40
Uma longa tenda foi armada próximo de onde estávamos, Lance continuava a olhar torto para os pratos de carnes que dessa vez eram levados pelas mulheres de Cairo enquanto o próprio passava instruções a outros lobos e homens, todos nos encaravam ainda com desconfiança mas não iam desacatar a nenhuma ordem do seu superior.
—Sim, qualquer notícia que tiverem, não exitem em sair dos seus postos para me avisar.
Depois de breves minutos o pelotão se afastou. Cairo ainda resmungou alguma coisa para suas duas esposas antes de se aproximar junto de Maia. A mulher de cabelos avermelhados tinha um olhar atento mas, diferente dos outros, não aparentava um pingo de desconfiança.
—Espero que não se incomodem, não é lá nosso melhor trabalho mas garanto que não vai desmontar enquanto estiverem dormindo.
—Dá mesmo para se viver dentro disso? — cético, Lance enfiou metade do corpo dentro da tenda — Caramba! Não é que dá mesmo!
—Fico feliz que tenha gostado — Maia respondeu com um sorriso bondoso — Trouxemos nossas melhores mantas e almofadas, espero que sintam-se confortáveis.
—Agradecemos pela hospitalidade — disse em um tom mais brando — Mas não pretendemos ficar muito tempo.
—Creio que ficarão tempo o suficiente — Cairo tomou a frente — Imagino que achar sua amiga não será algo rápido, como meu filho disse faz algumas horas desde que sentiu o cheiro dela.
—Ainda não entendo, não faz tanto tempo que vimos Alícia ser levada mestre.
—O véu que cobre essa floresta não segue as leis normais que regem o mundo, o tempo se torna relativo dependendo do lugar em que se atravessa.
—De qualquer forma temos nossa pista.
—E meus homens já estão trabalhando nas buscas, então por favor descansem, qualquer notícia avisaremos vocês imediatamente.
—Se precisarem de alguma coisa não exitem em nos chamar, a alcatéia está a disposição — os olhos verdes da mulher brilharam, dava para sentir a imponência em sua postura.
—Obrigado mais uma vez.
Em silêncio, mas com um breve sorriso, o casal se distanciou, observei suas figuras sumirem em meio ao acampamento para finalmente entrar na tenda.
O imenso tecido marrom e pesado estava sob minha cabeça, preso por cordas e madeira, a iluminação por ali era fraca e vinha de pequenas lamparinas espalhadas por mesinhas de madeira. Mantas de peles e almofadas de lã estavam amontoadas pelo chão. Em um canto afastado uma tina se encontrava, dentro, um homem azul de pele brilhosa relaxava com os braços abertos sobre a borda e com parte de uma cauda de peixe pendendo para fora.
—Espero que não tenha a intensão de se lavar.
—Depois dessa cena, com certeza não.
—Ótimo!Por que essa vai ser minha cama e não quero cheiro de gato molhado nela!
—A vontade.
Caminhei para o lado oposto largando meu casaco sobre a pilha de almofadas, logo em seguida me acomodei entre as mantas, haviam muitas peles por ali, a maioria cinzenta, não fazia ideia a quais criaturas pertenciam mas pelo cheiro não eram de lobos.
—Vou ficar ali mestre — Dexter apontou para um tecido roxo aparentemente de lã — Vai ser ótimo para o meu tamanho.
Um pouco animado meu Gouli se enrroscou na cama provisória. Todos pareciam bem acomodados, exceto eu, mesmo com um teto e algo macio para dormir não conseguia afastar um certo alguém da cabeça.
Alícia.
Ela esteve perto, muito perto, pensar que por pouco não a alcançamos era frustante.
Por que não aceitei a ajuda do tritão?!
Talvez tivéssemos atravessado mais cedo e encontrado Alícia. A possibilidade me corroía por dentro.
—Esquentar a cabeça não vai adiantar nada, gatinho.
