2
A humana e a bússola
...
Humana.
A palavra ainda parecia flutuar em meus pensamentos.
Uma fêmea humana.
Dexter continuava a fuçar os livros estranhos enquanto eu mantinha minha atenção total sobre a criatura estupidamente frágil à minha frente.
Há algo errado.
Seu olhar estava baixo mas o corpo continuava a tremer.
Os humanos desapareceram a centenas de anos.
Analisei o objeto cortante que tinha em mãos, a lâmina parecia ser de um material nobre mas não possuía corte algum, até mesmo as minúsculas garras de Dexter fariam um estrago maior do que aquela faca.
Ela achou mesmo que ia se defender com isso?
Tudo indicava que o objeto havia sido usado por um longo tempo sem ao menos ser afiado.
—Mestre.
Dexter finalmente pareceu terminar de fazer suas pesquisas para se juntar novamente a mim.
—Infelizmente a língua dos livros é antiga de mais, não consegui decifrar muito, bom, praticamente nada.
Suspirei.
Perda de tempo.
—Mas, isso só serviu para confirmar o que eu havia suspeitado, ela é realmente uma fêmea humana — vi uma de suas patas apontar para a criatura amedrontada — Além do cheiro do ambiente que indica a falta nítida de magia, as características físicas dela também lembram os traços dos humanos que li uma vez em um livro tão antigo quanto aqueles.
—Os humanos desapareceram a um bom tempo atrás, sem deixar pistas ou rastros — voltei a olhar para a fêmea ainda sentada em meio a cama de feno — Por que diabos um deles estaria sozinho em um lugar como esse?
Me lembro de ouvir um dos meus professores ensinar sobre espécies que necessitavam de seus indivíduos para a sobrevivência, não era uma lembrança que me agradava reviver mas, os humanos haviam sido um exemplo claro citado por ele.
—Não sei mestre mas parece que não há mais ninguém, até mesmo o odor do ambiente indica que somente essa fêmea mora aqui, sozinha.
—Isso não é verdade!
Meus ouvidos doeram com o grito repentino da humana, como se tivesse consciência do seu descontrole a fêmea abaixou o tom de voz enquanto mantinha os olhos fixos nos livros sob a escada.
—Meus pais também vivem comigo.
Mais humanos?
—Não vivem não, só ela está aqui mestre.
—Isso é mentira!
—Eu nunca minto sua...
—Silêncio!
Ambos ficaram quietos.
Maldito dia.
Minha cabeça começava a doer mas ignorei o desconforto.
—E onde seus pais estão agora? — perguntei.
Seus olhos voltaram a mirar os livros.
—Eles saíram...
Percebi a angústia presente naquela simples frase.
Enquanto a fêmea humana pareceu se perder com os próprios pensamentos parei mais uma vez para analisar aquele cômodo, alguns detalhes me haviam escapado mas agora se tornavam tão nítidos quanto água, principalmente as marcas na madeira que davam sustentação a escada, bem próximo aos livros, foi então que me dei conta de que era ali que a fêmea tanto olhava.
—O que foi mestre?
Continuei observando as marcas que provávelmente serviam para medir a altura já que haviam vários outros entalhes um próximo ao outro, o último deles tinha o tamanho de uma criança de no máximo dez anos.
—Há quanto tempo seus pais saíram? — perguntei sem desviar os olhos da madeira, aquelas marcas possuíam uma forte aura, conseguia sentir os sentimentos de alegria e felicidade que emanavam dali.
—Não me lembro...
Dessa vez me foquei na humana, não parecia ter mais do que 500 anos, isso seria o que em relação a idade daquela espécie?Dezoito?Vinte talvez.
Fazem anos que os pais dela saíram.
Os olhos da fêmea continuavam perdidos em algum ponto aleatório.
Abandono?
Não me parecia uma opção, se humanos necessitavam tanto um dos outros para a sobrevivência não deixariam para trás um dos seus, ainda mais uma criança.
Talvez estejam mortos.
A hipótese era mais plausível.
E ela continua esperando por eles até hoje?
Tive vontade de dizer que seus pais nunca mais voltariam e que provavelmente estariam mortos, talvez a muito tempo atrás porém, isso não era um problema meu.
—Vamos Dexter.
Me levantei sentindo as garras do meu Gouli cravarem no tecido que cobria meu ombro.
—Já perdemos tempo de mais aqui.
—Esperem!
Estava quase subindo as escadas quando a voz da humana voltou a ecoar no ambiente, dado ao tempo que havia ficado em silêncio foi estranho ouvi-la outra vez.
—Não podem sair ainda!
Ignorei seus apelos enquanto agarrava uma das madeiras que serviam de degraus para aquela escada rústica.
—O sol está no seu ápice, não conseguiriam ir muito longe, e nesse deserto nem mesmo sua bússola seria capaz de mostrar uma direção.
O quê?!
Subitamente parei, meus dedos ainda seguravam firme a madeira quando senti o sangue esquentar dentro do meu corpo.
—Você tocou na minha bússola? — quase não reconheci minha própria voz.
—Eu...
Perdendo parte do controle que mantinha sobre mim avancei sobre a humana agarrando seu pescoço e empurrando-a contra o feno até que minhas garras alcançassem a madeira da cama.
—Responda!
Segurar uma área tão sensível do seu corpo fez com que eu tivesse noção de boa parte da sua musculatura, não seria difícil mata-la, um simples puxão ou até mesmo um pouco mais de pressão e seria o fim.
—A encontrei caída do seu lado... — sua voz era fraca mas não afrouxei meus dedos, se conseguia falar então também conseguia respirar — Quando estava desacordado no deserto...
Por impulso levei a mão que estava livre a um dos bolsos sentindo o metal frio que compunha parte da minha bússola.
A humana colocou de volta...
Foi quando senti sua pulsação enfraquecer, mais alguns segundos e estaria morta.
—Por favor...
Suas mãos seguravam a minha sem força alguma para fazer algo, nem mesmo lutar pela própria vida.
Quando percebi que começava a perder os sentidos a libertei fazendo com que puxasse uma longa lufada de ar se engasgando, uma marca vermelha havia se criado em volta da sua garganta sem que eu ao menos tivesse usado muita força para aquilo.
Fraca.
Ainda a encarei vendo suas mãos acariciarem a região onde segundos atrás estava a minha.
—Por favor não me mate...
Deveria ter implorado por isso antes de solta-la, provavelmente ela havia tentado mas não teve forças para terminar a frase.
Deixei a fêmea de lado por alguns instantes sob o olhar atento de Dexter enquanto puxava a bússola do meu casaco, como da outra vez ela apenas girava sem indicar nenhuma direção.
Droga!
—Você disse que nesse deserto minha bússola não seria capaz de me guiar — mirei meus olhos na humana que rapidamente se encolheu parecendo bem menor do que já era — Explique.
—Ok — a vi estender uma das mãos na frente do rosto enquanto a outra continuava na garganta — Mas antes prometa que não vai tentar me matar de novo.
Tentar?
—Se eu a quisesse morta tenha certeza que assim estaria — me aproximei vendo seu corpo recuar até estar grudado na parede — Mas pode ficar com isso se acha que se sentirá mais segura — joguei a faca sem corte em seu colo, demorou alguns segundos até que ela a segurasse com ambas as mãos.
Patético.
—Agora fale.
—Um obrigado também séria bom...
A ouvi resmungar mas acho que para ela mesma.
—Não teste a minha paciência Humana.
Seus olhos se arregalaram mais uma vez, parecia não ter controle algum em demonstrar suas emoções.
—Você conseguiu me ouvir?
—O deserto — fui enfático — E por que minha bússola não funciona?
Era frustante ter que depender de uma criatura como aquela para conseguir respostas que seriam cruciais em minha jornada.
Preciso sair logo daqui.
A ouvi suspirar como se estivesse aborrecida.
E quanto antes melhor...
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