24
Os cinco grandes espíritos
...
-Como assim uma árvore?
-Pelos meus estudos as ninfas florais moram dentro de um gigantesco carvalho mágico, as paredes ao nosso redor são vários galhos retorcidos que criaram esse cômodo, mas por algum motivo a cor desse é diferente da dos outros.
Depois que Ada saiu a humana não parou de fazer perguntas. Já tinha perdido a conta de quantas eu tinha respondido.
-Como alguém pode viver dentro de uma árvore?
-Já disse que é uma árvore gigante.
-E como uma árvore pode ser mágica?
Suspirei.
-Você já sabe que todo ser vivo possui magia, normalmente as plantas não a desenvolvem tanto mas, esse carvalho em especial parece ser um presente dado por um dos cinco grandes espíritos, um abrigo para as ninfas que adoram e seguem fielmente a esse ser em especial.
Alícia me olhava como se não entendesse uma palavra do que acabei de falar.
-Imagino que você também não saiba nada sobre os grandes espíritos...
A vi dar de ombros.
Os pais dela nunca comentaram sobre isso?
Me sentia frustrado.
-O que são esses cinco grandes espíritos?Se as ninfas os adoram devem ser importantes.
-As ninfas não os adoram, tem respeito por todos mas servem a apenas um, Yskhar, o grande espírito da terra.
-E quem é ele?
-Ela.
Alícia parecia cada vez mais confusa. Calma Amenadiel.
Respirei fundo.
Comece pelo básico.
-Os cinco grandes espíritos são seres feitos puramente de magia, enquanto nossos corpos armazenam magia os deles são feitos dela, conseguiu entender até aí?
A humana estava tão imersa que simplesmente concordou com a cabeça.
-Ótimo - continuei - Há rumores de que toda a essência mágica espalhada no mundo foi um presente dado por eles, mas isso é apenas especulação, o que você precisa saber é que existem cinco desses seres, Yskhar como eu já falei é o grande espírito da terra, pelo que me lembro sua imagem é retratada como um centauro, a metade de baixo um cavalo e a de cima uma mulher, duas enormes galhadas de marfim branco nascem de seus olhos e se estendem pela cabeça onde pássaros de todo o mundo repousam, seus cabelos são como longas palhas douradas e carrega consigo duas armas, uma lança feita de ossos e uma gada de ferro, no entanto, ambos objetos mágicos poderosíssimos, capazes de cortar e esmagar rochas como se não fossem nada.
-Ela parece assustadora.
-Reza a lenda de que Yskhar é um espírito bondoso com todos os seres vivos, mas não suporta que destruam a natureza ou matem os animais que nela vivem por futilidades.
-Compreensível...
-Sim.
-E os outros?
-Não prefere deixar isso para outra hora?
-Sabe muito bem que não mas, se está cansado pode aceitar aquela minha proposta que fiz nas planícies do entardecer, lembra?
Um sorrisinho se revelava em seu lábios rosados. Não, de jeito nenhum. Arrumei minha postura antes de continuar.
-Os outros são Fraych, o grande espírito das chamas, dizem que ele vive dentro da mais mortal das montanhas escarlates do país do fogo, seus cabelos se parecem com labaredas vivas assim como os olhos, também dizem que ele é o mais impaciente e antipático dos espíritos.
-Parece com alguém que eu conheço.
Decidi ignorar seu comentário indiscreto.
-Yhnara é o grande espírito das águas, há muitos relatos controversos sobre sua imagem, alguns afirmam que ela é uma enorme serpente marinha enquanto outros juram que ela é uma mulher com guelras e escamas de peixe, o lugar onde habita também é incerto, mas a maior das suspeitas é de que seja em Moquesh, o lago sem fim.
-Um lago sem fim?Existe mesmo um lugar como esse?
-Sim.
-Deve ter muita água então!
Achei graça daquela observação.
-É, deve ter sim.
-Por favor continue!
Antes me sentia exausto e impaciente em ter que ficar respondendo a várias e várias perguntas mas agora uma empolgação que a muito não sentia me contagiava.
-Anãna é o grande espírito dos ares - fiz uma pausa me perdendo momentaneamente na imagem azul do céu - Ela se parece com um enorme passaro branco de seis asas e vive entre as mais altas nuvens da abóbada celeste mas, quando anoitece, se transforma em uma mulher com olhos de águia vestida em uma túnica de longas penas.
Falar sobre Anãna fez com que a imagem da minha mãe passeando comigo pelos jardins e mostrando a enorme estátua do grande pássaro de mármore se progetasse com tudo em minha mente.
-E o outro espírito?
A voz de Alícia acabou me trazendo de volta dos devaneios do passado.
