46
Ela
O novo cômodo descoberto era, assim como imaginei, amplo, talvez duas vezes maior que o primeiro, não sei se isso se dava apenas por seu tamanho ou a organização do lugar. Não haviam pilhas de objetos, roupas ou baús jogados pelos cantos, ao invés disso prateleiras de ébano se encontravam organizadas com livros, pedras brilhantes, potes e bonecas, dezenas delas nos observando com os olhos vazios, no entanto, nenhuma estava trajada.
—Maravilha, mais dessas coisas...
—O que foi peixinho? — passei pelo tritão indo até o centro da sala — Perdeu a animação?
—Seu senso de humor é excepcional.
—Eu sei.
Deixando Lance de lado me concentrei no imenso tapete ornado com figuras de animais que forrava o chão, sobre ele almofadas de cetim coloridas estavam organizadas no centro do cômodo bem abaixo de uma cortina de tecidos lilases, de algum lugar do teto uma luz tênue criava linhas luminosas sobre as cortinas dando um ar místico ao lugar, conseguia sentir a aura mágica emanar por todo canto, porém, diferente do aspecto calmo e tranquilo a sensação era de estar sendo esmagado e comprimido ao chão.
De onde isso está vindo?
Olhei ao redor mas não havia nada. Porém, a sensação continuou, se intensificando cada vez mais.
—Dexter, tem certeza que estamos sozinhos?
—Sim mestre, não há mais ninguém aqui.
—O que foi agora?
Aos poucos o incomodo crescia dentro do meu peito.
—Mestre?
Aquilo começava a se tornar sufocante.
—Amenadiel?
Sem motivos ou explicações senti minhas pernas travarem, não conseguia mais me mover, os pelos do meu corpo se arrepiaram enquanto ouvia meu coração martelar dentro do peito.
—Ei cara?O que f-
—Escondam-se! — Gritei. Ambos me olharam sem entender nada.
—O quê?
—Por que mestre?
Não havia tempo para explicar, não agora.
—Rápido!
Ainda abismados com minha reação repentina Dexter e Lance me encararam por longos segundos antes de começarem a se mexer. O mais rápido que pude corri em direção as prateleiras mais ao fundo, empilhadas com caixas de madeira e grandes almofadas criavam um esconderijo perfeito.
—Se isso for uma brincadeira...
—Quieto!
Imediatamente ele se calou. Por intermináveis segundos tudo ficou em silêncio, conseguia sentir o peso dos pensamentos naquela sala quando a sensação de antes se intensificou ao ponto de se tornar sufocante. Meu corpo parecia ser comprimido contra ao chão sem possibilidade alguma de mexer um único dedo. Não haviam dúvidas, só existia um único motivo capaz de causar aquilo.
É ela.
Sem sons de vozes ou simplesmente de passos a porta começou a se mover, do outro lado a silhueta de uma figura alta tomou forma enquanto dedos longos e esguios surgiam vagarosamente do lado de dentro junto de um corpo branco trajado em vestes escuras, longos cabelos negros caiam como cascatas pelas costas e linhas roxas marcavam a pele alva como a neve. No instante em que a figura feminina se tornou inteiramente visível senti meu corpo travar. Ela estava alí, a poucos metros de distância. Os olhos vermelhos brilhando em meio as sombras do quarto. Um demônio em corpo de mulher que assombrava os piores pesadelos.
Se acalme...
Meu corpo tremia.
Se acalme ou ela vai te encontrar!
Prendendo a respiração deixei meus pensamentos gritarem até que uma lembrança antiga começou a surgir tomando espaço em meio ao caos.
—Quando estiver com medo pode começar a contar, ocupar a cabeça com outra coisa é o melhor a se fazer.
—Mas assim o mostro vai me ouvir Galadriel!
—Oras!Qualquer mostro só será assustador se você o achar assustador!
Galadriel saltou da cama pegando uma espada de madeira que usava para treinar. Nenhuma menina do reino gostava de treinar, só ela.
—Seja mais forte que seu medo Amenadiel!
Um pouco mais calmo fechei os olhos e deixei minha respiração se ajustar, devagar senti o formigamento do meu corpo ir se dissipando assim como o terror de antes. O ambiente continuava pesado mas eu já me sentia leve o suficiente para não deixar as emoções me dominarem. Com cuidado me esgueirei silenciosamente pelas prateleiras até conseguir uma boa visão da mulher que agora estava sentada em meio as almofadas, sua figura estava oculta pelos longos véus lilases que pendiam do teto criando uma silhueta disforme através dos tecidos. Por longos minutos ela permaneceu assim, quieta e em silêncio até que um movimento repentino de cabeça quebrasse a monotonia, segundos depois sons de passos surgiram no corredor pouco antes da porta ser aberta.
—Senhora.
Um jovem alto vestido em uma capa escura surgiu, não conseguia ver seu rosto de onde eu estava.
—E então? — a voz glacial soou calma por de trás dos véus.
—Fui informado que a garota está realmente aqui.
Silêncio, até mesmo o rapaz deixava transparecer o medo de estar ali.
—Então a nova boneca de Kiari é mesmo a garota — a voz despesa preencheu o ambiente.
—Como devo prosseguir senhora?
—Vigie Kiari, agora ela deve estar se divertindo com o brinquedinho novo, mas logo que enjoar traga a garota até mim.
—Mas senhora... A princesa...
—Faça o que estou mandando fazer — o tom de voz se alterou causando arrepios — Eu cuido da princesa.
O jovem estremeceu, sem contestar fez uma breve e rápida reverência antes de sair às pressas do quarto. A mulher de pele alva e olhos vermelhos continuo sentada por mais alguns minutos, depois do que pareceram horas seu corpo se levantou com elegância e sem fazer barulhos deu alguns passos em direção a porta e parou, no mesma instante senti meu coração congelar, o olhar de sangue mirava insistentemente onde eu estava. Imediatamente prendi a respiração.
Não pense, não se mova!
Conseguia sentir o sangue latejar em meus ouvidos quando finalmente a figura feminina se virou e saiu. O silêncio permaneceu no ambiente até que o peso da presença demoníaca daquela mulher sumisse, quando isso aconteceu respirei fundo me engasgando com o próprio ar.
—Mestre!Mestre!
Já estava me arrastando para fora das prateleiras quando um vulto pequeno correu na minha direção.
—Mestre, era...era...
Nem mesmo Dexter conseguia falar direito.
—Sim, era...
O ar ainda me faltava aos pulmões quando finalmente consegui me colocar de pé. A sala parecia menor e mais fria. Do outro lado um tritão cambaleava até onde estávamos.
—O.o que foi...o que foi...
—Se acalme.
—A.acalmar? — Lance parecia incrédulo — Me acalmar? — o vi engolir em seco — O que foi aquilo?!NÃO!A pergunta é!Quem era aquela mulher?! — suas mãos foram até a cabeça — E eu achava que a garota das bonecas era assustadora...
—Já falei para manter a calma.
—Não me peça o impossível!Eu achei que ia morrer!Nunca em toda a minha vida senti algo tão...tão...
—Pesaroso?Abominável?Horrendo? — me aproximei — Eu sei o que sentiu, eu também senti, qualquer um perto daquela mulher sente a mesma coisa, por isso tem que manter a calma.
Lance estava inquieto, seu pés trêmulos iam de um lado para o outro sem parar.
—Mas afinal o que ela é?Uma presença daquelas... não é normal.
—Lembra do que Cairo contou?Lobisomens, vampiros.
—Vampiro?Isso não faz sentido para mim — seu semblante era sério mas ainda assustado — Eu nunca tinha ouvido falar nessas espécies antes, mesmo que meu povo tenha muitos conhecimentos, então como é possível não sabermos nada sobre eles?Ainda mais com relação a alguém tão... assustador.
—Isso é realmente estranho e já me fiz essa pergunta, Cairo e seu povo também pareciam não saber nada sobre as sereias, mesmo que ambas as espécies sejam muito famosas nenhum de vocês jamais ouviu falar sobre o outro.
—Talvez tenha alguma relação com os portais.
Dexter parecia ter se recomposto.
—Quando atravessamos um portal aparecemos em um lugar novo e diferente, e se estiverem ligados ou algo do tipo?
—É uma hipótese, mas de qualquer forma não temos tempo para isso, ouviram o que ela disse, precisamos averiguar se essa garota está bem.
—Me surpreende que esteja tão preocupado com uma estranha.
—Essa estranha pode ser Alícia.
—Não acha que se fosse mesmo Alícia teríamos ouvido algo mais relevante, aquela mulher... — o vi estremecer — Teria sido mais específica.
—Não se engane, ela não perde tempo com situação banais, se está atrás de alguém então essa pessoa tem grande importância.
E principalmente não há escapatória.
Um cão de caça perfeito atrás da sua presa. Essa era a melhor definição para aquela mulher.
—Certo!Mas ainda sim...
Lance estava receoso, e depois do encontro que tivemos conseguia compreender seu medo.
—Quais as chances?Alícia teria que ter pegado algum portal, o que é muito difícil, e ter parado justamente aqui!O que é mais difícil ainda!As chances são uma em um milhão!
—Eu sei.
Por puro impulso levei minha mão até às vestes retirando o objeto de grande valor que sempre guardava comigo. A bússola que minha mãe havia me dado indicava, com o ponteiro de ouro, a mesma direção do quarto a frente com cheiro de sangue.
—Mas algo me diz para acreditar nessa única chance.
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