42
A passagem macabra ao desconhecido
A tênue linha do amanhecer já havia se estendido pelo horizonte, no entanto, quanto mais andávamos pela floresta mais escuro ficava, a copa densa começava a encobrir qualquer resquícios da luz do dia e a sombra que os troncos criavam banhavam tudo por ali em sombras, se não fosse o cheiro forte do nosso guia e o som de seus passos com certeza estaríamos perdidos.
—Ainda acho isso uma péssima ideia...
O sussurro de Lance ecoava alto por cada canto ali.
—E se ela não estiver lá?E se for tudo maluquice da sua cabeça?!
—Se não queria estar aqui era só não ter vindo — falei.
—Como se ficar sozinho no meio de estranhos também fosse uma boa ideia...
Seu olhar azul mirou o brilho esverdeado dos olhos de alguns lobos que viam logo atrás, mesmo no escuro pude ver seu corpo tremer.
—De qualquer forma, também quero encontrar Alícia.
—Então não acredita que eu esteja louco?
—Não foi isso que eu quis dizer!Mas se há uma possibilidade de ela estar lá, então eu irei, afinal de contas, também sou um guerreiro!
Ao longe o som de um galho se partindo ecoou até nós, por puro impulso Lance conteu um grito enquanto se aproximava mais de mim.
—Estou vendo.
—Sou um guerreiro mas também gosto da minha vida...
Ele se recompôs.
—Mas sabe, eu queria te perguntar algo.
A única coisa boa no sumiço da humana era que eu finalmente estava livre de interrogatórios e perguntas sem fundamento, no entanto, eu infelizmente havia achado um substituto para isso.
—O quê?
—É sobre eles — Lance sussurrou — Como sabia sobre eles?
—Como assim?
—Essa história toda, lobisomens, vampiros, como sabe disso tudo?
—Estudei.
—Avá — seu olhar debochado havia voltado — Eu também estudei, com excelentes tutores mas nunca ouvi nada sobre eles, por isso fico me perguntando como você sabe.
Aquela era uma boa questão, Lance era da realeza, é mais do que certo que teve excelentes professores e um estudo muito amplo mas, mesmo assim não sabia nada sobre os Lobisomens e o mesmo acontecia com Cairo, mesmo que não fossem tão cultos as sereias sempre foram muito famosas, mas ainda assim, nenhum deles parecia conhecer as histórias sobre elas.
—É realmente estranho.
—Viu só?A cada minuto aqui me sinto, literalmente, um peixe fora d'água.
—No momento apenas se concentre em encontrar Alícia — encarei sua figura azulada em meio ao negrume — E tentar ser mais discreto.
—O que quer dizer com "mais discreto"?
Antes que eu pudesse responder o som dos passos de Cairo pararam, seu cheiro ainda estava forte o que significava que estava bem a minha frente.
—O que foi?
—Chegamos.
—Chegamos?
O tritão se arriscou a avançar um pouco.
—Não vejo nada.
Sem que ninguém esperasse um dos homens de Cairo se aproximou acendendo uma tocha, o brilho laranja machucava os olhos mas trazia um calor reconfortante em meio ao frio da floresta, no entanto, o que antes estava oculto pelas trevas se tornou visível. E nesse mundo, há certas coisas que é melhor não se ver.
A poucos metros de onde Lance estava inúmeros esqueletos formavam um arco, crânios das mais diferentes espécies se amontoavam criando uma passagem macabra ao desconhecido através de um túnel de árvores tortas e espinhentas. Os ventos que vinham do outra lado causavam arrepios.
—Certo!Definitivamente não entrarei aí! — Lance deu meu volta.
—Tenho que concordar com o homem azul — Caio observou a passagem, os olhos brilhando na penumbra — Não podemos avançar.
—Imaginei que diriam isso.
Mas eu tenho que prosseguir.
Respirando fundo uma última vez avancei em direção ao arco de ossos. O ar ali era pesado, o cheiro de podridão surgia de cada canto escuro assim como lamentos e gemidos, dor e prazer se misturavam em um sinfonia horrenda. A claridade laranja das tochas iam ficando para trás quando passos altos e apressados surgiram, já me preparava para o ataque quando um tênue brilho azul parou a poucos metros de mim com uma respiração ofegante.
—Pensei que não ia vir — minha voz era sugada pelo breu.
—E não ia — o medo do tritão era mais do que audível — Mas ele me fez mudar de idéia.
Das sombras um vulto passou pelo chão forrado de ossos e folhas fazendo ruídos, os olhos vermelhos brilhando na escuridão.
—Também vou mestre!
Dexter estava a poucos passos de Lance, uma figura minúscula mas decidida.
—Suba.
Sem esperar senti suas unhas cravarem em minhas roupas até chegar ao ombro, quando tive certeza de meu Gouli estar acomodado retomei minha caminhada até que uma mão fria me impedisse.
