59
A mais pura verdade
Meus olhos doeram assim que a claridade do dia preencheu o cômodo, me sentia cansado e estranho, quase como se estivesse preso a um sonho muito longo, mas a verdade estava longe disso. Ao me virar deparei com Alícia, os cabelos amassados assim como a roupa, o peito em um movimento de vai e vem constante enquanto os resquícios do que aconteceu noite passada permaneciam no colchão. Ela não havia se entregado a mais ninguém antes, saber disso me causava uma sensação estranha. Aquela altura o abismo que a tanto lutei para fugir já tinha me engolido por completo e no fundo eu sabia que não conseguiria mais sair dele. Alícia se tornou alguém especial ao longo do tempo e depois dessa noite isso só havia aumentado, no entanto, não saber como ela reagiria a esse fato me deixava aflito. Grifos só possuem um único parceiro por toda a vida formando o que chamamos de Elo, porém, o mesmo não acontecia com outras espécies. Ter um Elo com alguém que não compartilhava do mesmo pensamento se tornava o maior dos motivos do meu povo ser considerado inalcançável, e agora eu estava ali, com a angustia me consumindo por ter formado um vínculo com uma especie completamente desconhecida e que eu não tinha um pingo de certeza se estaria disposta a assumir algo tão forte e simbólico.
Pare de pensar nisso.
Me virei encarando o teto.
É só esquecer...
Como se para me contrariar lembrei do olhar gentil da minha mãe junto do seu corpo manchado de sangue.
Você tem coisas mais importantes com o que se preocupar, foque-se nisso!
Decidido a não esquentar a cabeça com outros assuntos ignorei o aperto em meu peito pisando firme no chão, só depois de ficar de pé e dar alguns passos que me dei conta que as fisgadas de antes haviam sumido junto com a dor. Curioso retirei as faixas em torno da minha perna sem conter a surpresa de ver que o ferimento estava completamente curado. Em um passado distante a própria aura mágica do meu corpo seria a resposta mais plausível para uma rápida cicatrização, no entanto, eu não era mais capaz de usar magia. Então como? Sem ideia do que pensar achei melhor deixar aquilo para outro momento, o importante é que eu estava curado e agora podia me movimentar tranquilamente. Olhando uma vez para trás observei Alícia por mais alguns segundos antes de abrir a porta e descer as escadas.
O dia ainda estava nascendo clareando aos poucos o comodo cheio de tapetes, sofás e quadros. Julian e Mila dormiam juntos na cama improvisada que fizeram enquanto uma figura pequena se encontrava no chão em meio a um amontoado de cobertas. Devagar passei pelo casal e Lila contendo o impulso de segura-la no colo e leva-la de volta a cama. Reprimindo esse pensamento me adiantei para a cozinha até o quintal onde os raios dourados iluminavam a copa alaranjada da floresta. Ainda era cedo, todos dormiam enquanto eu me encontrava lá fora, mais uma vez aflito com meus pensamentos, no entanto, não era meu passado que incomodava e sim Alícia, a garota humana que salvei, a jovem irritante das peguntas sem fim e agora a mulher na qual criei um elo sem ao menos perceber.
—O que diabos deu mim... — sussurrei, a cabeça pesada assim como o corpo.
Meu foco sempre havia sido a vingança que jurei contra meu irmão, o assassinato da minha mãe continuava fresco em minha memória assim como a sensação das dezenas de mãos arrancando minhas asas aos puxões, a dor das lembranças era o que me impulsionava a seguir em frente, pensar apenas no passado e no ódio que nutria mas então, de repente tudo mudou, e graças a uma garota humana de língua afiada e respostas sinceras.
—Maldição...
Sentei em meio a grama sentindo o aroma do campo preencher meu nariz. Tudo naquele lugar parecia ser regado a calma e tranquilidade e, por alguns segundos me vi de volta a Igfrield, a calmaria de dias ensolarados, o sorriso das pessoas em trajes leves, o burburinho nos corredores de um palácio de torres brancas com estandartes de ouro, sentia falta de casa, mas lá no fundo eu sentia mais falta de outra coisa.
—Mãe... — fechei os olhos deixando a brisa tocar meu rosto — Me desculpe não ter ajudado, me desculpe por ser fraco...
Sentia meus olhos começarem a arder quando um cheiro familiar tomou conta de tudo, principalmente meus pensamentos. Ao olhar para trás me deparei com Alícia, os cabelos soltos, o leve vestido contornando suas curvas enquanto caminhava lentamente na minha direção. Ela estava linda, como sempre havia estado desde o dia em que a encontrei. Começava a perder meus sentidos vendo sua imagem quando me lembrei do motivo de estar ali fora, receoso e com a cabeça voltando a ser inundada por vários pensamentos virei os olhos em direção ao céu até que ela estivesse ao meu lado.
—É uma manhã muito bonita não acha?
—É — respondi — É sim...
O nervosismo me consumia por dentro conforme o silencio se prolongava.
Pergunte.
Minha cabeça não me deixava em paz.
Vamos, é só uma pergunta.
Respirei fundo tentando afastar a voz chata da minha consciência.
Pergunte logo!
—A-
—Sobre o que aconteceu ontem a noite...
Senti meu coração bater forte no peito. Pelo menos eu não precisei perguntar.
—Sim — Tentei parecer indiferente mas a verdade é que não conseguia encara-la nos olhos.
—Eu...
Precisava de todo o meu auto-controle para não me levantar e sair dali o mais rápido possível com medo de ouvir o que ela tinha para falar. Se acalme. Por anos passei por situações complicadas que exigiam muito de mim mas nada se comparava a isso.
—Eu acho que agora entendo o que Mila quis dizer...
Dessa vez consegui desviar meus olhos do céu para a mulher ao meu lado encarando um par de iris castanhas me observar repletos de medos e receios.
—Alicia você...
—O que eu preciso saber é!
Ela me cortou mas não me importei, estava surpreso com sua reação, principalmente por fechar os olhos e cerrar com força os punhos.
—Se você sente o mesmo!
Se eu sinto o mesmo?
"—Se entregar de corpo e alma..."
As palavras ecoaram alto na minha memória.
Se eu sinto o mesmo?
Ainda observei Alicia por longos segundos, sua pose defensiva, os olhos e punhos ainda cerrados. Foi então que me dei conta de que aquele assunto a assustava mais do que a mim. O que ela conhecia do mundo afinal?Nada. Sem me conter fiquei de pé a puxando de surpresa para um abraço apertado. Seu calor e seu perfume inebriando os meus sentidos e acalmando a turbulência dos meus pensamentos.
—Eu te amo Alícia...
As palavras simplesmente saltaram da minha boca. Por breves segundos tudo ficou em silêncio até eu sentir suas mãos rodearem meu corpo retribuindo o abraço.
—Eu também te amo Amenadiel...
Ouvir aquilo foi como um bálsamo para a minha alma aflita. Ela sente o mesmo. Afundei meu nariz em seus cabelos inalando mais do perfume que só ela possuía e, pela primeira vez anos, senti como se nada além daquela sensação e aquele momento importasse.
Preciso dela...
E essa era a mais pura verdade.
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