8
Homem leão
...
Mesmo saindo durante a madrugada o tempo aproveitado antes que o sol surgisse em plena majestade no céu foi pouco, não demorou mais de uma hora para que a temperatura subisse novamente.
—Eu sabia que o deserto era quente mas, não imaginei que fosse tanto.
Outra coisa que também não fomos capazes de aproveitar, ou melhor, eu não fui capaz de aproveitar, foi o silêncio, a humana pareceu ter deixado de lado todos seus ressentimentos desatando a falar como um dos pássaros das colinas de Whildy, aves extremamente inteligentes e tagarelas mas no caso, a humana parecia ser apenas tagarela.
—Mas se bem que todos eles devem ser quentes...
—Um deserto não se caracteriza apenas por areias, rochas e calor — respondi corrigindo sua observação equivocada — Também pode ser apenas um lugar vazio e sem vida.
—Não tinha parado para pensar nisso...
Sentia meus pés afundarem na areia, se não fossem pelas botas tinha certeza que estariam em carne viva agora.
—Então eu devo considerar a minha casa como um deserto?
Já estava me cansando daquela conversa.
—Você morava lá, então não — fui ríspido.
—Bom, mas acho que agora é...
Não me virei para trás para olha-la mas imaginei que tivesse se entristecido dado ao tom melancólico em sua voz.
—Eu diria que sua casa em breve se tornará uma ruína em meio ao deserto — disse tentando mudar o rumo da conversa — Você sabe o que é uma ruína?
Espiei a fêmea por cima do ombro vendo-a levar uma das mãos ao queixo com ar pensativo.
Pelos céus...
—Uma ruína são os restos de uma ou várias construções abandonadas pelo tempo — disse sem parar de andar — Seus pais nunca te contaram sobre isso?
Falar sobre ruínas era algo até comum já que haviam várias espalhadas por vários lugares desse mundo.
—Eu me lembro deles terem comentado sobre mas, confesso que nunca me interessei pelo assunto.
Voltei a olhar para frente parando de súbito.
—De qualquer forma — varri a nova paisagem com os olhos — Se interessando ou não é bom se preparar.
Senti o corpo da humana parar ao meu lado com uma expressão de puro espanto no rosto.
—Por que parece que vamos ter que atravessar algumas.
Além da areia e das rochas que ainda despontavam ao nosso redor uma terra escura e montanhosa surgia a perder de vista um pouco além na paisagem porém, o mais surpreendente era, sem sombra de duvidas, as várias construções em degradação perdidas no meio aquela terra estranha.
—Uau...
Ouvi a humana exclamar atrás de mim antes de eu retirar minha bússola do manto. Depois de tanto tempo andando e ouvindo a conversa fiada da garota tinha até me esquecido dela que, para minha surpresa, havia voltado a funcionar normalmente.
Ótimo!
Suspirei extremamente aliviado.
—Então... — a voz da fêmea voltou a ecoar — Precisamos mesmo ir até lá?
Afastando com os dedos alguns resquícios de poeira que cobriam minha bússola vi que a agulha indicava com clareza o caminho bem à nossa frente.
—Sim — guardei o objeto precioso de volta — E é bom nos apressarmos, não aguento mais toda essa areia.
Podia ter levado apenas um dia (se contar com ontem e hoje) e a metade de uma noite para chegarmos até ali mas de qualquer forma eu ainda acabei passando semanas, se não meses, perdido no Deserto das Almas.
E pensar que era só ter seguido as rochas...
Abandonei a frustração daquele pensamento antes de seguir em frente.
Depois de passar mais algum tempo, não sei dizer se foram minutos ou horas, caminhando sobre a areia atravessamos uma espécie de leito de rio completamente seco até finalmente sentir o chão firme sob nossos pés, o calor ainda era forte mas as dunas e rochas tinham ficado para trás.
—É estranho...
A humana pisoteava o chão como se o estivesse testando.
—E duro....
—Por que é feito de pedras — respondi um tanto irritado — E que eu me lembre a parte do Deserto Rochoso tinha o chão árido, seco e duro, isso não deveria ser novidade para você.
—Mas o chão do Deserto Rochoso era feito de terra e isso aqui — ela parecia admirada — É pedra!Tudo pedra!
Dada sua reação não consegui deixar de observa-la, mesmo algo tão comum a surpreendia.
—Imagina quantas pedras esse lugar dever ter!
Respirei fundo.
—Não se anime tanto, creio que mais terra surgirá — olhei ao redor da nova paisagem cinzenta — Tenho certeza que isso é apenas parte de uma montanha.
—Parece que existem muitas montanhas no mundo então.
—Se comparado a outras coisas não, não existem tantas.
—Tipo?
A encarei sem entender direito sua pergunta.