—Vai me deixar aqui sozinho?
—Você que veio até aqui com suas próprias pernas, continue andando com elas.
—Mas, mas, é tão escuro...
—Vai querer segurar minha mão? — falei esboçando a mais pura ironia.
—Ah que ótima idéia!Dois petiscos andando de mãozinhas dadas em direção a morte!
Minha paciência havia chegado ao limite. Sem dizer uma palavra dei as costas ao tritão e segui em frente, ainda ouvi seus resmungos mas ignorei. Minha prioridade era o que eu poderia encontrar além daquela escuridão.
Alícia.
...
Levou alguns minutos, apenas isso, para que toda a luz fosse engolida pelas trevas do lugar. Por mais que eu tentasse só conseguia discernir vultos e breves silhuetas de árvores que apareciam à minha frente, estava difícil andar por ali, ainda mais quando meus sentidos não funcionavam direito. O cheiro podre invadia meu nariz fazendo meus olhos arderem, definitivamente aquele era um dos piores lugares que eu já havia colocado meus pés.
—Isso não acaba nunca? — a voz de Lance era um misto de pavor e cansaço — Quanto tempo estamos andando?
—Você é igualzinho a Alícia.
Lembrar dela renovou minhas forças. Precisava acha-la o quanto antes.
—Me sinto lisonjeado com tal elogio.
Internamente revirei os olhos.
—Mas pensar que ela pode estar em lugar como esse, sozinha...
—Por isso estamos aqui.
Lance ficou em silêncio, um silêncio incômodo que dizia que sua postura havia mudado se tornando séria.
—Você está apaixonado por ela.
No mesmo instante parei, o eco dos passos dele também.
—Não estou — fui ríspido.
—Não foi uma pergunta.
Dessa vez foi eu que fiquei, brevemente, em silêncio.
—Já disse que tenho meus motivos.
—Pessoas como nós possuem muitos motivos para fazer e deixar de fazer várias coisas — outra vez o silêncio — Sei que tem outros objetivos que estão muito além de proteger Alícia mas mesmo assim deixou tudo de lado para ir atrás dela — ouvi seus passos se aproximarem assim como a voz — Então que outro motivo maior seria esse se não fosse o elo mais for-
—Já dei minha resposta tritão — o cortei — Muitas coisas aconteceram entre mim e Alícia — fiz uma pausa repassando tudo o que passamos até que ela fosse raptada por aquela criatura — Protege-la se tornou apenas uma responsabilidade.
—Sendo sincero, tenho certeza que isso vai muito além de uma mera responsabilidade...
Senti seu corpo passar por mim e tomar a frente.
—Só tome cuidado para não perceber isso tarde de mais amigo.
Sem dizer mais nada Lance prosseguiu, parecia não mais se importar com os ruídos da floresta ou a escuridão que nos cercava, sua atitude só serviu para aumentar, ainda mais, a batalha interna que venho travando a dias.
—Até parece — resmunguei — E desde quando ficou tão corajoso?!
—Não sei — sua voz soou abafada pela distância — E desde quando você se tornou tão cego?!
—Ora seu...
—Mestre!
Dexter estava a tanto tempo em silêncio que tinha me esquecido da sua presença.
—O que é aquilo?
Procurei em meio ao breu um sinal do que meu Gouli poderia estar vendo, não demorou muito para que eu avistasse uma luz azul dançar em algum lugar acima das nossas cabeças. Lance que também pareceu ter notado a luz voltou imediatamente para junto de nós, na pouca claridade pude ver o tênue contorno da sua figura.
—O que aquilo?
—Não sei.
—Acho que está vindo na nossa direção.
O ponto luminoso parecia dançar de um lado para o outro se aproximando cada vez mais.
—É tão bonito...
—Tem razão...
Dexter e Lance pareciam hipnotizados, o ponto continuava a dançar mas alguma coisa me incomodava, algo que ia além do encanto que aquela luz azul trazia, era a mesma sensação que antecedia o perigo.
—Cuidado!
Sem que nenhum de nós esperasse a luz parou com sua dança e caiu, rápido como um raio em nossa direção, só quando estava a poucos metros de nós que vi, com o próprio brilho azul, a figura horrenda de uma criatura. Lance pulou para lado enquanto eu desembainhava minha espada empalando o animal.
—Pelos céus!O que é isso?!
Na ponta da espada o animal um pouco maior que Dexter agonizava, parecia um peixe com feições derretidas, dentes afiados, e quatro membros que se assemelhavam com pernas, era uma figura bizarra que parecia ter saído de um pesadelo.
—Eu não sei.
A luz azul vinha da sua testa pendurada em uma antena, quando a criatura deu seu último suspiro o brilho se dissipou.
—Mas já é um bom motivo para nos apressarmos.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro