50
Pesadelos
Toda a dor, medo e desespero foram se esvaindo conforme o tempo com Alícia passava, estava tão concentrado naquele momento que mal vi quando Lance se aproximou tocando meu ombro. O grande espírito das águas não estava mais alí, e por incrível que pareça, pareceu ter levado todos os sentimentos ruins para o fundo do lago com si, tanto os meus quanto os do tritão que agora possuía um semblante mais calmo e sereno.
—Como ela está?
Seus olhos azuis miraram Alícia.
—Parece que bem — fiz o mesmo — Mas só vamos ter certeza quando acordar.
—Acho que ficarei com essa dúvida então.
—O que quer dizer com isso?
—Já cumpri meu objetivo, encontrei minha mãe, agora preciso descobrir quem fez aquilo, quem a raptou e onde as outras sereias estão.
Dessa vez foi eu quem o encarei.
—Está indo embora?
—Parece que sim.
Um breve silêncio pairou sobre nós, ao longe os ventos tocavam as folhas laranjas que se desprendiam das inúmeras árvores, no entanto, até mesmo aquelas que caíam sobre o lago não eram capazes de criar um movimento sequer em sua superfície.
—Vamos, não faça essa cara gato, por incrível que pareça gostei da sua companhia nesse tempo.
—Sabe que essa fala deveria ser minha, não sabe?
Sorrimos um para o outro, toda a estranheza e apatia deixadas de lado.
—Mas é sério, eu gostei do tempo que passei com você, principalmente com Alícia, mesmo que tenha sido pouco ela conseguiu mudar alguma coisa em mim durante nossa breve conversa.
—Ela tem essa capacidade.
Olhei para o semblante calmo da jovem relembrando momentos do passado.
—Sim, é fácil entender por que está tão apaixonado por ela.
—Ei!
Lance riu, estranhamente foi satisfatório vê-lo esboçar alegria depois do que aconteceu com sua mãe. Yhnara realmente pareceu ter levado todos os males que nos assolavam.
—Vai mesmo embora?
—Sim...
Mais uma vez o silêncio.
—Foi bom te conhecer peixe.
—Digo o mesmo pulguento, mas não fique tão decepcionado, o grande Lance pode voltar a cruzar seu caminho novamente!
—Tenha certeza que não estou contando com isso.
Rimos juntos.
—Se cuida cara, principalmente dessa pequena aí.
—Vá pela sombra.
O tritão e eu trocamos um último olhar, nele, foi dito tudo o que as palavras não foram capazes foi. Eu ainda o achava irritante, metido e um pé no saco mas lá no fundo tinhamos muito em comum e, no final das contas, eu poderia dizer que o tucunaré se tornou um bom amigo.
—Mestre...
Observei a figura azul se distanciar entre as árvores até sumir completamente.
—Sim, Dexter...
Meu corpo pesava.
—Vou sentir falta do Lance.
Olhei para meu Gouli em meio a grama alta.
—Tenho que confessar que também vou sentir falta dele.
Com passos mancos fui em direção a árvore mais próxima me sentando sob a sombra de uma imensa copa laranja.
Que dia...
Pensei enquanto soltava o ar preso nos pulmões. Os acontecimentos invadiam minha mente como raios. De relance olhei novamente para Alícia que ainda dormia, em outro momento seu sono teria me preocupado mas daquela vez me sentia ser embalado por uma sensação parecida.
—Mestre...
—Sim...
Minhas vistas estavam turvas.
—Posso tirar um cochilo?
—Claro.
Não via meu Gouli, apenas borrões, todo a tenção e energia que mantinham meu corpo desperto e alerta havia desaparecido trazendo apenas o cansaço acumulado dos últimos dias.
—Olha só o que você fez comigo... — sussurrei, a imagem de Alícia ainda em meus braços cada vez mais dispersa.
—Quem diria...
Descansei uma das mãos em sua cintura, o calor da sua pele invadindo a minha.
Que eu voltaria a me preocupar tanto assim com alguém...
•••
O sol nascia preguiçosamente pelo mar de nuvens brancas, pelas enormes janelas a luz do dia invadia o quarto em linhas douradas iluminando os entalhes de ouro e bronze da cama e do espelho.
—Amenadiel...
Uma voz doce me chamava ao longe.
—Vamos, acorde, vai acabar se atrasando.
Senti o toque morno de algo em minha testa, de vagar abri os olhos encontrando longos cabelos brancos caindo como cascatas pelo meu rosto.
