10
Amenadiel
...
O sol ia se pondo, o brilho alaranjado do crepúsculo agora não passava de uma escuridão fria.
—É bonito...
A humana parava a cada minuto erguendo a cabeça em direção as estrelas.
—Deveria olhar onde pisa — alertei — Se cair em algum buraco ou torcer o pé terá que se virar para conseguir me acompanhar — a encarei de soslaio — Pois não pretendo esperar por ninguém, entendeu?
—Sim, Senhor Leão.
—E pare de me chamar assim!
—Então é só me dizer o seu nome.
—Já disse que isso não importa.
—Tudo bem — seus olhos se voltaram para os meus com um brilho provocativo — Senhor Leão.
Ouvi Dexter rir baixinho antes de ser repreendido por um olhar severo.
—Sinto muito Mestre mas tenho que confessar, a humana é...audaciosa.
Audaciosa ou não ela tinha a péssima facilidade para me tirar do sério.
Ignorei os dois e continuei em frente.
Diferente de caminhar sobre as areias do deserto a temperatura naquela região não caía ou aumentava de maneira tão drástica, mesmo estando de noite e o frio se fizesse presente não era tão intenso ao ponto de congelar alguém.No caso, a humana.
Entretanto, seu corpo ainda tremia.
—Será que podemos parar um pouco? —podia ouvir seus dentes rangerem.
—Não.
Mesmo que eu continuasse com a atenção no caminho à minha frente Dexter fazia o papel de vigiar minhas costas, no caso, vigiar a humana.
—Ela parece com frio mestre...
—Isso não é uma novidade.
Continuei por mais alguns metros até que a voz entrecortada da garota voltasse a irromper no silencio.
—P.por favor...
Muitos anos atrás eu havia deixado de me importar com as pessoas, independente de quem fosse mas, ao me virar e encarar os olhos carregados de súplicas da humana senti algo se inflamar dentro de mim, algo que a muito imaginei ter perdido.
Compaixão.Sentir aquele sentimento renascer, mesmo que aos poucos, era assustador.
—O que pretende fazer mestre?
Olhei por mais alguns segundos a figura da espécie frágil e tagarela antes de me virar indo em direção a uma das ruínas que estava próxima dali.
—É melhor andar logo — disse apertando o passo — Antes que eu desista dessa idéia.
Sem ouvir mais nada se não o vento seguimos em direção a uma das várias construções caídas por ali, algumas estavam em um estado tão precário que achei melhor manter distância optando por uma pequena casa que ainda parecia firme e resistente.
—Essa deve servir — sussurrei enquanto empurrava uma pequena porta de madeira — Sente alguma coisa de estranho Dexter?
Seu focinho se ergueu farejando o ar por alguns segundos antes de negar com a cabeça.
—Apenas muita poeira senhor.
—Era de se imaginar...
Ainda com cautela entrei no cômodo banhado pela escuridão sentindo o forte cheiro de antiguidade e principalmente pó, no entanto, o chão parecia firme assim como as paredes e o teto.
Pelo menos não vai desabar em cima da gente.
Avancei mais um pouco pelo cômodo tomando cuidado para não esbarrar em nenhum dos móveis quando um barulho alto ecoou bem atrás de mim.
—Aí!
Mesmo no escuro conseguia ver a humana caída no chão.
—Me deixe adivinhar — me abaixei para ficar mais próximo a ela — Você tropeçou?
Vi seus olhos se arregalarem por alguns segundos antes de se estreitarem.
—Não, não — um falso sorriso enchia seus lábios — Caí de propósito.
O sarcasmo em sua voz era tão nítido ao ponto de me fazer achar graça. No entanto, conti o riso.
—Tenha mais cuidado, esse lugar está cheio de objetos grandes.
—Obrigada por avisar...
Seu corpo se levantou com dificuldades enquanto esticava ambas as mãos tateando o lugar porém, mesmo assim ela ainda conseguia a proeza de esbarrar em algumas coisas que estavam jogadas por ali.
—Mestre, será que eu posso ajudá-la?
Desde a minha conversa com Dexter sobre seu comportamento em relação a humana ele pareceu ter se tocado do que estava fazendo mas, ainda assim, podia sentir sua nítida preocupação com a garota.
—Vá!Acho que só assim para ela chegar inteira até o outro cômodo!
