16
Mistérios da noite
...
Seguimos os dois bonecos pelas ruas de pedrinhas até nós depararmos com mais uma das tão peculiares casas dali, porém, se comparada as outras essa era até que "normal". A fachada, assim como todo o resto, era de uma madeira amarelo vivo, as janelas lembravam losangos roxos e verdes enquanto o telhado vermelho dava um toque aconchegante e acolhedor ao lugar.
—Pensei que vocês morassem naquela outra casa — Alícia varria cada canto com os olhos — A que vimos vocês saírem antes.
—Passamos a maior parte do dia lá na esperança de avistar algum visitante perdido — Gilbert subiu os três degraus abrindo a porta — Mas na verdade moramos aqui.
—Não é uma casa muito grande — Agatha correu atrás do irmão — Mas é aconchegante, vamos, entrem!
Assim que os dois bonecos sumiram Alícia, Dexter e eu nos olhamos com aquela sensação de desconfiança e curiosidade.
—Vamos mesmo prosseguir com isso mestre?
O sol começava a se pôr fazendo com que a sombra das outras casas se alongassem até onde estávamos.
—Acho que não temos outra opção.
Observei uma última vez o horizonte desértico antes de subir os três degraus e entrar na sala onde Agatha e o irmão estavam, assim que atravessamos a porta o homem de pano a trancou no mesmo instante com vários tipos de fechaduras além de vigas de madeira, Alícia e Dexter se assustaram com aquela atitude mas como senti que a intensão dele não era a de nos trancar ali dentro não esbocei reação alguma.
—Para que tantas trancas?
—Precaução — Agatha respondeu com tristeza.
—Precaução contra o quê? — Alícia continuava assustada.
—Para ser sincera, não sabemos.
—Como assim?
—É complicado...
—Seja lá o que for — me aproximei da porta analisando melhor todos aqueles mecanismos — Deve ser algo muito perigoso.
—E forte — a humana também se aproximou — Olhe quantas trancas...
—Mas ainda assim é estranho que eles não saibam o que está lá fora.
—Dexter tem razão — me voltei para os dois bonecos — Vocês disseram que iam nos contar tudo quando estivéssemos abrigados em sua casa — encarei os irmãos — Bom, aqui estamos nós, agora é a vez de vocês.
—É claro — vi Gilbert estender uma das mãos em direção ao que parecia ser um sofá — Por favor sentem-se.
Acompanhei os irmãos me acomodando, Alícia veio logo em seguida sentando-se ao meu lado.
—Que estranho...
Suas mãos tocavam o estofado fazendo com que ele afundasse.
—É tão... macio.
—Você dormia em uma cama de feno não é mesmo? — perguntei lembrando da vez que acordei no porão da casa dela.
—Sim.
—É só mais uma novidade então.
—Acho que é bem mais do que uma — seus olhos pareciam captar cada detalhe do cômodo — Veja só esse lugar!
Acompanhei seu olhar reparando em cada canto ali. Assim como imaginei quando estava do lado de fora o interior das casas não tinham um aspecto muito diferente, tudo, sem exceção, parecia estar emendado com alguma outra coisa.
O sofá em que estávamos era vermelho, de um tom bem gasto, tanto que haviam vários outros pedaços de tecido colorido costurado nele, talvez para esconder prováveis buracos, o tapete era metade de barbante metade de tiras transadas e até mesmos os quadros eram emendados, igual a um quebra-cabeça formando paisagens incompreensíveis. Tudo muito colorido e cheio de linhas de costura.
—Sentia falta disso...
Agatha estava sentada a nossa frente em uma espécie de poltrona de estofado rosa e braços de madeira.
—Isso o quê? — Alícia se voltou para ela.
—O olhar admirado, curioso...
—Digamos que não é preciso uma novidade muito grande para que esse olhar surja nos olhos de Alícia — disse me reencostando no sofá.
—É mesmo? — dessa vez foi Gilbert que se pronunciou — Se bem que você realmente parece diferente — o vi se sentar ao lado da irmã em uma poltrona parecida — Qual é a sua espécie?
—Eu sou...
—Isso não importa — cortei Alícia que me olhou feio — A questão aqui é outra.
—Tem razão, só achei curioso ela não ter uma presença mágica.
—Quem sabe quando acabarmos nossa conversa ela fale — sustentei os dois botões que me encaravam — E então?
—Não se preocupe Amenadiel — Agatha se levantou — Meu irmão falará tudo, mas se me dão licença preciso checar se todas as janelas estão fechadas.
—É claro irmãzinha.
Vi os dois trocarem um breve aperto de mão antes dela subir os degraus de uma escada que estava ali, nem preciso dizer que as madeiras eram dos mais variados tipos, tamanhos e cores.
—Bom... por onde eu começo?
—Pelo início se possível.
Gilbert riu, uma risada sem graça.
—Vocês parecem pessoas que já viajaram muito, por muito tempo.
—Eu nem tanto — Alícia se pronunciou — Digamos que sou nova nisso.
—É mesmo?Acredito que esteja se divertindo então.
—Na maior parte do tempo!
—Alícia...
Por incrível que pareça só precisei adverti-la uma vez.
—Entendo que isso possa ser novo para você — a voz de Gilbert era suave — Mas acredito que esse não é o seu caso, estou certo? — seu olhar agora se direcionava a mim.
—Exatamente — fui sincero — Já vi e ouvi muitas coisas com o tempo que passei nesse tipo de vida.
—Foi o que imaginei — ele fez uma pausa — A muito tempo essa cidade foi considerada uma importante rota de turismo, muitos vinham para cá atraídos pelas cores das árvores da floresta e é claro, pela própria cidade.
—Consigo entender o motivo, existem muitas coisas de diferentes para se ver no mundo mas esse lugar tem a sua peculiaridade própria.
—Emenda atraía centenas de pessoas por dia, e a maioria delas curiosas com nossas construções e com os próprios habitantes.
—Dá para se perceber...
Ouvi Dexter falar baixinho mas creio que mais ninguém além de mim percebeu.
—Devia ter sido um lugar muito movimentado.
—E era — seu ar pesaroso cobriu o lugar — A alguns anos atrás.
—Anos? — estava surpreso — É mais tempo do que imaginei.
—Para você ver...
Pela fresta de baixo da porta conseguia ver a claridade do dia ir sumindo aos poucos.
—Mas afinal — insisti — O que aconteceu para esse lugar se tornar tão vazio?
Fez-se um breve silêncio.
—Não sei bem quando começou — sua voz se tornou mais baixa — Acho que ninguém sabe — os dois botões fitaram o chão por longos segundos antes de se voltarem para mim — Mas sabemos dos acontecimentos.
—Que acontecimentos?
Até meu Gouli parecia impaciente.
Gilbert respirou fundo.
—Um dia, quando eu e minha irmã acordamos havia um alvoroço na rua do comércio, no início achamos que seria uma confusão banal como várias outras mas — suas mãos foram até os fios de barbante azul escuro que formavam seu cabelo — A discussão era por algo sério, muito sério — ele parecia realmente desconfortável em falar sobre isso mas mesmo assim continuou — Um casal, cidadãos de emenda, acabou sumindo.
—Eles não poderiam ter se mudado?Ou simplesmente viajado? — perguntei.
—Pensamos nisso mas, todo o povo de Emenda se conhece, somos como uma enorme família e jamais tomamos decisões como essa sem ao menos avisar alguém, não é um costume nosso, nunca foi.
—Entendo — aquela conversa começava a se tornar interessante — Mas acredito que não tenha acontecido só isso.
—Não mesmo — o ouvi suspirar — Como não haviam respostas para o sumiço deles acreditamos que tivessem saído em viagem e prosseguimos com nossas vidas.
Um silvo de vento passou por debaixo da porta chegando até nós. De canto de olho pude ver os pelos do braço da humana se arrepiarem, só não sabia se era de frio ou medo.
—Mas então, depois daquele dia mais pessoas começaram a sumir, primeiro indivíduos sozinhos até que famílias inteiras desapareceram, estávamos assustados e sem respostas, no começo até pensamos que não seria nada até que...
—Até quê?
Mais uma vez ele respirou fundo.
—Até que encontramos restos de tecidos jogados próximo da floresta.
—Das roupas? — Alícia perguntou.
Gilbert por sua vez se limitou a balançar a cabeça negativamente.
—Meu Deus... — ela sussurrou baixinho como se tivesse se arrependido da pergunta que fez.
—Daí em diante passamos a ficar mais tempo dentro de casa, os visitantes deixaram de vir e o medo continuava a nós perturbar, até que a maioria não aguentou essa vida e acabou indo embora, os poucos que ficaram acabaram sumindo também, ficando apenas eu e minha irmã.
—Que horrível...
Um silêncio perturbador cobriu o lugar, eu podia ouvir a respiração irregular de Dexter e Alícia e quase os pensamentos do boneco à minha frente.
—Por que não foi embora como os outros? — perguntei.
—Essa é a nossa casa, nossa terra, nosso lar, construímos tudo aqui, desde comércios ricos a famílias!Não podíamos simplesmente abandonar tudo.
—Então preferiram arriscar a própria vida?
—Enquanto eu e minha irmã estivermos aqui Emenda ainda será Emenda mas, se formos embora, Emenda se tornaria apenas mais uma cidade abandonada e com o tempo apenas mais uma ruína perdida no meio de uma floresta, não é isso que queremos.
—É muito bonito da parte de vocês — Alícia tinha o olhar perdido.
—É realmente um gesto nobre mas ainda não entendo como vocês possam estar aqui se todos os outros sumiram.
—Tivemos sorte no início mas com o tempo descobrimos que, o que quer que esteja lá fora age durante a noite, por isso usamos tantas trancas e vigas de madeira.
—E vocês nunca viram nada?
—Não, mas conseguimos ouvir.
—Ouvir?Como assim?
Gilbert ia dizer mais alguma coisa quando a madeira das escadas começou a ranger, no mesmo instante Agatha surgia por ela, em sua mão havia uma pequena lamparina que banhava o cômodo em uma fraca luz azul.
—Já está quase na hora irmão...
—Entendo...
Os dois tinham o ar pesaroso.
—Hora do quê?
Gilbert olhou para o chão, esfregou as mãos no cabelo mais uma vez antes de nos encarar de uma forma assustadora.
—A Hora Morta...
Não sei se Dexter ou Alícia sentiram mas, ao longe, bem além das outras casas uma presença se tornava mais forte a cada segundo.
—Não podemos ficar acordados por mais tempo, é melhor todos se deitarem.
O boneco se levantou enquanto fazíamos o mesmo.
—Temos um quarto vago lá em cima, era da minha irmã mas, depois que os sons começaram decidimos ficar no mesmo quarto, vocês podem passar a noite lá.
—Você ainda não nos falou o que são esses sons.
—Vocês vão ver, ou melhor, ouvir.
—Só pedimos para que não façam barulho.
Sem dizer mais nada os dois sumiram em direção ao segundo andar, ia dar o primeiro passo para acompanhá-los quando senti a mão de Alícia segurar meu manto.
—Algum problema? — encarei seu olhar assustado.
Sua boca se abriu por breves segundos mas como se mudasse de ideia ela voltou a fechá-la.
—Não é nada...
Ainda a observei por algum tempo antes de começar a subir as escadas.
Mais a frente, já no segundo andar um pequeno corredor se estendia na penumbra, Gilbert e Agatha avançavam até o final onde duas portas se encontravam, uma de frente para a outra.
—Meu quarto é aqui — Gilbert apontou para a porta da esquerda — O da frente é da minha irmã onde vocês podem ficar.
Com um pouco de pressa ele abriu a porta da direita nos levando para dentro. Graças a fraca luz da lamparina pudemos ter uma noção de como eram as coisas ali dentro. O cômodo não era grande mas também não era pequeno, as paredes, o chão e o teto tinham tonalidade rosa, uma pequena poltrona se encontrava no canto bem ao fundo com uma cama de casal ao lado, um pouco próxima de uma janela tão trancada quanto a porta lá de baixo.
—Há algumas mantas no guarda roupa.
Agatha apontou para o móvel que estava atrás da porta.
—As noites não costumam ser frias mas podem usá-las se quiser.
—Somos gratos por isso.
Alícia já se encontrava próxima da cama quando os dois bonecos se viraram para sair.
—E por favor não se esqueçam — a mão de Gilbert ainda segurava a maçaneta — Não façam barulhos.
Sem dizer mais nada acenti fazendo com que os dois irmãos saíssem fechando a porta atrás de mim nos deixando sozinhos na penumbra da noite.
—Ei Amenadiel...
Ouvi a voz da humana.
—Sim.
—O que Gilbert quis dizer com "Hora morta"?
Avancei mais um pouco pelo cômodo ouvindo meus passos ecoarem na madeira.
—A hora morta é um horário onde não se escuta nada mais do que o silêncio, alguns associam com a hora dos espíritos e aparições mas é apenas um horário de puro silêncio.
Retirei meu manto o colocando sobre a pequena poltrona junto dos cantis, a bússola e minha espada.
—Entendi...
—Mas a hora morta normalmente acontece nas madrugadas — Dexter saltou do meu ombro para a cama — Por que será que aqueles dois a associaram com agora?Ainda é cedo?
—Provavelmente por conta do medo — encarei a janela e as vigas de madeira presas a ela — Do que quer que esteja lá fora.
—Parece que a noite vai ser longa — Alícia suspirou — Bom, eu fico com esse lado da cama, se alguma coisa saltar pela janela consigo correr mais rápido para a porta.
—Obrigado pela consideração...
—Eu estava brincando — a vi sorrir mas sem a alegria que era tão comum de se ver — Só acho que estou tão assustada quando Agatha e Gilbert.
—O medo do desconhecido é comum — passei por ela indo em direção ao guarda roupa — De qualquer forma pode ficar com a cama.
—Mas e você?
—Me acomodo tranquilamente no chão — abri as portas de madeira sentindo a poeira chegar ao meu nariz.
—Tem certeza?
Peguei as duas mantas que estavam ali voltando-me para eles.
—Absoluta.
—Eu posso dormir com a Alícia então mestre?
—Não — joguei a coberta maior no chão — Você cabe tranquilamente ali.
A contra gosto vi Dexter ir até a poltrona que eu apontava se ajeitando em meio ao manto que eu havia deixado lá.
—Aqui, fique com isso.
Alícia me estendia o único travesseiro da cama.
—Não precisa, fique você com ele.
—Já tem coisas macias de mais aqui, e eu não gosto de travesseiros, fazem meu pescoço doer, ainda mais esse que é alto.
Olhei para ela já em meio a escuridão, seu perfume doce tomando conta do lugar, me fazendo recordar de frutas, flores, rosas...
Antes que meu passado voltasse a me perturbar me acomodei nas mantas abaixo de mim.
—Recuso.
Fechei os olhos enquanto ouvia o silêncio se tornar cada vez mais presente mas, sem que eu esperasse, senti algo acertar minha cabeça em cheio.
—Já disse para ficar com ele!
Foi a última coisa que ouvi da humana antes que tudo voltasse a ficar em silêncio, como eu estava no chão não sabia dizer se ela havia pegado no sono ou apenas estava quieta, em todo caso, peguei o travesseiro que havia sido jogado e o acomodei de baixo da minha cabeça.
Francamente...
Um sorriso se formava no meu rosto.
Que mulher teimosa.
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