—Que outras coisas existem em maior quantidade do que as montanhas? — seus olhos brilhavam de animação —Areia?O céu?
—Também — me sentia um pouco desorientado com aquele tipo de pergunta.
—E o que mais existe então?
—Olha — estiquei a mão fazendo com que ela parasse — Não temos tempo para perder com tantas questões sem fundamento.
—Como não?Já saímos do deserto.
Respirei fundo(de novo).
—Mas isso não significa que mais salteadores não virão atrás de nós.
E quem sabe até mesmo ela.
Senti um arrepio involuntário.
—Acha que eles ainda estão atrás de mim? — sua voz refletia o medo que provavelmente estava sentindo.
—Eu diria que eles já encontraram outra pessoa para perseguir.
E tudo porque decidi ajudar uma garota de espécie estranha que acabei de conhecer.
—E essa pessoa, no caso, seria você?
Fechei os olhos respirando fundo, ultimamente o que eu mais fazia era respirar fundo.
—Você faz perguntas de mais sabia? — fui ríspido.
—Isso é um problema?
Cerrei os dentes.
A primeira aldeia...
Pensava enquanto tirava a trouxa das minhas costas junto ao manto branco.
É só aparecer a primeira aldeia e largar ela lá!
Desfiz as amarras que prendiam meu manto negro até me dar conta de que tudo estava em silêncio, quando olhei novamente para a humana ela parecia estar assustada com alguma coisa, só então me dei conta de que aquela reação se direcionava a mim.
O que foi agora?
—Você tem um rabo...
Mais uma vez ela pareceu responder aos meus pensamentos enquanto seu olhar era um misto de espanto e descrença.
—Sim — respondi alternando a atenção entre a humana e minha cauda.
—Isso é espantoso — a ouvi sussurrar — Além de estranho...
—Espantoso é ser o único indivíduo vivo de uma espécie que desapareceu misteriosamente do mapa!
Minhas palavras pareceram afeta-la mas não me importei, sei que tudo aquilo se dava apenas à sua curiosidade mas o estresse dos últimos dias já havia tomado conta de mim.
—Aconselho a não encarar ou dizer coisas do tipo caso encontrarmos qualquer outra pessoa no caminho, ou acabará me trazendo mais problemas! — me cobri com o manto negro que parecia se camuflar perfeitamente com as rochas.
—Me desculpe — seu olhar mirava o chão — Não queria ofende-lo...
As palavras dela tinham um tom sincero, desde as perguntas até mesmo aos sussurros e expressões faciais, tudo na humana demonstrava sinceridade, o que seria algo admirável se não fosse uma criatura tão irritante.
Suspirei me sentindo cansado de repente.
—Dexter.
—Sim mestre...
Meu Gouli se aproximou enquanto eu continuava com os olhos sobre a humana.
—Vá na frente e certifique-se de que as ruínas próximas daqui estão realmente abandonadas — mirei minha atenção nele — Não quero ter nenhuma surpresa desagradável quando passar por lá.
—É claro senhor — o vi fazer uma breve inclinação — Voltarei em alguns minutos.
Sem demora o pequeno Fhinger sumiu por entre as pedras ficando apenas eu, a humana e o silêncio que agora parecia estranhamente hostil.
—Bom — ouvi a garota murmurar depois de longos instantes — Eu ainda não sei o seu nome.
—Isso não importa — respondi com aspereza.
Houve mais um tempo em silêncio.
—Vou chama-lo de Homem Leão então...
—O quê? — indaguei surpreso.
Diante minha reação ela pareceu ficar completamente constrangida.
—E.eu só acho estranho não saber como te chamar, então...
—Não é a isso que estou me referindo! — a encarei — Você sabe o que é um leão?
Para alguém que morava no meio do nada deveria ser impossível saber o que seria um animal daquele porte, ainda mais vivendo no meio do deserto.
—Seu rabo é igual ao de um leão — sua voz era franca — E eu sei disso por que já vi algumas figuras desse animal nos meus livros.
Como se a dúvida estivesse nitidamente estampada no meu rosto ela enfiou uma das mãos por de baixo do manto branco puxando um livro de capa verde, aquele era o único que eu ainda não tinha visto.
—Hmnn — seus dedos folheavam com agilidade as páginas — Aqui está!
Mesmo ela se aproximando para mostrar as figuras no papel eu já tinha conseguido ver no instante em que o livro foi virado. Um leão de juba farta e postura nobre se encontrava no centro do que parecia ser um estandarte, no entanto, aquela não era a imagem de um animal comum.
Não, longe disso...
Um leão de juba farta, postura nobre e de longas asas. Encarei a figura sentindo meus pelos se eriçarem. Sem sombra de dúvidas aquele era o brasão utilizado pelos meus ancestrais a muitos séculos atrás. O símbolo da coragem e da liberdade.
O brasão dos grifos.
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