Sem demora senti quando suas garras se soltarem do meu manto indo em direção a fêmea desastrada.
—Venha Alícia, vou guiar você.
—Obrigada Dexter.
Assim que meu Gouli começou a dizer as direções que ela deveria tomar finalmente deixei de ouvir o barulho do seu corpo esbarrando nos objetos.
Seguimos adiante passando por vários outros cômodos, uma escada estava disposta em um deles levando a algum lugar no piso superior porém, como era de madeira imaginei que não aguentaria sequer o peso do meu Fhinger quem dirá o da humana e o meu, em todo caso, acabamos por nos acomodar em uma sala ampla onde uma grande janela se encontrava, a placa de vidro estava inteira deixando que apenas a claridade da lua entrasse e não os ventos frios da noite.
—Finalmente um pouco de luz!
A fêmea humana chegou junto de Dexter, ainda com as mãos esticadas na frente do corpo, quando percebeu que não corria mais o risco de trombar com algum objeto se sentou no meio da sala respirando fundo, podia ver algumas marcas vermelhas em seus cotovelos assim como no queixo, provavelmente causadas pela primeira queda.
—Algum problema?
Só então me dei conta de que estava a observando por tempo de mais.
—Não, nenhum.
Me sentei em um dos cantos do cômodo bem entre a parede com a janela e outra com um quadro estranho, tentei identificar alguma coisa na pintura mas só via tinta jogada de forma aleatória no painel.
—Fico me perguntando quem morava aqui — vi as mãos da humana pegarem o que parecia ser uma cadeira com uma perna e vários pés com rodinhas na base — é tudo tão...diferente.
Diferente não era uma palavra muito apropriada para se utilizar devido a diversidade de espécies e lugares estranhos desse mundo porém, as coisas por ali eram, de certa forma, bem diferentes.
—Olhe o que eu encontrei mestre! — Dexter apareceu segurando o que parecia ser um pedaço de vidro negro um pouco mais grosso que o normal totalmente trincando em um dos lados — Para que será que servia isso? — o vi apertar várias vezes um botão bem em baixo e no centro daquele objeto sem acontecer nada.
—Não fique mexendo nessas coisas, não sabemos o que são.
—Me parecem objetos quaisquer — a humana segurou o vidro negro que Dexter havia pegado — Olhe!Dá para ver alguém aqui!
—Sério?Cadê?
Agora eram os dois encarando o pedaço de vidro.
—É apenas um reflexo — disse quebrando o encanto — Ou vai me de dizer que não sabe o que é isso?
—Eu sei o que é um reflexo! — seus dedos ainda seguravam firme o objeto estranho — Eu só não imaginei que dava para ver o reflexo em outras coisas que não fossem os baldes d' água.
—Nunca viu um espelho antes?
—Espelho?O que é isso?
A encarei incrédulo.
—Nada...
—Mesmo assim, tudo aqui é... surpreendente.
O olhar da humana brilhava de admiração e curiosidade, Dexter parecia encantado com ela mas foi só eu estreitar um pouco os olhos para que ele se contesse.
—Vocês estão com fome?
Sem que esperassemos vi quando ela enfiou a mão em dos bolsos do manto branco retirando um pequeno embrulho.
—Eu trouxe alguns pães, não é muito mas acho que da para tod-
—Não.
A cortei fazendo com que o sorriso animado em seu rosto desaparecesse.
—Ah...entendi...
De repente todo o cômodo estava banhado em silêncio o que me fez pensar seriamente se deveria continuar agindo daquela maneira com ela.
E de que outra forma eu deveria agir?
Salvei a vida da humana mais de uma vez, não havia motivos para trata-la de maneira diferente já que graças a mim estava viva e longe dos ventos gelados da noite. De qualquer forma, a idéia ainda continuava martelando na minha cabeça.
—Então...se não estão com fome, que tal uma história?
Observei com atenção enquanto ela pegava um dos livros, mais especificamente o de capa verde.
O livro com a imagem do brasão.
Inconscientemente arrumei minha postura.
—Eu vi a forma que você ficou olhando para a imagem do leão — um sorriso leve voltou a surgir em seus lábios — Acho que posso te contar um pouco sobre as histórias que estão aqui como forma de agradecimento por ter salvo a minha vida.
Não disse nada mas meu olhar já falava por mim.
