35
Ameaça
O tempo que Lance passou submerso foi revigorante, e mesmo sabendo que era uma criatura aquática torcia para que tivesse afundado igual uma pedra e não emergisse nunca mais, no entanto, levou apenas alguns minutos para que sua figura voltasse a irromper das águas.
—Aqui está!
Em suas mãos uma grande concha rosada estava cheia com os mais vários tipos de plantas e frutas coloridas. De soslaio vi os olhos de Alícia brilharem.
—Isso tudo é de comer?!
—Sim, e eu também trouxe isso.
Ao seu lado, emergindo próxima as raízes das árvores uma pequena criaturinha branca e esguia caminhou até nós, parecia com uma espécie de lagarto mas seus olhos extremamente azuis e as orelhas em formato de leque entregavam que era um raro dragão de água doce. Em sua cauda uma jarra dourada estava suspensa.
—Minha nossa! — Alícia se aproximou — Que coisinha mais linda!
—Esse é linx, meu Gouli.
O pequeno dragão se aproximou, parecia receoso e assustado mas foi só Alícia esticar uma das mãos para que ele erguesse o focinho no ar, segundos depois estava correndo para o colo da humana como se ela fosse sua mestre.
—Acho que ele gostou de mim.
—E quem não gosta?
Enquanto Alícia, Lance e Linx se divertiam Dexter e eu parecíamos dividir do mesmo desconforto.
—Mestre...
—Eu sei Dexter...
Respirei fundo me acalmando.
—Então você também tem um Gouli?
—Sim.
—Igual a você Amenadiel!
—Sim — respondi fingindo entusiasmo — Bem igual a mim...
—Veja Dexter, outro Gouli!
Alícia esticou a mão na direção dele o convidando para seu colo.
—Vocês podem ser amigos!
—Sim, muito amigos...
Alícia não percebeu, mas as mesmas faíscas entre mim e Lance pareciam crepitar entre os dois Goulis.
—Mas então bela Alícia, qual desses quitutes gostaria de experimentar primeiro?
Suas mãos já estendiam a concha em direção a humana quando vi um anel branco cintilar com uma pedra colorida, foi então que me dei conta de algo.
—Um momento!
Me aproximei ficando entre os dois.
—Esse anel...
Olhei melhor para a jóia que possuía o desenho de um tridente antes de encarar o pequeno dragão ainda no colo da humana.
—Você é um descendente real!
Os olhos de lance se arregalaram.
—Descendente real?Do que você está falando Amenadiel?
Alícia estava confusa mas dessa vez a deixei de lado me focando apenas no tritão.
—Como pode ser tão irresponsável?!
Minha vontade era de agarra-lo pelo pescoço mas por sorte a distância entre nós era particularmente grande.
—Mestre...
Podia ouvir o sangue pulsar em meus ouvidos.
—Seu...
—Amenadiel por favor se acalme!
Só com Alícia se colocado entre mim e aquele peixe que pude retomar um pouco do meu autocontrole.
—O que aconteceu?Por que você está assim?
Seu olhar era confuso e até mesmo assustado. Ela estava com medo.
Medo de mim.
A idéia fez com que minha irá se apaziguasse.
—Amenadiel...
—Me desculpe Alícia — respirei fundo —Não queria ter gritado...
Ela não disse nada mas seu olhar já falava por sí.
—Vamos embora.
—Mas e Lance?
Olhei novamente para o maldito tritão sentindo a raiva subir pela garganta.
—Por que você disse que ele é um descendente real?E por que ficou tão irritado?
—Por que ele tem razão.
A voz de Lance ecoou pelo silêncio que havia se formado.
—Eu não entendi...
Encarei o tritão o forçando a continuar.
Você deve respostas a ela.
Respirando fundo ele continuou.
—Eu sou filho do rei e da rainha dessas terras, ou melhor, lagoas.
—Então você é alguém importante?
—Sim...
Alícia ficou em silêncio por longos segundos antes de soltar mais uma das suas pérolas.
—Isso é muito legal!
Enquanto Lance a encarava boquiaberto eu só conseguia balançar a cabeça negativamente.
Francamente...
—Mas, o que isso tem a ver?
O tritão pareceu ter perdido as palavras, e como não parecia disposto a continuar eu mesmo o fiz.
—Ele é um príncipe, e como príncipe um dia irá governar tudo aqui.
—Ainda não consigo ver o problema.
—Nem se soubesse que é dever das sereias proteger e afastar estranhos a qualquer custo dos membros da família real?
A ficha começava a cair para a humana.
—Então quer dizer que...
—As sereias poderiam nos atacar só por estarmos conversando com Lance?
Até mesmo Dexter parecia surpreso.
—Exatamente — encarei o tritão que parecia ter perdido seu brilho — Por isso é de extrema irresponsabilidade arriscar a vida dos outros de forma tão mesquinha — cerrei os dentes — Só de estar aqui já é uma ameaça para nós.
Principalmente para Alícia.
A humana não teria chances em um ataque, e pela quantidade de lagoas ao nosso redor nem mesmo eu seria capaz de protegê-la da irá das sereias.
—Mas não estamos aqui para fazer mal ao Lance nem a ninguém!Então por que seríamos atacados?
Novamente esperei que o tritão respondesse, e dessa vez ele pareceu ter coragem para encara-la.
—Instinto.
—Instinto?
—Instinto de proteção — falei tentando conter minha impaciência — Algumas espécies usam desse instinto para garantir sua sobrevivência protegendo seus membros mais importantes, sem eles, seriam como um corpo sem cabeça — olhei o tritão ainda com o sangue fervendo — As sereias são um exemplo.
—Mas só estamos conversando...
—O instinto nos faz agir pela emoção, não pela razão, basta lembrar do ocorrido em Mavi.
Eu arrisquei minha vida para te proteger e você a sua.
—Mas isso não é justo!Quer dizer que Lance não pode ter amigos?
Seu olhar era um misto de confusão e indignação que surpreendeu a todos.
—Como conversar com alguém pode ser uma ameaça tão grande?!
—Já falei que é puro ins-
—Instinto, já sei!
O lugar antes místico e exuberante derrepente pareceu se tornar sem graça, até mesmo Alícia tinha perdido o fascínio pelas árvores e lagos, agora podia sentir a tristeza emanar dela, e tudo por conta daquele tritão inconsequente.
—Agora que tudo já foi devidamente explicado é melhor irmos embora — estiquei a mão para a humana que continuava cabisbaixa — Vamos Alícia.
Demorou um pouco para que houvesse alguma reação da sua parte mas bastou alguns segundos para que ela também esticasse a mão para mim.
—Esperem!
Mas a voz de Lance a fez recuar.
—Por favor não vão!
—Não temos mais nada o que fazer aqui! — fui ríspido — Vamos Alícia.
—Eu sei que omiti coisas importantes! Peço desculpas, de verdade!Mas eu tive um motivo!
—Não queremos saber das suas historinhas!
Já estava de saco cheio de tudo aquilo.
—Quais motivos foram esses?
Mas pelo visto eu ainda teria muito o que aguentar graças a Alícia.
—Seu amigo estressado está certo em tudo, sobre tritões protegerem as sereias e as sérias protegerem a família real mas...
—Mas?
Um longo silêncio se formou esgotando o resto da minha paciência.
—Não vou perder mais tempo aqui!Se quiserem ficar e ouvirem a conversa fiada dele então fiquem — passei por Alícia e Dexter — Mas para mim deu!
Já estava prestes a lhes dar as costas e ir embora quando a voz alterada do tritão ecoou por todos os lados.
—As sereias sumiram!
Foi como se as palavras ecoassem dentro de mim.
—Sumiram?Como assim?
—Não há mais sereias nos lagos?
—Não...
Ouvi um longo suspiro.
—Faz um tempo que coisas estranhas começaram a acontecer, no início não nos importamos muito mas então algumas das sereias acabaram sumindo...
—Que tipo de coisas estranhas?
Demorou um pouco para que Lance voltasse a falar.
—Não sei ao certo, sempre fiquei fora desses assuntos, a guarda real e meu pai cuidavam de tudo mas então um dia foi a minha mãe que sumiu — houve uma longa pausa — Aí percebi que o problema era bem mais grave do que eu podia imaginar.
—Sua mãe sumiu?
—Faz um bom tempo que estou procurando por ela...
—Eu sinto muito — a voz de Alícia era baixa — Meus pais também sumiram e sei como foi difícil...
Sua expressão tristonha me atingiu em cheio.
—Mas se pudermos ajudar conte conosco!
—E as outras sereias? — me virei os encarando, dessa vez a conversa era do meu interesse — Pelo que já ouvi falar existem milhares de vocês.
—Boa parte também desapareceu, agora algumas poucas estão escondidas dentro dos palácios nos quartos mais inacessíveis mas mesmo assim algumas ainda continuam sumindo.
Ouvir aquilo me trazia de volta a conversa que tive com Lier em Ogamar.
As sereias estão sumindo assim como as harpias.
Me escorei em uma das árvores tentando procurar alguma ligação entre os dois casos, no entanto, tudo ainda era muito vago.
Exceto por...
—Houve algum outro caso estranho além do sumiço das sereias?
Lance pareceu refletir por algum tempo antes de dar uma resposta.
—Ouvi rumores de que criaturas estranhas estivessem rondando os lagos durante a noite, mas sempre achei que fosse uma história para afastar os curiosos da superfície.
—Imagino que você estivesse incluído na lista.
—Meus pais sempre fizeram de tudo para me manter no palácio, e eu nunca fui contra suas ordens de me aventurar aqui fora.
—Então por que está aqui?
—Quero respostas! — seu tom de voz se alterou mas não me abalei — Um tempo atrás soube que uma estrangeira veio parar em Ohr e ajudou muitos do meu povo com seus tratamentos médicos.
—Nafila?
—Exato, e além da cura ela também nos presenteou com histórias sobre vários lugares e pessoas.
—Então você fica na superfície esperando Nafila voltar para conseguir mais informações sobre o sumiço do seu povo?
—A gentil Nafila não sabe nada sobre isso, sempre que venho falar com ela tento induzir minhas perguntas da forma mais discreta possível.
—Então também está mentindo para ela?
—Não estou mentindo para ninguém!
Ignorei seu olhar furioso.
—Imagino que Nafila ficaria muito preocupada se soubesse, ela ama esse lugar...
—Sim, por isso fico na superfície, esperando que ela venha para que eu consiga juntar o máximo de informação possível, só que dessa vez Nafila não veio sozinha.
Os olhares de Alícia e Lance se encontram com um brilho estranho e perturbador para a minha sanidade.
—Não sabe mais nada sobre essas criaturas? — perguntei cortando o contato visual dos dois.
—Nas noites que fiquei aqui não vi nada de estranho.
—E ouvir?
O tritão olhou confuso para Dexter.
—Como assim ouvir?
—Nada, deixa para lá.
—De qualquer forma eu preciso saber o que está levando as sereias e encontrar a minha mãe, então peço para que por favor me ajudem.
—Mas é claro!
—Que não.
Alícia olhou boquiaberta para mim.
—Não?
—Você ouviu bem — me afastei da árvore arrumando a postura — Já me envolvi em problemas de mais, problemas nos quais nem diziam respeito a mim — com uma das mãos peguei meu manto surrado o jogando por cima dos ombro — Estou indo embora.
—Mas Lance precisa de ajuda!
—Não é um problema meu.
—Por que você sempre faz isso?!
Podia ouvir a respiração pesada da humana. Ela estava furiosa e não seria a única se continuasse falando.
—Quando alguém lhe pede ajuda você recusa sem ao menos ponderar!
—Já dei minha resposta.
—Deveria pensar um pouco mais nos sentimentos dos outros!Lance só quer encontrar a mãe e ter uma resposta para o que está acontecendo!Custa ajudar?!
Fiquei em silêncio, podia sentir o sangue pulsar nas minhas veias.
—As vezes você parece não ter um coração...
Mas aquilo me fez chegar no meu limite.
—Talvez eu não tenha um! — me virei encarando sua figura minúscula — Talvez eu tenha decidido deixar sentimentos de lado justamente para não me importar com os dos outros e assim seguir com meus objetivos!
Ou simplesmente para não me machucar mais...
Os olhos de Alícia se encheram d'água, mas nenhuma gota caiu.
—Como eu disse antes estou indo embora — ignorei seu olhar decepcionado lhe dando as costas — Se quiser ficar fique, já disse que é livre para fazer o que quiser.
Até mesmo para não vir comigo.
Sem dizer nenhuma palavra dei um paço adiante sentindo o silêncio esmagar meu peito.
Ou será que era outra coisa?
Mas não importava, eu tinha meus próprios problemas para resolver e não havia tempo para mais nenhum outro.
—Amenadiel...
Continuei seguindo em frente com uma van esperança de que ela me seguisse.
Suas asas!Essa é sua prioridade!
Com o objetivo em mente não virei para trás. Não queria olha-la, sabia que se o fizesse acabaria indo contra tudo o que disse até agora.
—Seu idiot-
No entanto, o silêncio abrupto que se formou obrigou meu corpo a se mover sozinho.
Na minha frente, uma criatura elástica e de corpo negro estava pendurada nos galhos da árvore onde fiquei segundos atrás. Um sorriso torto e arrepiante moldava seu rosto enquanto os olhos vazios encaravam Alícia que não parecia esboçar reação alguma.
A...
O tempo parou ao meu redor enquanto via o corpo daquela criatura envolver a humana e a puxar para longe do meu alcance.
—ALÍCIA!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro