desistindo de vez do trabalho de Português, apoiei minha cabeça nas grades pretas da janela. Se não fosse por elas eu cairia alguns bons metros até atingir o chão, e tudo ficaria tão escuro quanto as grandes.
Preto. Eu nunca gostei muito dessa cor.
Preto me parecia cruel e sem sentimento. Vazio. Sombrio.
Talvez odiasse tanto o preto porque via o mundo nessa cor, triste, melancólico e anedônico. Sempre repleto de esforço e sorrisos forçados de pessoas cansadas, cujas almas pediam por socorro. Pessoas cansadas de seguirem a mesma rotina, desesperadas para escaparem de suas vidas medíocres.
Um ponto de vista um tanto quanto pessimista, mesmo que tendo um quê de realidade.
Acabei me perdendo em minhas filosofias soturnas até ser despertada com os gritos de minha mãe.
— Valentiiiinaaaaaaaaa! Vêm jantaaaaaaar!!! — mamãe tinha o costume de puxar a última sílaba o máximo que podia.
Quando me dei conta à noite já havia chegado, minhas tias já tinham ido embora e minhas costas doíam pra' caramba.
Antes de ir para cozinha ajudar minha mãe a colocar à mesa olhei uma última vez para o céu, estava muito escuro, como se aquela imensidão pudesse engolir o mundo com sua escuridão.
Apesar de não gostar do preto seria fantástico se meu garoto tivesse os olhos dessa exata cor.
Depois do jantar fui logo me deitar, pois ainda haveria aula no outro dia de manhã. Precisava deitar cedo, mas sempre acabava ficando um bom tempo com os olhos abertos, olhando para o nada.
Quando a hora de dormir chegava eu começava a me desesperar, porque eu sabia que no dia seguinte eu teria que me levantar e ir para a escola, encarar todas aquelas pessoas, sentindo que me julgavam a cada passo. Essa sensação era ruim, sufocante, como se estivesse me afogando dentro de um copo. Um copo fundo, cheio de água.
Na tentativa de dormir mais rápido, abracei meu travesseiro e coloquei uma música calma para tocar nos fones.
Era bom me afundar nos meus lençóis, escapando da realidade, indo para um jardim tão grande quanto o do meu vizinho. Grama verdinha, um lago cheio de patinhos e muitas borboletas e coelhinhos perambulando por lá, era assim minha utopia. Mas dessa vez havia algo diferente, ou melhor, alguém.
Uma pessoa estava se aproximando a passos curtos, vindo da outra ponta do jardim, sem pressa, como se nada a pudesse impedir de chegar até mim. Conforme a silhueta se aproximava pude reconhecer que era um garoto, alto, magro e com um amontoado de fios na cabeça, exatamente como eu imaginava que seria.
E então, quando o sol foi tampado por uma nuvem, pude contemplar seu rosto. Um sorriso brincalhão estampava seus lábios, as bochechas avermelhadas e seus olhos, seus olhos que para minha surpresa eram pretos.
Pretos como dois besouros inocentes que escavam das cavidades oculares de um cadáver, perambulando pela boca e saindo pelos ouvidos.
Pretos como os cascos reluzentes de um cavalo que caminha pelo inferno, amassando os ossos de almas atormentadas.
Mais perto. O garoto foi chegando mais perto, mais perto, mais perto.
Na vida real afastei minha cabeça até bater contra a parede, apertando cada vez mais o travesseiro em meus braços e cerrando os olhos, não conseguia abri-los, estava presa nesse jardim.
O garoto se aproximou o suficiente para colocar a cabeça ao lado da minha e sussurrar no pé de meu ouvido que seu nome era Alastor.
†
Esse foi meu primeiro contato com meu garoto, perfeitamente cheio com as melhores qualidades do mundo.
O garoto que me consolaria e me atormentaria.
Que me faria ir ao céu e ao inferno.
Que seria minha salvação e também minha perdição.
Às vezes me pergunto de onde veio o nome Alastor. Creio ter sido de algum dos livros bizarros que meu irmão costumava ler pela casa. Não importa.
Nessa época eu passei a gostar um pouco mais de preto, mas ainda não era minha cor preferida. E naquela época Alastor ainda parecia ser o garoto perfeito.
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