53
"A-alícia!"
Depois de um curto trajeto e alguns degraus chegamos até a varanda da casa de tijolos vermelhos e telhado de madeira, de longe ela parecia pequena mas vendo assim tão perto percebi o quão enganado estava.
—Bem vindos ao nosso doce lar!
Mila estendeu os braços acima da cabeça, parecia incrívelmente feliz.
—Por favor entrem!
Julian me soltou acompanhando a esposa que ia na frente.
—Não reparem na bagunça.
Alícia e eu trocamos um rápido olhar, estava na cara que a humana estava tão animada quanto a mulher com orelhas de coelho.
Já que estamos aqui...
Suspirando segui a passos mancos em direção a porta de madeira com entalhes de flores até estar em uma sala ampla com mesinhas, sofás e muitas almofadas espalhadas por todo canto.
—Como eu disse não reparem na bagunça — Mila se abaixou pegando algumas almofadas cheias de babados coloridos — As crianças nunca deixam nada no lugar.
—Crianças? — Alícia espiou pelos cantos — Não parece ter mais ninguém aqui.
—É por que elas estão na escola, mas quando chegarem tenham certeza que vai ser impossível não notar a presença delas.
—Sentem-se!Eu vou buscar a torta de maçãs e já volto!
Ainda receoso me mantive de pé mas, foi só olhar para Alícia e a cara que estava fazendo para logo me acomodar ao seu lado no grande sofá laranja.
—Que bom que não precisei te puxar até aqui.
Simplesmente a ignorei.
—E então?O que aconteceu com vocês para estarem tão machucados desse jeito? — Julian perguntou se sentando no sofá oposto — Pelo visto parece que se meteram em sérios problemas.
Era nítido que ele estava buscando por informação sobre nossa índole, mas eu não estava nem um pouco a fim de contar histórias no momento.
—Viajamos muito, problemas é o que não falta para pessoas como nós — me limitei a dizer.
—Entendo, e estão a muito tempo na estrada?
—Sim.
—Eu nem tanto.
Alícia se pronunciou ainda animada, internamente eu implorava para que não começava a narrar os acontecimentos do deserto das almas até aqui.
—Percebe-se.
—Mesmo?
—Você tem uma facilidade de confiar nas pessoas assim como minha esposa, já você — ele voltou a olhar para mim — É desconfiado com tudo, isso deixa bem nítido a diferença de tempo que os dois tem quando o assunto e viajar por essas terras.
—Vejo que você e sua esposa não são tão diferentes de nós — falei tentando ignorar minha dor na perna — Seu receio em nos trazer para cá e a confiança dela em querer ajudar dois estranhos, eu diria que seriam situações bem parecidas.
—Tem razão — o vi esboçar um meio sorriso — Mila é sonhadora e vê bondade em todo mundo.
—Já você é pé no chão.
—Sim, alguém tem que protege-la.
Que comovente...
Controlei minha vontade de revirar os olhos.
—Assim como você deve estar protegendo ela.
Julian olhou para Alícia que estava dispersa com algumas pinturas na parede.
—Digamos que isso se tornou uma obrigação.
Uma exaustiva e quase impossível obrigação.
—Obrigação ou não, acabamos fazendo de tudo para ver quem gostamos feliz — seus olhos miraram a cozinha.
Aí ouvir aquilo foi impossível não me recordar de todas as vezes que acabei indo contra minha própria palavra para proteger a humana.
Eu amoleci.
Suspirei.
—Bom, e sua perna?Parece que foi algo realmente feio.
—Está melhor do que parece — menti — Só preciso descansar um pouco.
—E comer também!
Mila apareceu segurando uma grande bandeja de prata nas mãos.
—Aqui está!Espero que gostem!
—Meu amor, poderia ter me chamado, eu trazia para você...
—Não estou doente amor, e já te disse várias e várias vezes que estou bem.
Observei atentamente um ajudar o outro enquanto montavam uma pequena mesa a nossa frente, haviam vários pedaços de torta, algumas xícaras e biscoitos coloridos.
—O cheiro está ótimo!
A fome arrancou Alícia dos quadros.
—Espero que o sabor também.
—Com certeza vai estar, você sempre cozinhou muito bem.
As bochechas de Mila ficaram vermelhas com o comentário do marido.
—Poxa!Esqueci o chá...
—Eu pego.
—Mas...
Antes que ela pudesse protestar ele já havia se levantado.
—Acho que vou me juntar a vocês então.
—Posso te fazer uma pergunta?
A mulher coelho mal se sentou e a língua afiada de Alícia já havia começado a trabalhar.
—Mas é claro, aqui, pegue um pedaço antes.
Ela estendeu um pires com uma fatia generosa de torta, primeiro para a humana, depois para mim.
—Obrigada.
—Obrigado.
Dissemos juntos. Mila se limitou a sorrir.
—E então, o que gostaria de perguntar?
—Por acaso você está doente?
Encarei (mais uma vez) Alícia mas minha mensagem ocular para deixar de ser tão indiscreta passou despercebida.
—Não, não, estou perfeitamente bem de saúde.
—Ah, é que o Julian te trata com tanto cuidado que pensei que estivesse doente.
Alícia finalmente ocupou a boca com a torta.