-Como?
-O outro, você disse que são cinco mas só me falou de quatro, ainda falta um.
-Ah sim, realmente falta um...
Senti meu sangue gelar.
-O que foi?Você parece estranho, algum problema?
Levei um tempo para me concentrar e abandonar aquela sensação que sempre vinha quando o assunto era o quinto.
-O quinto espírito é um grande mistério, ninguém sabe seu nome muito menos sua aparência, os poucos relatos sobre ele, ou ela, é de que se trata de um ser cruel que mata qualquer um que entre em seus domínios.
-Nossa - podia sentir Alícia tremer - E onde ficam esses domínios?Sabe... só para ter certeza de nunca passar por perto.
-Aí é que está - suspirei - Os domínios do quinto são em densas nuvens negras que se deslocam pelo céu sem ajuda dos ventos, é como se ele pudesse aparecer em qualquer lugar a qualquer hora, algumas espécies camponesas contam que já viram plantações se tornarem cinzas depois que essas nuvens passaram trazendo um tipo de tempestade de luz, é claro que também são relatos e ninguém sabe se isso é verdade ou não mas, em todo caso, qualquer um que vê a aproximação de várias nuvens se esconde e procura abrigo o mais rápido possível implorando para que não seja o quinto espírito ou, como muitos costumam chamar, O grande espírito das tempestades.
-Esse sim é assustador - vi Alícia abraçar o próprio corpo - Mas e você Amenadiel?Também tem medo dele?
-Todo ser vivo com plena consciência tem medo dele, os grandes espíritos podem ter histórias fabulosas mas são tão reais quanto eu e você.
-Espero nunca dar de cara com um deles, principalmente o quinto, se bem que Yskhar parece boazinha, ah é!Você não disse onde ela vive.
-Yskhar vive em uma floresta, não faço a mínima ideia de qual mas se quiser saber mais alguma coisa sobre ela tenho certeza que a senhora Ada ficará feliz em te ajudar.
-Vou me lembrar de perguntar - seu olhar pensativo se voltou novamente para mim - É... só mais uma coisinha...
Lá vem.
-O que foi?
-Hmn - ela sorriu - O que são tempestades?
Pelos céus!
...
Quando Inae apareceu com duas tigelas recheadas de frutas eu finalmente pude ter um tempo para descansar, Dexter acabou vindo junto com a garota e parecia mais assustado do que a própria Inae quando me viu pela primeira vez.
-Mestre!Mestre!O que aconteceu?Onde estamos?Que lugar é esse?!
-Lamento, minha cota para responder perguntas já chegou ao limite.
-Ah!Mas eu quero saber!
-Não se preocupe Dexter, pode deixar que eu te conto tudo!
-Obrigado Alícia, você é um anjo!
Em um salto ele chegou até a humana que acariciou sua pelagem.
-Aqui está!Não sabia do que vocês gostavam então peguei um pouco de tudo - Inae nos entregou as tigelas - Se precisarem de mais alguma coisa podem me chamar, basta pedir para aquela borboleta - seu indicador apontou para o pequeno animal de asas rosas e vermelhas que descansava em uma das flores brancas - Tenham uma boa refeição.
A garotinha estava prestes a sair quando Alícia a chamou, seus olhares pareciam analisar uma a outra com cuidado e admiração.
-Pois não?
-Inae, esse é o seu nome, certo?
-Sim.
-Você é muito bonitinha sabia?
Vi as bochechas da pequena ninfa ganharem um tom pink assim que Alícia sorriu para ela.
-Ah!Muito obrigada pela refeição, tenho certeza que deve estar deliciosa!
-N.não precisa me agradecer...
Um pouco trêmula a garota saiu nos deixando novamente a sós, exceto pela presença de Dexter.
-Quem é ela?
-Alícia contará depois - disse pegando uma bolinha azul com pintinhas amarelas - Agora tratem de comer, especialmente você.
-Por que está me olhando assim?Não sou mais uma criança que precisa que chamem a atenção para comer sabia?
-É mesmo?
-É!
Com um biquinho a humana enfiou um morango lilás na boca, ela até tentou se fazer de irritada por mais tempo mas logo deixou transparecer o agrado que sentiu pela fruta.
-Uau!Isso é muito bom!Até mais do que as mangas!
Em seguida ela pegou outro e mais outro devorando-os com avidez. Eu ainda permanecia com minha fruta azul na mão, meu estômago apertava de fome mas me permiti observar aquela curiosa mulher por mais um tempo.
Alícia havia se tornado alguém especial, e o alívio que eu sentia ao vê-la comer e principalmente apreciar o alimento não me deixavam negar. O que está acontecendo comigo afinal? A sensação de estar se aproximando de um abismo ainda continuava ali, e por mais que a prudência e a razão gritassem para que eu me afastasse não conseguia deixar de me aproximar desse novo e perigoso sentimento. Se liberte disso Amenadiel. Pensei nos vários motivos que me levaram a ser quem sou hoje e afastar quem quer que fosse de mim até que os olhos da humana se abriram e encontraram com os meus, ela estava feliz, uma felicidade sincera e sem medos. Tudo o que mais quero é me sentir assim de novo. Mas isso já havia se tornado um sonho distante para mim.
-Aqui Amenadiel...
Sua mão me estendia um grande morango, talvez o maior da tigela.
-Essas azuis não são tão doces.
Doce...
-Obrigado.
Peguei a fruta sendo recompensado com um enorme, sincero e doce sorriso.
Maldito abismo...
...
Ainda permaneci um tempo no quarto com aqueles dois, o necessário para me certificar de que a humana teria devorado todas as frutas, quando Dexter começou a fazer as mesmas perguntas que Alícia fez para mim decidi procurar Ada para uma conversa séria, afinal, a estranha sensação de familiaridade com a floresta lá de baixo ainda martelava na minha cabeça.
-Onde o senhor vai mestre?
-Vamos embora?
-Não, ainda não, só vou falar com a anciã mas tem uma coisinha que quero deixar bem claro antes de sair - parei à poucos centímetros da passagem - Dexter, não deixe que Alícia fique perambulando por aí - encarei ambos com tom ameaçador - Não quero ter que escutar as ninfas falando que "alguém" despencou da árvore por falta de atenção.
-Pode deixar mestre!
-Ei!Como assim "alguém"?!
Sem dar tempo para que a humana começasse a reclamar atravessei a passagem de raízes saindo no mesmo corredor de antes, o ar ali parecia mais fresco e sem resquícios do perfume das flores brancas do quarto.
Ótimo, agora, onde Ada deve estar?
Olhei para a direção que levava até escadaria em formato de caracol vendo uma ninfa de pele azul e cabelos rosas surgir com algumas tabuletas de barro nas mãos, como aconteceu com as outras duas mulheres ela também mudou de cor para um azul mais escuro assim que seus olhos se encontraram com os meus.
Bom, acho que não vai ser tão difícil descobrir.
Andei ao lado da ninfa azul por vários corredores e escadas feitas inteiramente por folhas e raízes sempre nos levando cada vez mais para baixo, volta e meia algumas mulheres cruzavam nosso caminho com olhares curiosos antes de seguirem cochichando alguma coisa na qual não me atentei muito.
-A anciã está bem aqui.
A ninfa azul parou em frente a uma enorme porta dupla também de madeira com entalhes de animais mágicos e flores, como não existiam objetos de vidro, ouro, prata, bronze ou ferro por ali, até mesmo os ferrolhos e dobradiças eram feitos de madeira.
-É só bater.
Com um sorriso tímido ela se foi tomando o mesmo trajeto que havia nos trazido até ali. Esperei até ter certeza de estar sozinho antes de bater duas vezes. No mesmo instante uma voz rouca ecoou lá de dentro.
-Entre!
Sem cerimônias empurrei as duas portas ouvindo as dobradiças estalarem, quando o interior do cômodo se tornou visível me surpreendi com o espaço e a variedade de plantas e animais que se encontravam do outro lado.
-Que bom que veio Amenadiel, por favor entre!
A sala era redonda, provavelmente dez vezes maior que o quarto onde Alícia estava se estendendo a perder de vista a centenas de metros acima das nossas cabeças, grossas raízes rodeavam tudo deixando com que inúmeros galhos cheios de botões brilhantes iluminassem o ambiente como a própria luz do dia, no centro da sala árvores de coloração viva formavam uma espécie de arco onde uma enorme estátua de Yskhar se encontrava, flores perfumadas rodeavam seus cascos enquanto aves de asas coloridas e longas caudas descansavam em seus chifres, bem ao sopé, em frente a um pequeno altar, Ada acenava para mim, sua estatura já era baixa mas perto da estátua do grande espírito ela se tornava minúscula.
-Sinto muito atrapalha-lá.
Caminhei sobre a grama verde me sentindo um tanto intimidado com a enorme estátua.
-Imagina, venha, aproxime-se mais!
Com cautela dei mais alguns passos até ficar a um metro de distancia.
-Está assustado com alguma coisa?
-Digamos que já faz muito tempo que não coloco os pés em um lugar como esse - ergui os olhos até a imagem de Yskhar - Tinha me esquecido de como essas estátuas podem ser grandes.
-Fazemos o melhor para agradar nossa guardiã - Ada sorriu - Sei que o espírito do seu povo é outro Amenadiel, mas tenho certeza que Yskhar o recebe com bons olhos em seu templo.
-Me sinto honrado pelas palavras.
E muito alíviado.
Mesmo que fosse apenas uma estátua, era inegável que aquela imagem possuía uma forte presença.
-Mas e então, o que o traz aqui?Pensei que quisesse passar mais um tempo com sua amiga, por isso não fui chama-lo antes.
Tentei ignorar a forma como ela havia pronunciado a palavra amiga.
-Agradeço a preocupação e principalmente os cuidados que você e seu povo tiveram conosco mas já me sinto plenamente recuperado e gostaria muito de falar com a senhora.
Mais uma vez Ada sorriu, ela tinha uma serenidade que só pessoas que já viveram e viram muitas coisas possuíam. Exceto minha mãe. A rainha de Gryfield era nova mas tinha a mesma serenidade no olhar.
-Como o tempo passou... desgraças aconteceram e você deve ter enfrentado muitas dificuldades até aqui...
Senti suas mãos acolherem meu rosto com ternura.
-Mas ainda continua com o mesmo olhar bondoso daquele garotinho que vi pela primeira vez Amenadiel.
Fique em silêncio apenas absorvendo o calor das suas mãos enquanto a imagem de uma bela e jovem ninfa verde oliva se projetava em minha mente.
-Já não sou mais o garoto de anos atrás Senhora Ada - suspirei - Aquela criança acabou morrendo junto com a mãe.
-Não é verdade - seu olhar escuro fixava-se ao meu - Eu ainda consigo vê-lo aí dentro, por trás de toda essa raiva, tristeza e medo, ainda consigo ver aquela criança espirituosa e alegre.
Essa criança não existe mais, já está morta...
-Sei que deve ter passado por coisas horríveis, mas também sei que voltará a encontrar a felicidade e principalmente a paz que tanto procura.
-Como sabe disso?
-Apenas intuição de uma pobre velha que já viveu muito - ela riu e por um momento pude ver uma pequena Glith no lugar da ninfa.
-Bom, de qualquer forma, eu vim aqui por outro motivo.
-E qual seria?
-É sobre a floresta abaixo de nós, a que parece estar sempre coberta pelas nuvens.
Dessa vez a anciã demorou para responder, andou de um lado para o outro pegando algumas pedras com entalhes colocando-as sobre o altar, só depois da quinta que voltei a ouvir sua voz.
-Aquela floresta é a floresta das sombras, e no meio dela está uma cidade tenebrosa - devagar suas mãos ergueram uma sexta pedra, diferente das outras essa era escura e foi colocada bem no centro - A cidade das bruxas.
Agora eu entendia de onde vinha aquele sentimento.
-A maioria das pessoas de lá cultuam uma entidade de trevas, e se utilizam da proibida magia negra.
Então era esse o motivo da estranha sensação de familiaridade. Respirei fundo. Aquela maldita cidade surgia no meu caminho mais uma vez.
-Deve saber que Dublin foi erguida no mais alto e imponente carvalho dessa floresta, ficando acima das trevas e ao alcance da luz, longe daquela gente.
-Lembro-me de ouvir meu professor falar sobre isso, Yskhar banhou o carvalho com sua magia o ocultando do olhar de todos, assim protegendo o povo que vive aqui.
Fiquei aliviado ao ver que seu semblante se suavizou.
-O grande espírito nos protege do mal a eras, mas ultimamente coisas estranhas vem acontecendo.
-Que tipo de coisas?
Dessa vez foi ela que respirou fundo.
-Cada vez mais criaturas malignas da cidade se aproximam da árvore, tenho certeza que mesmo que toquem o carvalho não vão conseguir ver ou sentir nada de diferente de uma árvore comum mas, mesmo assim, ainda é estranho já que isso nunca aconteceu antes.
-Curioso, um fato estranho também ocorreu em uma cidade chamada Emenda, mas digamos que as coisas por lá foram bem mais...extremas.
Me recordei das aranhas mecânicas e principalmente do corpo morto do garoto sendo controlado por um parasita do submundo. Há algo muito errado acontecendo. Eu só não sabia o que. Pelo menos ainda.
-Não quero pensar nisso mas, sinto que tempos sombrios estão chegando.
-Eu tenho certeza que deve haver uma explicação para esses acontecimentos estranhos Senhora Ada.
Me perdi momentaneamente na imagem de Yskhar e a pedra negra sobre o altar.
E eu sei muito bem onde encontrar a resposta.
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