Olhei para a tina, Lance continuava com os braços apoiados na borda e os olhos fechados.
—Do que está falando?
—Você sabe muito bem — uma íris azul como o mar surgiu — Alícia, está pensando nela, e provavelmente se não estaríamos juntos caso tivéssemos chegado mais cedo.
—Não se inclua nesse juntos — sibilei — Que eu me lembre você veio atrás de informação sobre seu povo.
—Sim, mas a doce Alícia também é importante para mim, gatinho.
—Humpf.
Um silêncio abafado recaiu sobre nós, a luz das lamparinas criando sombras nas paredes de tecido enquanto o som de gotas começavam a surgir sobre nossas cabeças. Estava chovendo. O cheiro de terra molhada invadia meu nariz trazendo lembrança de outros cheiros e aromas, um deles em específico era doce.
—Ei, Amenadiel.
—Não estou com saco para suas gracinhas peixe, então me deix-
—Qual é sua relação com Alícia?
Aquela pergunta havia me pegado completamente desprevenido, ainda mais pelo tom e semblante sério que o tritão havia tomado.
—Como assim?
—Bom, só estava me lembrando sobre o que aquela voz na tenda disse, você sabe, rei caído e tals...
Meu sangue se agitou, Lance estava entrando em uma área perigosa.
—Por isso...
Felizmente ele havia se dado conta.
—Imagino que você também tenha outro objetivo Amenadiel, e abriu mão dele por causa de Alícia, me pergunto que tipo de relação alguém como você tem com ela?
—Nenhuma.
—Ah, qual é!Não me venha com essa, eu vi o jeito que você ficava toda vez que eu dava em cima da Alícia.
Mais uma vez meu sangue se agitou, aquelas perguntas estavam sendo piores de responder do que o próprio interrogatório da humana.
—Alícia e eu não temos nada — fui franco, ou ao menos tentei.
—Então por que parece tão desesperado quando o assunto é ela?
Não tinha uma resposta, não para aquela pergunta, realmente alguma coisa fervia no meu peito toda vez que pensava na humana, e aquilo era assustador.
—Por minha culpa ela não tem mais um lugar para voltar — o que não deixava de ser verdade — Só estou cumprindo com uma obrigação.
—Sendo sincero, acho que isso vai muito além de uma obrigação...
O par de olhos azuis me encaravam com seriedade, tanto que nunca imaginei que o tritão pudesse assumir um semblante como aquele.
—E sei que você também pensa nisso, caso contrário não estaria aqui.
Não disse nada, não tinha nada a dizer, não sabia se o que mais me irritava era o fato daquele tucunaré ter me deixado sem palavras ou por ter me dado muitas coisas no que pensar.
—Bom!De qualquer forma, se não tem interesse algum em Alícia— sua longa cauda se espichou — Posso fazê-la minha futura rainha então?
Sem me controlar expus minhas unhas enquanto algo se inflamava no meu sangue. Lance por sua vez havia dobrado os braços sobre a borda de madeira e descansado a cabeça sobre eles.
—Brincadeirinha.
Seu tom debochado fez com que toda aquela sensação se esvaisse, no entanto, a raiva permaneceu ardendo em meus olhos.
—Não enche o saco!Peixe!
Com zero paciência me deitei sobre as mantas dando as costas ao maldito tucunaré.
—Cruzes!Você não tem senso de humor não?
Simplesmente o ignorei.
—Bom...pelo menos isso comprovou alguma coisa, não é mesmo?
Não precisei me virar para saber que seus olhos me encaravam atentos, a insinuação em sua voz também já deixava isso claro.
—Cale a boca.
Sem mais nada o que dizer Lance finalmente me deixou em paz, porém, suas palavras ainda ecoavam alto em algum lugar perturbando a minha sanidade.
Maldito tucunaré...
...
Era início da manhã, o sol não passava de uma bola rosa enquando as nuvens se tingiam de dourado, se eu estendesse as mãos poderia toca-las. Senti-las.
Meus pés flutuavam acima daquele mar infinito que preenchia o céu enquando uma leve brisa tocava meu rosto. Era uma sensação de tranquilidade. Me trazia paz.
—Diel!
Mamãe estava atrás de mim, um pouco longe, os cabelos brancos balançando junto de suas asas abertas, os olhos como ouro refletindo as nuvens. Sua imagem era como uma pintura divina.
—Vamos Diel!
Sua mão se estendeu na minha direção.
—Você estava vindo atrás de mim, não é mesmo?
O vazio no meu peito era preenchido com seu sorriso amável.
—Estou aqui meu amor!Vamos!Pode vir!
Estava para dar um passo quando outra voz surgiu, assim que olhei na direção oposta ela estava lá, os longos cabelos castanhos balançando, o olhar caramelo refletindo o sol. O doce sorriso estampado no rosto.
—Ei Amenadiel!
A...
—Estive te esperando!
Ela ainda sorria.
—Pensei que não viria.
Os olhos continuavam a refletir o sol mas desse vez estavam tristes.
—Realmente pensei que não viria...
Alícia...
Minha vontade era de caminhar até ela, abraça-la, sentir seu cheiro, mas quando fiz menção de ir até lá fui impedido pela outra voz, tão suave e melódica quanto.
—Não era comigo que você queria ficar Diel?
Seu sorriso havia sumido. Mamãe estava triste. Seus olhos diziam que estava muito triste.
Mãe...
—Amenadiel...por que me deixou sozinha?Por que deixou aquela coisa me levar?
Alícia também não sorria, seus olhos brilhavam, como se lágrimas houvessem se formado.
—Estou com medo Amenadiel...
Alícia eu...
—Diel...Por que Diel?Veja o que aconteceu comigo...
O lamento que há anos fazia meu sangue gelar pareceu ecoar por cada canto do céu aberto que escurecia. Mamãe estava de pé, os olhos tristes enquando um punhal de prata brilhava em seu peito, o sangue carmesim escorrendo pela ferida manchando suas vestes.
—Foi por sua culpa Diel...
Não...
—Mas está tudo bem...
Não, não...
—Eu te perdôo.
Não!Pare com isso!Pare!
—AMENADIEL!
Um grito estremeceu o céu, as nuvens antes douradas se tornaram cinzentas e o sol rosado se tingiu de vermelho. Alícia não estava mais alí. O desespero invadia meu peito enquanto corria na direção onde sua figura se encontrava, a voz doce ainda ecoando de algum lugar.
—Estou com medo Amenadiel...
—Alícia...
—Estou com medo...
—Por favor!
"—AMENADIEL!"
...
—AMENADIEL!
—NÃO!
Acordei com o peito arfando e a pele grudenta, tudo estava escuro exceto por uma fraca luz que iluminava uma silhueta azul.
—Ei Amenadiel!Você está bem?!
Lance estava agachado, o rosto perto de meu, os olhos azuis cintilando preocupação.
—E.estou... — falei depois de um bom tempo — O que foi?Por que me acordou?
—Cairon apareceu dizendo que quer falar conosco, acho que trás notícias.
—Ótimo...
Com o corpo um pouco trêmulo me coloquei de pé. Lance ainda me observava com aquele olhar preocupado queimando às minhas costas.
—Tem certeza que está tudo bem cara? Você parecia estar em um pesadelo horrível...
—Estou ótimo — tentei desviar aquela atenção para outra coisa, não queria ter que relembrar meu sonho, mesmo que ele continuasse vivido na memória — Vamos logo ver Cairon, é provável que tenha notícias sobre Alícia.
Sem que eu quisesse a imagem do olhar caramelo encharcado de lágrimas surgiu junto de um grito de angústia que clamava meu nome.
Por favor...que ela esteja bem...
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