—O cuidado extremo dele acaba dando essa idéia, mas é apenas o jeito dele de lidar com nossa atual situação.
—Que tipo de situação?
Aquela conversa ia ser longa, sem energias para papo furado me concentrei em comer. Estava faminto e com uma fome de leão.
—Estamos esperando um filho.
—Ué, eles não vão chegar logo logo da escola?
Mila riu, eu simplesmente respirei fundo.
—Não, não é isso — suas mãos foram até o ventre fazendo carícias — Estou grávida.
—Uma nova benção para nós.
Julian apareceu carregando o que parecia ser uma chaleira.
—Por isso deveria se cuidar mais.
—Gravidez não é doença sabia?
—Eu sei, não é a primeira vez que passamos por isso.
O vi se aproximar servindo uma xícara com a bebida para mim, pelo cheiro julguei ser algum tipo de chá de camomila.
—Obrigado.
Ele foi servir Alícia.
—Pois bem querido, não precisa estar sempre tão preocupado.
—Apenas procuro o seu melhor querida.
O vi se afastar para servir a esposa.
—Grávida?
Olhei para Alícia que já havia terminado de comer.
—O que isso significa?
Pelos céus...
—Você não sabe?
Tanto Mila quanto Julian pareciam abismados.
—Não.
Eu mesmo estava parcialmente surpreso, as vezes me esquecia que ela viveu sozinha no meio de um deserto.
—Significa que estão esperando um bebê — falei.
Alícia não respondeu, olhou para Mila e Julian antes de fixar a atenção nas mãos da coelha que ainda as mantinha sobre o ventre, internamente conseguia ouvir as engrenagens da cabeça dela funcionarem.
Aí vem coisa...
—Um bebê? — ela finalmente falou — Tem um bebê aí dentro?! — Sua surpresa era mais do que nítida.
—Sim querida — Mila pareceu ter se recomposto — Estamos esperando um bebê.
A boca da humana se abriu em um perfeito O.
—Que incrível!
Seu sorriso era de orelha a orelha arrancando outro de Mila.
—Sim!
—Mas...
O tempo com a humana já havia me ensinando quando seus momentos de perguntas infinitas haviam começado e aquele definitivamente era um deles.
Pelos céus...
—Mas?
—Como vocês colocaram ele aí dentro?
Tive que tossir para retirar o líquido quente que havia entrado em meus pulmões ao ouvir aquilo.
—A-alícia! — minha voz estava completamente rouca.
—O quê?O que eu fiz de errado?
Seu olhar inocente só servia para piorar a situação. Quando olhei para o casal vi que Mila gargalhava alto enquanto Julian se virava procurando um pano para limpar o chá que tinha derramando na própria roupa, também não pude deixar de reparar no tom vermelho que sou rosto havia ganhado e, para ser sincero, não duvidaria que o meu estivesse igual.
Francamente...
—Por favor nos desculpem por isso — falei — Digamos que Alícia não sabe muito sobre a vida...
—Eu diria que quase nada.
Mila olhou para a humana que continuava sem entender o que aconteceu.
—Creio que podemos conversar sobre isso depois querida.
A vi dar uma piscadinha rápida para ela.
As situações em que eu me encontro...
Naquele momento minha vontade era de sumir.
—Mas acho que agora é melhor tomarem um banho e descansarem, temos um quarto de hóspedes lá em cima e creio que conseguirão dormir um pouco antes das crianças chegarem.
Por incrível que pareça ela conseguiu contornar a situação mudando o clima constrangedor do lugar.
—Venham, vou mostrar onde fica.
Enquanto Julian arrumava a sala Mila nos acompanhou até o segundo andar indicando uma porta no final do corredor.
—Não é lá muito grande mas é confortável.
No cômodo havia uma cama, um pequeno guarda roupas, um espelho e uma grande tina de madeira além de duas janelas onde uma brisa suave entrava, por elas ainda era possível ter uma ampla visão da vasta floresta laranja e o céu azul.
—Há uma manivela que bombeia a água de um dos nossos poços até aqui em cima, pode usá-la para encher a tina.
A vi apontar para uma espécie de torneira.
—Só vou pedir para o Julian ajustar a temperatura, enquanto isso você pode se lavar no meu quarto Alícia, imagino que depois da situação de minutos atrás vai ser melhor para ambos.
Com certeza...
—Eu ainda estou sem entender...falei alguma coisa errada?
—De forma alguma querida — o sorriso dela era de pura compreensão — Podemos conversar enquanto te ajudo com o banho, que tal?
Alícia olhou para mim, receosa, sabia que ela ansiava por informações, independente do tipo, e aquilo definitivamente era algo que eu não seria capaz de explicar para ela mas no fundo entendia que outra coisa a preocupava.
—Não vou sair daqui — a acalmei — Pode ir tranquila.
A vi arregalar os olhos surpresa.
Sim, depois de todo esse tempo eu consigo ter idéia do que você está pensando.
—Está bem...
Sem dizer mais nada observei as duas saírem antes de fechar a porta e me escorar na madeira fria.
—Francamente...
Levei ambas as mãos até o rosto enquanto deixava as palavras fluírem assim como o ar preso em meus pulmões.
—No que a minha vida se transformou?!
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