—Mãe... — me virei afundando a cara no travesseiro — Estou com sono.
—Foi dormir tarde ontem a noite, não foi?
Não respondi.
—Deixa eu adivinhar...
Senti o colchão afundar do lado em que ela estava.
—Passou a noite voando por aí.
—Não...
—Isso não foi uma pergunta — ela riu.
Desconcertado e com falta de ar ergui novamente o rosto na sua direção.
—Não consegui dormir — confessei — Minha cabeça não parava...
—Sei que é uma responsabilidade muito grande mas, você foi escolhido meu filho, isso é uma honra para qualquer um do nosso povo.
—Eu desejaria não ter sido escolhido...
Minha confissão pareceu entristece-la.
—Você está assim por causa do seu irmão, não está?
Desviei o olhar, não queria ter que responder aquilo mas seu silêncio arrancou minhas palavras sem que eu me desse conta.
—Galadiel me odeia, tudo por que nasci com isso! — abri os dois pares de asas que se estenderam para fora da cama — Por que mãe?Por quê?! — conseguia sentir o aperto do meu peito subir para a garganta — Por que eu não nasci com apenas um par de asas?Por que eu tive que ser o terceiro filho? Galadiel e Galadriel são gêmeos, se fosse apenas eles meu irmão ainda seria o sucessor do trono, se eu não tivesse nascid-
Sem que eu esperasse mamãe se jogou até onde eu estava me abraçando forte, as palavras que embaralhavam minha mente e machucavam meu peito se silenciaram. Mas a dor continuava lá.
—Amenadiel...meu amado Amenadiel, há certas coisas que acontecem em nossas vidas que não vamos ter uma resposta...
Afundei meu rosto em seu pescoço. O calor da mamãe era bom, assim como o cheiro.
—Mas nada é pelo acaso...
—Eu só queria ser normal...
Minhas palavras estavam embargadas. Não queria chorar.
—Ninguém é igual a ninguém meu filho, cada um é especial justamente por ser diferente — devagar ela se afastou para me olhar nos olhos, o olhar dourado brilhando com os raios do sol — Eu também sou diferente, vê...
As enormes asas brancas se abriram, fiquei a observando por longos segundos, hipnotizado.
—Quantas vezes você viu algum outro Grifo branco como eu?
Sua voz era suave, doce. Assim como o cheiro.
—Por ser albina eu deveria ter sido rejeitada, não poderia dar um filho a quem se casasse comigo, e você sabe o quão importante uma criança é para a continuidade do nosso povo...
Vagamente me lembrava de uma das aulas do senhor Konean, um homem velho de cabelos grisalhos, sua mão apontava para os livros em nossas mãos enquanto falava algo sobre os Grifos só darem a luz a uma única criança, e como era um milagre o nascimento de um segundo filho, então seus olhos cinzas pararam sobre mim assim como o de toda a turma. O olhar que todos tinham no rosto ao cruzar comigo pelos corredores do palácio, no comércio, nas aulas, o olhar de admiração e espanto, o olhar de quem observa algo que não deveria existir. O olhar que sempre me assustava.
—Sou tão diferente quanto você meu amor...
Deixei as memórias de lado me concentrando em minha mãe, o olhar dela era diferente, era o único que não fazia meu peito apertar.
—Mas nem por isso deixei de acreditar que minha vida tinha um propósito.
Voltei a me aninhar em seus braços, ela era quente, acolhedora.
—Então você e seus irmãos nasceram...
Sentia meus olhos pesarem, o sol já havia nascido mas o sono tomava conta de mim.
—Você também vai descobrir seu propósito meu filho...
A voz dela estava distante mas o cheiro continuava ali não. Tão perto. Tão doce.
—E até lá estarei com você.
Senti a escuridão me embalar, calma, tranquila e aconchegante mas então o calor que antes me aquecia se tornou frio, o sentimento de tranquilidade esmagava meu peito em uma angústia incontrolável surgia.
—AMENADIEL!
Meu corpo estava pesado, não conseguia me mover, sentia mãos frias me tocarem enquanto era empurrado para o chão. Havia vultos ao meu redor mas não conseguia reconhecer ninguém, não haviam rostos, apenas olhos, os mesmos olhos que sempre me assustavam.
Não...
—Isso tudo é culpa sua!
Não...
—Eles morreram por sua causa!
Não, não...
—ELA morreu por sua causa!
As mãos me seguravam com mais força, não conseguia me mover, não conseguia fugir.
—Você não deveria ter nascido.
Senti o toque frio daquelas mãos. Todas puxavam, sem piedade, sem compaixão.
Não!Parem!
Uma dor alucinante percorreu meu corpo enquanto minhas asas eram arrancadas uma a uma.
NÃO!
Tudo doía.
PAREM!
Mas eles não paravam.
—NÃO!NÃO!!
—Amenadiel!
—POR FAVOR PAREM!
—AMENADIEL!
...
—AMENADIEL!
Acordei suando frio, o coração martelando no peito, o corpo pesado e minhas cicatrizes queimando.
O que aconteceu?!Onde eu estou?!
—Ei!Amenadiel!
Olhei em direção a voz que me chamava deparando com Alícia, os olhos arregalados e preocupados me encarando atentamente.
—Você... — sussurrei antes de me agarrar a ela com a respiração ofegante, o medo e o pânico ainda circulando minha cabeça.
—Está tudo bem...por favor se acalme...
Se acalme...
Repeti para mim mesmo.
Foi um pesadelo, uma lembrança, apenas isso...
Devagar o aperto no peito que me sufocava foi se esvaindo, ainda continuei abraçado a humana até que minha cabeça finalmente voltasse ao lugar, quando isso aconteceu a soltei no mesmo instante.
—Você está bem?
Meio desconcertado desviei meus olhos do seu. O que eu acabei de fazer? Fiquei vulnerável na frente dela, logo dela, a criatura mais ingênua e frágil que conheço.
—Estou — disse tentando afastar aqueles pensamentos.
—Bom, não era o que parecia!Me afastei por um minuto e você começou a gritar feito louco!Fiquei preocupada!
Preocupada?
Ironicamente me lembrei do jeito que fiquei ao imaginar ela se afogando dentro do lago.
—Já falei que estou bem...
—Até parece!Não com um machucado desse!
Sem entender ao que ela se referia me virei encarando sua pessoa, no entanto, tive que desviar novamente os olhos. O corpo da humana estava em volto em um tecido fino e transparente, o mesmo que compunha parte da veste que usei para me disfarçar com Lance.
O que diabos deu em mim?!
A nudez nunca foi um motivo para anormalidades no meu comportamento, os Grifos sempre trataram isso de forma natural, e além do mais, a humana não era a primeira mulher que eu vi dessa forma.
Mas então por quê?!
Retomando o controle sobre mim mesmo foquei meu olhar no seu semblante sério.
—O que aconteceu com você?!Sua perna tem um buraco!
—Um buraco?
Segui a direção que seu dedo apontava vendo mais do mesmo tecido só que dessa vez amarrado em volta da minha panturrilha.
De onde isso surgiu?
No mesmo instante me lembrei de quando desabava em direção a um rio de águas turbulentas.
Ah...
Provavelmente o buraco ao qual Alícia se referia foi causado por uma das adagas que ela arremessou na minha direção.
Uma mira impecável.
Tinha que reconhecer.
—Isso não é nada, deve melhorar em alguns dias...
Se estivesse envenenada eu já teria sentido os sintomas...
—É claro que vai melhorar!Por que eu estou cuidando!
A vi dar um tapa sobre o tecido atingindo meu recente ferimento.
—Aí!
—Não pense que vou pedir desculpas por isso!
E um obrigado por ter te salvado?
—O que deu em você?! — indaguei sentindo minha perna doer.
—Eu não me esqueci da nossa conversa antes daquela coisa me pegar! — seu semblante furioso era, de certa forma, reconfortante — Depois disso parece que minha memória simplesmente apagou!Aí acordei aqui, sem minhas roupas e principalmente sem minha bolsa com meus livros, você estava apagado com um buraco horrível na perna, primeiro fiquei com medo por que você não acordava, depois triste por que não estou mais com meus livros e agora com raiva por que ainda me lembro da nossa última conversa!
Suas palavras me atingiram em cheio. Não sabia o que falar.
—Eu...
—E é bom se preparar! — ela se lavantou com tudo fazendo o tecido preso em seu corpo cair — Por que vou te encher com tantas perguntas que sua cabeça vai doer tanto quanto sua perna!
Sem dizer mais nada ela se virou indo em direção ao lago com os passos firmes e o corpo rígido.
Francamente...
Desviei os olhos me perguntando com desgosto o que acabaria comigo primeiro, a dor na minha perna, a visão daquela mulher sem roupas ou as milhares de perguntas que estavam por vir.
Isso sim é que é um pesadelo...
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro