18
Cruel?
...
Conforme avançavamos pelas ruas as casas iam tomando formas cada vez mais peculiares. Agatha e Gilbert iam na frente indicando o caminho enquanto Alícia, Dexter e eu vínhamos logo atrás.
—Esse lugar é meio maluco — a humana olhava para cada uma das moradias abandonadas — Nunca imaginei que fosse possível emendar tantas coisas em uma só.
—Não é atoa que o nome da cidade é Emenda — olhei para a faixa de tecido colorido em sua perna — Como está seu joelho?
—Ótimo! — um leve sorriso se formou em seus lábios — Foi só um cortezinho, eu já disse.
—Você realmente deveria ser mais atenta — suspirei — Teve sorte de não despencar do alto da escada.
—Não acredito em sorte — ela fez uma pausa — Para mim tudo acontece por um motivo.
—Igual a sua queda?
—Claro!O motivo de eu ter caído foi por que não olhei o último degrau mas, eu estava atenta quando desci os outros.
—Se você diz...
Continuamos em silêncio por um bom tempo até que ela voltasse a falar.
—Ah!Aqui!Acho que isso é seu.
Sua mão me estendia uma fina fita de cetim.
—Deve ter caído durante a noite.
Sem dizer nada peguei a tira colorida.
—É muito bonita, ganhou de alguém?
Sua pergunta me trouxe de volta o largo sorriso de uma garota de olhos verdes mas no mesmo instante afugentei aquela memória.
—Sim.
—Hmn...
Alícia continuava com sua total atenção sobre mim, sabia que ela estava curiosa e queria saber mais sobre aquela fita, no entanto, eu não estava nem um pouco a fim de relembrar o passado. Para isso já me bastava os pesadelos.
—Também acho bonito o jeito que amarra o cabelo com ela.
—É apenas uma trança — respondi na esperança de encerrar logo aquele assunto — Qualquer um pode fazer isso.
—Qualquer um que saiba...
A espiei de canto de olho.
—E você não sabe?
Em resposta tive o silêncio.
—Entendi...
Sem dizer mais nada prosseguimos encurtando nossa distância entre os dois irmãos que já haviam cruzado uma esquina, quando fizemos o mesmo um amplo espaço aberto surgiu onde todas as ruas pareciam se encontrar, algumas árvores secas se espalhavam pelas calçadas e bem no centro uma fonte ganhava o destaque com várias pedras coloridas, no entanto, nenhuma gota d'água saia dela.
—Aqui ficavam as barracas do comércio — Gilbert apontava para os pedaços de madeira largados pelo chão — Mas como pode ver não há mais nada...
—Eu nunca vi um comércio antes — Alícia bisbilhotava uma tenta velha e completamente rasgada — Parece que foi um lugar muito agitado.
—É o que normalmente são, várias pessoas indo e vindo, vendendo, comprando e etc, etc — respondi enquanto olhava melhor os pedaços de madeira.
—Então você nunca viu um comércio antes?
—É sério isso?
Agatha parecia tão surpresa quanto o próprio irmão.
—Não — Alícia deu de ombros — De onde eu vim só tinha areia.
—Você morava em uma praia?
—Bem, eu...
Enquanto os três conversavam deixei minha atenção se focar em tudo que estava ao meu redor, desde o chão, as casas, as árvores, a fonte e principalmente os destroços.
—O que está procurando mestre?Posso encontrar para você se quiser.
—Não é assim tão simples Dexter.
Continuei procurando por longos segundos, nenhum detalhe me escapava mas nada indicava que alguma coisa ali estivesse relacionada a minha suspeita.
Droga...
A conversa dos três já havia acabado e eu conseguia ouvir seus passos virem na minha direção.
—E então?Encontrou o que estava procurando?
—Não — respondi depois de um tempo tentando esconder minha frustração.
—Eu bem que avisei, não há nada aqui.
Podia sentir minha cabeça latejar mas contive o impulso de apertar minhas têmporas.
—Acho melhor voltarmos então, não gosto de ficar muito tempo nessa região...
—Concordo irmãzinha, esse lugar traz, lembranças...
Os dois já se viravam para sair quando senti Alícia se aproximar.
—O que você estava procurando Amenadiel?
Seu olhos continuavam com aquele brilho de curiosidade ingênua.
—Nada.
Estava me sentindo frustrado de mais para conversar porém, para a minha infelicidade, a humana não compartilhava do mesmo sentimento.
—Não creio que você quis vir até aqui por causa de nada — seu olhar era persistente.
—Foi apenas um engano, esqueça —fui ríspido mas ela fingiu não notar.
—Você parecia confiante de mais para ser apenas um engano —sua voz era mansa — Se tinha tanta certeza que ia encontrar alguma coisa então por que vai desistir assim tão fácil?
Por um momento me permiti mergulhar naqueles olhos caramelos, não sabia explicar ao certo o porque mas, cada uma daquelas palavras conseguiu me atingir de uma forma inexplicável. Sincera como sempre. Mas não era só isso.
—Vocês vêm?! — Gilbert gritava da esquina.
Alícia continuava me observando, parecia esperar por alguma reação minha mas como não esbocei nada ela simplesmente se virou indo em direção aos outros dois, parecia decepcionada mas não me importei. Você não é a primeira a sentir assim estando comigo. Com a cabeça pesada estava prestes a fazer o mesmo quando suas palavras voltaram a ecoar baixinho em algum lugar da minha mente obscura. "Por que desistir tão fácil?" Aquela simples pergunta me impedia de continuar. Por quê? Olhava as costas da humana tentando arranjar uma resposta.
—Mestre?Não vai ir com eles?
Continuei ali, parado, com uma simples pergunta martelando insistentemente na cabeça.
—Mestre?
Maldição!
Cerrei os dentes deixando aquela nova sensação tomar conta do meu corpo. Não, eu não desisto fácil! Me virei em direção aos destroços e comecei a varrer mais uma vez aquele lugar com os olhos. Tudo estava coberto por poeira, desde as tendas rasgadas, as madeiras, os destroços de muros caídos, os buracos. Buracos? Me aproximei da parede de uma das casas que ainda estava de pé, bem perto do que sobrou das barracas, vendo que haviam alguns buracos minúsculos cravados na madeira. O que é isso? As marcas não pareciam estar ali ao acaso.
—Amenadiel?!
—Você vem?!
Podia ouvir as vozes de Agatha e Gilbert me chamarem mas os ignorei, só conseguia observar aqueles buraquinhos que agora pareciam estar espalhados por todo canto.
—O que foi mestre?Encontrou alguma coisa?
—Sim Dexter — finalmente falei — Encontrei sim.
Sem perder mais tempo me agachei desenhando no chão empoeirado o mesmo padrão das marcas que via nas casas e muros dali.
—O que é isso mestre? — Dexter entortava a cabeça de todos as formas possíveis tentando entender aquelas marcas.
—Essa é uma boa pergunta — murmurei.
—O que vocês estão fazendo?
Passei tanto tempo olhando aqueles padrões que nem percebi quando os dois irmãos e Alícia voltaram.
—O que é isso?
—Eu não sei — fui franco — Já tinham visto esses tipos de marcas na cidade?Mais precisamente antes dos habitantes daqui começarem a sumir?
Gilbert se aproximou olhando mais atentamente para o chão.
—Que eu me lembre não, e você irmã?
Dessa vez foi a boneca que se aproximou, rodeou várias e várias vezes as marcas antes de se colocar ao lado do irmão e balançar negativamente a cabeça.
—Mas afinal de contas o que é isso?
Inconscientemente levei uma das mãos até o queixo.
—Provávelmente pegadas.
—Pegadas? — Alícia me olhou incrédula — Mas nas paredes?
—Não é tão impossível quanto imagina — a encarei — E isso ainda explicaria o barulho que ouvimos na noite passada vindo da janela do quarto.
—É, até que faz sentido...
—Eu não estou entendo mais nada — a voz de Gilbert era pura confusão — Viemos até aqui e você achou essas marcas mas, como isso pode ser pegadas? E se forem, são pegadas de quem?
—O melhor a se dizer seria "pegadas do quê?" — olhei em direção as outras casas da rua e todas possuíam as mesmas marcas — Alícia — a garota tomou um susto ao me ouvir chamá-la — Você ainda se lembra dos barulhos?
—E tem como esquecer?
Mesmo baixo ouvi seu murmúrio.
Não, algumas coisas são impossíveis de se esquecer.
—Mas por que está me perguntando isso agora?
—Não se recorda de mais nada?Algo familiar?
Seus olhos me encaravam como se eu estivesse louco. Tive de respirar fundo para conter minha impaciência.
—Vamos lá — insisti — Pense, não é difícil fazer isso, ou será que para você é?
Dessa vez foi ela que me olhou irritada. Por um momento cheguei a pensar que soltaria sua língua afiada para rebater minha provocação mas, para minha surpresa, ela simplesmente fechou os olhos se concentrando. Boa garota.
—Agora que parei para pensar — ela finalmente disse depois de um tempo — Tinha algo familiar sim.
Todos ficaram em silêncio esperando que continuasse.
—Era um ruído muito parecido com os das criaturas de engrenagens que apareciam na minha casa!
—Foi o que imaginei...
—Espera! — a vi erguer as duas mãos — Quer dizer que quem sumiu com o povo dessa cidade foram aquelas criaturinhas?
—É, desculpe atrapalhar a conversa mas — Agatha havia se aproximado mais — Será que podem nos dizer sobre o que estão falando?
—Confesso que estou tão intrigado quanto confuso — Gilbert se colocou ao lado da irmã — O que são essas criaturas?
Alícia olhou mais algumas vezes para as marcas do chão antes de me encarar, sabia que ela queria falar sobre o assunto, estava nítido em seu semblante, eu por minha vez dei de ombros deixando que ela começasse.
—Bom, como eu disse antes vivi minha vida toda no meio de um deserto e de vez em quando algumas criaturas apareciam por lá.
Os dois irmãos a ouviam atentamente.
—Elas eram pequenas, mais ou menos dessa altura — com uma das mãos ela apontou na região da própria cintura — Feitas de metal, não tinham pernas e pés como nós, no lugar apenas uma grande roda que fazia um barulhinho irritante.
—Nunca ouvi falar em coisa parecida...
—Eles parecem assustadores.
—Não, não — a humana sorriu — Até que eram bonitinhos.
—Mas o que isso tem haver com o que está acontecendo na nossa cidade?
—Não acho que criaturas tão pequenas conseguiriam sumir com tantas pessoas.
—E além do mais!Se eles tem rodas no lugar dos pés as marcas seriam bem diferentes desses pontinhos — Gilbert fez uma pausa — E duvido muito que conseguiriam subir nas paredes.
—Bom, em relação a isso eu já não sei — os olhos da humana se voltaram para mim — Mas acho que agora é a sua vez de falar.
Um curto silêncio pairou sobre nós enquanto todos esperavam pela minha resposta.
—Vocês tem razão nessa parte — me aproximei da parede mais próxima com aquelas marcas estranhas — Criaturas tão pequenas e com rodas não conseguiriam raptar tanta gente muito menos escalar alguma coisa — voltei a olhar para os três — Mas isso não significa que não possa existir outra coisa capaz de fazer tudo isso — fiz uma breve pausa lembrando da conversa de mais cedo — E ainda há o fato de Dexter não ter ouvido nada durante a noite, o que é estranho já que qualquer presença ameaçadora o teria acordado antes mesmo de mim, há não ser que...
—Quê?
Ainda fiquei um tempo em silêncio tentando assimilar melhor todas as informações, quando finalmente tive certeza que minha hipótese se tornava cada vez mais concreta olhei para os três enfim revelando minha suspeita.
—A não ser que as criaturas que fazem aqueles barulhos a noite não estejam vivas.
Um segundo.
Foi o que bastou para que todos ali me olhassem como se eu estivesse louco. Pelos céus! Engoli meu desprazer e respirei fundo.
—Pela reação de vocês acho que não acreditaram nem um pouco no que acabei de falar.
Agatha e Gilbert se entre olharam, pareciam querer dizer algo mas tinham receio em fazê-lo. Será que estão com medo de como eu possa reagir? A ideia era frustrante. O monstro aqui não sou eu! Pelo menos não por agora.
Enquanto os dois irmãos guardavam os próprios pensamentos Alícia deu um passo a frente, esticou uma das mãos e tocou minha testa. Seu toque era morno e o perfume doce continuava lá, emanando da sua pele alva. Era uma sensação estranha e inebriante. Quando achei que ia mergulhar naquele momento sua boca atrevida se abriu deixando escapar, como sempre, o que estava pensando.
—Esse sol não é tão quente igual o deserto mas acho que está fazendo muito mal para você...
Senti um dos músculos da minha face se contraírem. Essa fêmea...
—Não estou louco, se é isso que está pensando — fingi um sorriso.
—É claro, é claro... e as pedras voam... — ainda a ouvi sussurrar conforme se afastava.
Para conter a raiva que começava a se inflamar em mim segurei firme minha ponte deixando a pressão dos dedos ir me acalmando. No que minha vida se transformou? Em outros tempos estaria vagando por tabernas e procurando informações com as mais hóstis espécies desse mundo mas, agora eu estava aqui, em uma cidade abandonada com dois bonecos e uma fêmea humana irritante pra cacete.
—Posso explicar para eles se preferir mestre.
Sem muita paciência simplesmente concordei com um gesto fazendo com que Dexter tomasse a vez.
—O que meu mestre quis dizer é que provavelmente essas criaturas sejam algum tipo de marionete.
—Ma.ri.o.ne.te... — Alícia parecia testar a palavra — O que é isso?
—São como bonecos — Agatha respondeu.
—Igual a vocês?
—Não, não são iguais a nós.
—Marionetes são bonecos que podem ser controlados, os mais comuns têm cordinhas amarradas nas mãos e nos pés.
—Então essas criaturas que escalam as paredes também têm cordinhas?
Dessa vez a louca da situação parecia ser Alícia e suas dúvidas mirabolantes.
—Acho que o que meu mestre quis dizer é que o quer que tenha atacado a cidade estava sendo controlado por alguém.
—Mas quem faria uma coisa dessas?!
Deixei minha cabeça pender um pouco para trás enquanto a leve brisa da manhã tocava meu rosto.
—Essa também é uma boa pergunta.
...
Um tempo depois todos já estavam de volta à casa dos dois irmãos, podia sentir a apreensão emanar forte de cada um ali exceto, Alícia, essa já havia dado um jeito de descontrair o ambiente com sua curiosidade e as várias perguntas que não parava de fazer.
—O quê?!
—É isso mesmo.
—Não...pera...então vocês costuram novos bonecos e daí eles ganham vida?!Assim, do nada?!
—Exato!
Agatha ria baixinho enquanto Alícia mantinha a boca aberta em um imenso O.
—Mas como isso é possível?!
—É por causa da nossa essência mágica.
—Eu ainda não entendo...
Um pouco confusa Agatha continuou.
—Todo mundo tem uma essência mágica que varia de espécie para espécie, algumas pessoas conseguem controlar elementos da natureza, outras criam poções e armas mágicas e têm até mesmo aquelas que conseguem criar portais místicos!Mas ninguém sabe ao certo para onde eles levam...
—Uau — os olhos de Alícia brilhavam — Isso tudo é incrível mas, se vocês "criam" os cidadãos daqui por que ainda não fizeram isso?Assim não estariam mais sozinhos.
—Nós até pensamos nessa possibilidade mas, além de ser algo muito trabalhoso ficamos com medo de acontecer mais raptos — ela fez uma pausa — E isso só nos entristeceria mais.
—Entendi.
—Mas e você Alícia?Qual é a sua essência mágica?
—Eu?Bom...
Antes que ela pudesse continuar um som alto ecoou da sua barriga fazendo com que todos a olhassem.
—Você deve estar com fome — Agatha pareceu cabisbaixa derrepente — Desculpe mas não temos nada para oferecer.
—Tudo bem!Ainda tem algumas mangas na minha bolsa, acho que dá para todos!
—Não se preocupe com nós dois — dessa fez foi Gilbert que falou — Minha irmã e eu estamos bem.
—Não estão com fome?
Mais uma vez Agatha riu.
—Não precisamos nos alimentar como vocês, afinal de conta, somos bonecos.
—Ah, entendi — Alícia pareceu sem graça — E você Amenadiel, vai querer?
—Estou bem assim.
—Dexter?
—Obrigado mas não estou com fome.
—Bom, acho que vai ser só para mim então — a vi se levantar e sacudir o vestido antes de ir em direção às escadas — Volto logo.
—Ah!Espere, eu vou com você.
—Ok!
Com um sorriso simpático as duas sumiram em direção ao segundo andar deixando Gilbert, Dexter e eu na sala.
—Elas se dão muito bem, até parecem amigas de longa data.
Olhei para os degraus de madeira sentindo o tão familiar perfume da humana emanar dali.
—Alícia tem uma rara facilidade de dialogar, isso deve ter cativado sua irmã.
—Acho posso dizer o mesmo de Agatha, ela adora conversar e agora que encontrou outra garota está entusiasmada compartilhando seus assuntos femininos.
Acabei lembrando do olhar atento da boneca sobre mim e a semelhança que tinha com o da humana quando ela também fazia isso.
—As duas são parecidas — falei enquanto me acomodava melhor no sofá — Mas a conversa entre nós é outra — encarei Gilbert sentindo a tensão no ambiente mudar — Não tem nenhuma suspeita de quem possa querer destruir sua cidade?Reinos inimigos talvez?
—Emenda nunca teve desafetos, sempre fomos pacíficos e não temos nada de valor que possa interessar alguém ao ponto de quererem nos destruir.
—Isso os deixa novamente na estaca zero — respirei fundo — Se não tem nenhuma suspeita então a única solução é encontrar quem está por trás desses sumiços.
—Mas como faríamos isso?
—É simples — me alonguei antes de encará-lo novamente — seguindo as criaturas.
Como eu esperava Gilbert ficou sem reação alguma ao ponto de se parecer realmente com um boneco inanimado, se fosse uma pessoa de carne e ossos provavelmente estaria pálido igual papel.
—S.seguir aguelas coisas? — ele finamente falou depois de um tempo — Impossível!
—Por quê?
—Por que seríamos facilmente pegos!
—Já tentou alguma vez?
—Não!Justamemte por isso ainda estou aqui!Qualquer um que ande a noite desaparece por causa daquelas coisas!E os restos de tecido indicam que o que quer que aconteça quando se é pego não é nada bom!
—Hmn...
Deixei o silêncio reinar por alguns segundos.
—Bom, então a cidade continuará assim — me levantei — Obrigado pela hospedagem.
—Espera!Você vai embora?!
—Sim, já perdi tempo de mais aqui.
—Mas, se você for — ele se enrolava com as palavras — Agatha e eu...
—Isso não é um problema meu Gilbert — minha voz era calma — Como eu havia dito antes estou apenas de passagem.
O boneco parecia em choque, não conseguia reagir ou falar nada, em outros tempos até me compadeceria do seu desespero. Mas hoje não.
—Aconselho que deixe a cidade com sua irmã, é claro, se quiserem continuar vivos.
Segui em direção as escadas sem olhar para trás, já havia gastado tempo e energia de mais naquele lugar e não estava mais a fim de ficar por ali. Os problemas dessa cidade não dizem respeito a mim. Até por que, já tinha muito com o que ocupar a cabeça.
Quando alcancei o corredor acabei dando de cara com Agatha e Alícia que segurava firme duas mangas amarelas nas mãos.
—O que foi Amenadiel?
—Algum problema?
—Arrume suas coisas — disse passando por elas.
—O quê?Mas por quê?
—Estamos indo embora.
—Espera!Mas e as criaturas?Não iamos ajudar?
—Não me lembro de ter feito essa promessa.
—Mas...
Antes que a humana continuasse atravessei a porta que dava para o quarto onde passamos a noite, para meu alívio tudo continuava do jeito que havia deixado.
—Mestre?Tem certeza que é isso mesmo que quer fazer?
Já estava estranhando o fato de ele estar quieto por tanto tempo.
—Sim.
—Mas e Agatha e Gilbert?Eles são tão legais...
—Legais ou não protegê-los não é um problema meu — segurei firme minha bússola antes de guardá-la no manto — E você sabe disso.
—Eu sei mas-
—Amenadiel!
Sem aviso algum Alícia entrou no quarto como um furacão que surge no meio do nada.
—Como assim ir embora?!E Agatha?!E Gilbert?!
—Eu vou lhe falar o que acabei de dizer ao Dexter — me aproximei dela mas diferente das outras vezes ela não recuou — O que acontece aqui e com aqueles dois não é um problema meu, fui claro?
Fez-se um curto silêncio.
—Entendi...
—Ótimo!
—Então você simplesmente se aproveitou da hospitalidade deles e agora vai abandoná-los.
Ao ouvir aquilo tive que me controlar ao máximo para não me enfurecer ainda mais.
—Não sabe o que está dizendo humana.
—Estou dizendo o que estou vendo!Aqueles dois são tão gentis e a única coisa que querem é salvar a cidade deles!E você vai simplesmente lhes dar as costas?!
—Já chega! — tinha chegado ao meu limite — Em primeiro lugar eu não ia me hospedar nesse lugar abandonado, muito menos ajudar quem quer que fosse, mas já fiz muito descobrindo aquelas marcas e dizendo que há alguém controlando as criaturas! — me aproximei mais ainda vendo-a recuar dessa vez — O resto não é mais da minha conta, e se simpatiza tanto com eles então sinta-se a vontade para ficar aqui!
Alícia abriu a boca mas nenhum som saiu, em compensação seus olhos brilharam com as lágrimas que começavam a se formar porém, ela não deixou que nenhuma caísse.
—Eu disse que você sabia ser gentil quando quisesse...
Depois de longos segundos voltei a escutar sua voz agora embargada.
—Só não sabia que você também pudesse ser tão cruel.
Cruel?
Como se aquela palavra fosse um soco no meu estômago fiquei sem ar na mesma medida que a imagem de uma adaga sendo cravada no peito da minha mãe tomava conta da minha mente. Sem conseguir me controlar esmurrei a parede na qual a humana estava escorada ouvindo a madeira ranger com o impacto.
—Cruel?! — meus dentes estavam tão cerrados que minha voz mais parecia um rosnado — Você não faz a mínima ideia do que é crueldade!
O corpo de Alícia tremia em baixo do meu, a raiva que lhe dava tanta coragem pareceu ter se esvaido deixando apenas espaço para o medo. O medo de mim. Por um momento me senti como um monstro, tão pior quanto as criaturas que raptavam os cidadãos de Emenda. Mas é isso o que eu sou. Um monstro responsável pela morte daqueles que um dia me amaram.
Quando a imagem de um doce par de olhos dourados surgiu em minhas memórias a raiva que eu tanto sentia foi aplacada, só depois disso consegui me afastar da humana que mantinha a cabeça baixa com os longos cabelos cobrindo o rosto.
É isso o que sou, um mostro.
E agora você sabe.
Sem dizer mais nada peguei minha espada seguindo em direção a saída, Dexter mantinha-se em meu ombro completamente calado. Alícia não me seguiu. E eu já esperava por isso.
É melhor assim.
Cruzei a porta deixando a fêmea humana para trás mas, por algum motivo, não conseguia deixar de sentir uma estranha dor em meu peito.
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