—Bom...como você parecia tão interessado no leão vou me especificar nessa parte.
A ouvi limpar a garganta e respirar fundo antes de começar.
—Em tempos remotos um reino dourado se erguia em meio as nuvens, bem nas alturas alcançando o sol e as estrelas, um lugar de paz e alegria sem contar é claro, as inúmeras belezas tanto de suas construções quanto dos próprios habitantes de lá — ela fez uma pausa — Sem guerras e sem conflitos apenas com a harmonia reinando junto aos que lá viviam, um lugar que a muito, muito tempo foi conhecido como Gryfield...
Sem que eu quisesse uma sensação dolorosa começava a invadir meu peito junto das imagem de ruas, casas, praças e comércios, sem contar um magnífico pôr do sol e nascer do sol que pareciam se fundir em um só apenas visível da mais alta torre do mais alto palácio.
—Conta-se que esse místico reino só possa ser alcançado pelos próprios habitantes, encontrando-se perdido nos céus em algum lugar sobre nossas cabeças.
Mais lembranças vieram e dessa vez, nenhuma delas era agradável.
—Conta-se ainda que, para que não ajam descrença ou desconfiançasl sobre a existência de Gryfield, brasões com o símbolo daqueles que lá vivem ainda podem ser encontrados espalhados por alguns dos vários recantos desse mundo.
Quando terminou de narrar a humana voltou a virar o livro na minha direção mostrando o estandarte com o brasão dos meus ancestrais.
—Me parece ser um lugar incrível — o sorriso continuava em seu rosto — Pena que não passa de uma história.
—Não acredita que esse reino possa mesmo existir?
A sinceridade na minha pergunta me assustou.
—Acho que não — ela voltou a olhar o livro — Parece um lugar perfeito de mais.
Nem tanto...
Pensei enquanto tentava afastar a imagem do corpo da minha mãe banhado no próprio sangue.
—Independente disso, como alguém poderia relatar que esse lugar existe sendo que o próprio livro diz que apenas os habitantes de lá podem chegar a esse reino? — houve outra pausa — E aqui não fala nada de que o povo de Gryfield fazia visitas para as pessoas daqui de baixo.
Sim, fazíamos algumas visitas sim, raras, mas fazíamos...
E ironicamente hoje um dos membros desse povo se encontrava confinado ao reino inferior incapacitado de voltar. Inconscientemente pude sentir a cicatriz em minhas costas doer assim como a do meu olho esquerdo.
—Está tudo bem Homem Leão?
O olhar da humana era preocupado.
Mas por quê?
—Sim — minha voz saiu mais ríspida do que eu esperava — Só fiquei imaginado como seria esse reino caso realmente existisse.
Em tempos longínquos provavelmente tenha sido um reino de paz e harmonia porém, hoje não passava de um lugar mergulhado no próprio caos.
—Hmn...
Enquanto deixava minhas memórias flutuarem em um lugar distante não percebi quando a humana rasgou um pedaço do pão estendendo-o na minha direção.
—Já disse que eu nã-
—Eu sei — ela me cortou — Mas eu realmente gostaria que você aceitasse, como agradecimento.
—Pensei que a história que acabou de contar já fosse seu agradecimento.
—Por ter me salvado sim — ela continuava com a mão estendida — Isso é por ter sido sincero comigo.
A olhei sem entender ao certo sobre o que estava falando.
—Em relação aos meus pais e — sua voz era baixa — Como eu sei que meu jeito te irrita também quero lhe oferecer isso como um sinal de paz.
A humana frágil, ingênua e desatenta de antes pareceu sumir diante daquela postura firme, tanto que fiquei surpreso com sua atitude e principalmente com as palavras que, mais uma vez, traziam a mais pura sinceridade. Sem muito o que dizer ou pensar aceitei o pedaço de pão.
—Obrigada Homem Leão — um sorriso maior ainda surgiu em seu rosto.
—Amenadiel.
Deixei meu olhar se perder na paisagem do céu estrelado além do vidro.
—Meu nome é Amenadiel.
Sem dizer mais nada levei o pedaço de pão até a boca, não era macio muito menos saboroso, no entanto, aquilo pareceu ser a melhor refeição que comi em anos, talvez o motivo seja por que foi algo dado por alguém em um gesto de sinceridade.
Além de um grande sorriso alegre no rosto...
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