Capitulo 49. Rapto
"Não chore, Misericórdia
Ainda há muita dor por vir.
Mercy - Hurts
Mabel estava movimentando o cursor do notebook do meu lado enquanto eu estava trêmula demais para fazer aquilo. Ela tão aflita e calada como eu, continuava abrindo documentos.
A maioria daquelas pessoas nos documentos, foram apresentadas sendo como sucesso. Prestando mais atenção, vi que no final de cada ficha de identificação, havia um adendo escrito: "Objeto identificado no meio dos destroços. Objeto não resistiu. Morto."
Eu tampei a boca quando vi as fotos de corpos adultos e infantis soterrados no meio de objetos pesados, as peles escuras queimadas por fogo. Uma menina de cabelos brancos e trançados com lacinhos nas pontas estava com a cabeça conservada em um pote de vidro com uma nota pequenina ao seu lado: "Objeto encaminhado para o território Albastruz. Mustafá Al-Faheen não deixou herdeiros em seu território para conduzir sua parte da pesquisa. Objeto será encaminhado para seus quatro irmãos que assumiram seu lugar por enquanto."
Eu pisquei quando outra pasta se abriu. As fotos gradativamente mostravam pessoas que já ultrapassaram a imagem do que era humano. Aquelas coisas não eram... pessoas, eram monstros enormes com bocarras e dentes de sabre. Haviam alguns com muitos olhos e outros com nada no rosto a não ser uma grande cavidade para respirar e a enorme bocarra de dentes afiados.
Mabel passou o cursor para outra pasta, e lá havia apenas três documentos. O primeiro tinha a foto de Lilian com cabelos brancos e cacheados, um sorriso satisfeito e brilhante iluminava a foto e fazia com que aquilo parecesse menos pior:
"Projeto Armagedom, Fundação do Novo Alvorecer pelas casas Diavol e Aureum. Experimento de cobaias de Lírios Brancos; Número de clonagem do objeto: 240°
Situação: Sucesso
Nome dado ao objeto: Lilian
Conclusão: Encaminhado para inseminação
Sexo: Clone Feminino
Objeto dócil com os membros da fundação. Apresenta habilidades cognitivas avançadas, além de surpreendentemente ter desenvolvido manipulação de parte do próprio DNA, podendo mudar partes do seu corpo ou as cores de seus olhos.
Objeto dividiu placenta com clone número 241° nomeado de Amélia. Ambas apresentam uma boa relação.
Objeto apresenta características cada vez mais parecidas com as nossas. Objeto adquiriu a capacidade de emitir feromônios idênticos aos emitidos por Esmerados saudáveis. Objeto possui sua extensão do próprio sistema nervoso, mas diferentemente dos demais, a extensão do Objeto é invisível a olho nu, podendo ser vista apenas sob a luz negra como ondas energéticas sensoriais de seus neurônios. Considera-se sucesso completo.
Obs: Objeto representa um grande avanço. Objeto continuará sendo pesquisado.
Obs: Objeto desenvolveu capacidade de manipular organismo cerebral alheio e remodelar seu DNA.
Obs atual: Objeto morto."
Semicerrei os olhos quando outro documento ligado ao de Lilian apareceu. Do lado esquerdo superior da folha estava minha foto, meu rosto assustado demais pela luz do flash. Meu cabelo cacheado havia sido colocado para trás em um rabo de cavalo.
A descrição sobre mim estava logo abaixo:
"Projeto Armagedom, Fundação do Novo Alvorecer pelas casas Diavol e Aureum. Experimento de cobaias de Lírios Brancos; Número de clonagem do objeto: 241°
Situação: [Falho] Sucesso
Nome dado ao objeto: Amélia
Conclusão: [Encaminhado para ser dissolvido] Encaminhado para inseminação
Sexo: Clone Feminino
Objeto apresenta características humanas sobrepostas às características Esmeradas. Dividiu a placenta de um útero humano inseminado com Objeto 240° nomeado de Lilian, e assim o objeto falho absorveu poucas partes Esmeradas do Objeto 240°.
Objeto falho possui bronquite asmática crônica, gastrite, miocardite, miopia, astigmatismo. Objeto teve dificuldades para se manter vivo depois do nascimento, o objeto nasceu frágil demais.
Objeto será monitorado durante seu crescimento. A existência da extensão de seu sistema nervoso é nula, não apresenta as habilidades dos outros clones.
Objeto monitorado de longe pelos médicos da fundação infiltrados na Pangéia humana. Objeto é rastreado atualmente pela fundação.
Adendo: Depois da puberdade, Objeto apresentou feromônios e resistência às habilidades alheias, únicas mudanças não humanas registradas. Objeto é fértil.
Objeto apresenta hiperatividade, apresenta habilidades cognitivas avançadas demais para o cérebro humano. Objeto possui transtorno de déficit de atenção, necessita de medicamentos.
Objeto continuará sendo monitorado."
Eu senti frio e calor ao mesmo tempo quando vi a ficha de Amanda subir em outro documento, mas era breve demais, algo como: "Objeto não se adaptou aos genes Esmerados. Objeto completamente humano, porém com habilidades cognitivas avançadas demais. Objeto sendo monitorado."
Logo abaixo havia fotos minhas de quando era criança, fotos de mim com o cabelo trançado e vestido branco enquanto coloria um desenho com giz de cera sobre uma mesa. Meus braços estavam ligados a aparelhos que registravam todas as mudanças de meu organismo em máquinas. Haviam também fotos minhas de pé com os braços abertos enquanto alguém media meus membros com uma fita métrica.
Depois apareceram fotos e um vídeo de Lilian em sua própria sala de concreto, também com fios ligados à sua pele que monitoravam seu corpo inteiro.
Quando o vídeo começou, haviam algumas pessoas de jaleco na frente da sala de Lilian anotando coisas em tablets enquanto a observavam com atenção. Por outra porta lateral, uma pessoa foi empurrada para dentro da cela dela.
Lilian olhou para os pesquisadores quando a pessoa entrou. O homem de vestes que pareciam do campo estava desesperado com alguns curativos nos braços, como se tivesse tomado algum tipo de vacina. Quando viu Lilian, ele fez o sinal da cruz, observou os seus lados, bateu na porta fechada da qual havia sido empurrado enquanto chorava e falava em algo que parecia japonês.
Minha irmã cujos cabelos brancos e cacheados estavam amarrados em um coque acima da cabeça, observou os homens fora da cela e disse algo enquanto o homem baixinho dentro da cela dela começava a se arrastar pelas paredes. O cientista de jaleco lhe apontou um dedo enquanto uma discussão se seguiu, para no final ele apontar o próprio indicador para a parede de Lilian cujo outro lado eu estava.
Lilian parou de falar. O vídeo cortou para o momento onde Lilian se virou para o homem de rosto molhado por lágrimas, tudo ficou escuro pela luz negra, e era possível ver tentáculos finos como fios de cabelo, vários deles iluminados na escuridão em faíscas de eletricidade saindo das costas de Lilian, de cada vértebra de sua coluna.
Os tentáculos de Muriel eram físicos como os de um polvo, eram medonhos. Os de Lilian eram como luzes coloridas em uma festa.
Que merda era aquela?
O vídeo falhou, a última coisa que eu consegui ver antes de tudo se perder, foram os olhos de Lilian brilhando para a câmera no canto de sua cela.
Uma voz robótica feminina soou enquanto fechava os documentos que eu havia aberto:
"Aparelho não identificado. Qualquer indivíduo que acessar os arquivos aqui presentes, será localizado e detido imediatamente. Localizando dispositivos e reportando aos demais. Autodestruição do pendrive ativa em dez segundos."
Eu me afastei do notebook junto com Mabel esperando uma explosão, mas depois de dez segundos, houve apenas uma fumaça amarela saindo do aparelho, e o notebook que comprei com o dinheiro de Aiden desligou para nunca mais voltar.
Eu nem percebi que estava agarrada aos braços de Mabel. Ela me olhou assustada enquanto segurava meus braços.
— Senhora…?
Eu estava olhando para o computador, e do computador para a porta.
Me levantei correndo pegando o pendrive estragado do computador, vestindo roupas decentes e calçando qualquer sapato que estivesse fácil de se pegar perdido debaixo da minha cama. Eu estava parecendo um palhaço com roupas tão coloridas e desajeitadas, mas ainda assim era melhor do que aquela camisola rendada.
Eu estava agindo tão rápido que não percebi Mabel chamando ou o interfone tocando. Sentia como se eu pudesse cair no chão convulsionando de desespero e pavor. Queria gritar até não poder mais, queria quebrar tudo que estivesse ao meu alcance.
Um clone… A porra de um clone? Não, não podia ser real! Era um pesadelo, uma pegadinha de mau gosto.
Eu esqueci de colocar um casaco. Mabel estava andando atrás de mim quando olhei discretamente pelas janelas.
— Senhora, me explique o que está tentando fazer. — Ela murmurou ao meu lado. — Onde a senhora estava? Por que está toda machucada desse jeito? Ninguém quis me informar nada-
Eu olhei para Mabel e ela finalmente se calou. Ela estava tão nervosa quanto eu, era como se tivéssemos visto o apocalipse acontecendo ao vivo. Pensei em perguntar se ela sabia sobre aquilo, mas Mabel estava branca como papel enquanto me olhava, analisando meu corpo de centímetro a centímetro como se eu fosse um bicho novo e colorido que ela achou em uma folha.
Eu desviei meus olhos de Mabel e me arrastei para o lado onde ficava a janela para o jardim. O interfone começou a tocar me fazendo ter uma pontada de pânico no coração.
Eu queria explodir, mas não podia naquele momento, não me daria ao luxo de ter crises existenciais quando eu tinha que focar em sair dos olhares de todos que estavam me vigiando frequentemente assim como Caius havia dito. Eu sentia como se houvesse olhos pelos vidros das janelas, pelas trancas das portas e pelo ralo da pia.
Eu massageei as têmporas e respirei fundo. Não podia parar para pensar que eu não era uma… pessoa de verdade, que eu não estava fazendo tudo aquilo por vontade própria, mas sim sendo conduzida por criaturas que eu nem sabia que existiam ou sequer o que eram de verdade.
Umedeci os lábios e esfreguei o couro cabeludo colocando minha bombinha no bolso da calça e andando até a janela. Engoli em seco sentindo calafrios nas panturrilhas pelo que estava prestes a fazer. Eu deveria sumir, e dessa vez não queria que Aiden me encontrasse.
— Para onde a senhora vai? — Perguntou Mabel com desgosto olhando da janela para mim. — Tem certeza de que deseja fazer isso?
— Você tem outra ideia? — Perguntei abrindo o vidro e passando a perna pela janela, esperando que os seguranças não estivessem me vendo pelas câmeras, mas pela situação atual, não duvidava que Aiden tivesse trocado os vigilantes por seus próprios homens. — O que você faria no meu lugar?
Mabel ficou calada enquanto me olhava semicerrando os olhos tentando me decifrar como se eu fosse uma língua nova que ela não entendia. Ela rangeu os dentes com certa hesitação. Ambas estávamos perdidas e confusas.
Mabel apertou os lábios como se estivesse juntando as próprias peças em sua mente enquanto eu passava pelo peitoril da janela esperando que a câmera não se virasse para mim justamente quando eu estava pendurada de um lado para o outro. Olhei para Mabel pelo canto dos olhos quando firmei meus pés no chão, a figura alta encolhida na escuridão que estava o apartamento, hesitando até mesmo em respirar.
Olhei para frente amaldiçoando por não estar levando um casaco com capuz por causa do chuvisco e do frio, mas não voltaria para pegar. Me misturei nas sombras evitando as câmeras, os vigilantes que estavam fazendo ronda no condomínio e as luzes da praça.
Pela forma como o interfone tocava ao longe, eu já esperava que alguém viesse atrás do meu apartamento.
Mordi a bochecha me virando e andando mais rápido, imaginando que eu não sabia para onde estava indo, mas no fundo eu já tinha certeza.
Alguém segurou meu colarinho da blusa e me arrastou para trás da parede antes que a câmera virasse em minha direção acima do poste de luz. Eu me assustei ao ver Mabel ali.
— De nada.
— Mabel? — Falei irritada olhando para os lados, esperando que ninguém visse aquela mulher enorme de braços fortes e cabelo loiro tão sedoso que brilhava sozinho. — Não é pra você vir. Você deve ficar!
— O que? — Ela abriu a boca ofegante. — Nós duas estamos juntas nisso. Eris também me fez de refém, então por que está me descartando assim?
Eu andei até a praça depois de contar quantas câmeras tinham naquele lugar. Me misturei nas sombras das árvores enquanto tentava bolar um plano para sair dali sem Mabel em meu encalço.
— Você ao menos sabe para onde está indo? — Perguntou colocando uma mão em meu ombro e me fazendo olhar em seu rosto perturbado. — Você... a senhora está pensando no que está fazendo?
— Não, eu não estou pensando. Ultimamente eu não tenho tido como fazer isso! — Falei entredentes me virando para o outro lado, mas Mabel se colocou em minha frente de novo.
— Então vamos pensar juntas agora. — Mabel estava segurando meus ombros. Ela rangeu os dentes me olhando de forma acusatória. — É sério que você não confia em mim nem um pouco? Acha que eu sou sua inimiga?
Levantei uma sobrancelha empurrando sua mão do meu ombro.
— Você é o tipo de pessoa que só se importa com os próprios interesses, Mabel. Não estou te julgando, é a forma como você sabe viver. — Suspirei. — Por isso você não é minha inimiga, mas definitivamente também não é minha amiga.
— Não me conhece o suficiente para afirmar isso. — O sotaque dela se enrolou no céu da boca enquanto rangia os dentes. A chuva estava fazendo o cabelo dela colar ao rosto.
— Tudo bem, então por que desde o começo você simplesmente não chegou em Pietro e disse que Eris a estava chantageando? — Sussurrei segurando o tronco rugoso de uma árvore enquanto alternava olhar para Mabel e para a portaria que eu jamais conseguiria passar. — Por que você não pediu discretamente proteção para o seu irmão, ou que te dessem… sei lá, um asilo. — Inclinei a cabeça para o lado. — Com certeza não é porque você estava preocupada comigo e com a saga do pendrive.
Mabel trancou o maxilar marcado se virando para as paredes que cercavam o condomínio luxuoso que eu tinha aproveitado tão pouco.
— Quando eu fui envenenada, Eris me visitou pessoalmente. Ele tirou as toxinas do meu corpo, e enquanto isso colocou a porra de um mini explosivo dentro de mim que grudou na minha parede estomacal. — Ela fez uma careta de raiva mostrando os dentes enquanto falava. Suas mãos começaram a tremer junto com as correntinhas que se ligavam aos braceletes. — Ele disse que estaria me monitorando, e se identificasse algo estranho vindo de mim ou de Carlos, nos mataria em questão de segundos.
Me lembrei do estado horrível em que Mabel se encontrava quando me implorou de joelhos na neve para pedir que eu a levasse comigo. Olhei para seu abdome.
— E por que diabos você não me contou isso antes? — Aquilo não podia ficar pior.
— Você não iria querer ficar grudada à uma bomba relógio, ia? — Ela semicerrou os olhos. — Não pode me culpar por eu escolher a minha vida.
— Mabel, eu não estou te culpando por isso, não estou te culpando por nada, mas entenda bem o que eu quero dizer. — Falei colocando um dedo trêmulo sobre o estômago de Mabel. — Se Pietro disser que vai abrir você e tirar o que Eris colocou aí dentro, que vai te aceitar de volta e te levar pra Arcádia se você me entregar como um leitão com uma maçã na boca. Se qualquer um oferecer isso a você. O que vai escolher?
Mabel ficou calada. Me lembrava dos olhos dela brilhantes enquanto falava da ilha de Arcádia e o que poderia esperá-la ali naquele lugar supostamente mágico.
Eu deveria aprender uma coisa nova naquele dia: Esmerados, sejam o que forem, não existia amizade quando se tratava deles, nem mesmo lealdade. Mabel não era leal nem aos Diavols, o que ela não seria capaz de fazer comigo?
— Entendeu agora? — Perguntei cansada, meus dedos enfaixados estavam doendo como o inferno.
Eu me virei caminhando para onde haviam mais sombras perto dos muros. Queria que Mabel parasse de me seguir.
— Espera aí. — Mabel veio atrás de mim abrindo a boca prestes a falar algo, mas o chão gradeado se abriu em um buraco e meu pé ficou sem onde pisar, fazendo com que eu e Mabel caíssemos no escuro do esgoto. Eu só não caí naquele chão úmido nojento e quebrei a perna, porque alguém me pegou no colo com braços fortes.
Por que havia algo alto como aquilo ali?
— Você pode abrir os olhos agora. — Era uma voz conhecida. O homem de cabelos longos estava me olhando com as sobrancelhas altas, lembrei dele como Abner, o homem que Eris estava tentando me convencer a passar a noite para me divertir. — Você tem mesmo um cheiro tão bom.
Ele me colocou no chão, sem esquecer de antes dar uma fungada longa e estranha na minha juba rebelde e sem definição nenhuma.
Eu fiquei sem entender por um momento quando uma lanterna foi colocada no meu rosto, e a tampa pela qual eu havia caído, foi colocada no local com tanta pressa que eu mesma duvidei que ela uma hora tivesse sido aberta. O homem de óculos protetores engraçados que estava ali em cima soldando o objeto de ferro com dois pequenos equipamentos, estava ajoelhado sobre o teto como se a gravidade não existisse, nem suas roupas estavam caindo.
Semicerrei os olhos para ter certeza de que eu não estava ficando louca, mas desisti depois que ele se levantou e andou dois passos pelo teto. Ele colocou os óculos protetores sobre a cabeça de cabelos espetados, apertou o botão de algo em seu bolso e então a gravidade teve efeito sobre ele, fazendo com que perdesse a firmeza dos pés no teto, rolasse no ar e caísse agachado no chão de verdade.
— Meus Deuses, você é muito burro! — Sussurrou uma voz feminina. A mulher veio apertando o espaço entre as sobrancelhas para reclamar com o homem que havia fechado a tampa do local, fazendo com que as lanternas de cada um deles fossem as únicas luzes. — Era só pra ter trazido a menina de cabelo cacheado, não uma Diavol com ela!
Todos olharam para Mabel de pé atrás de nós.
— Mas o que eu podia fazer, Eden? — Perguntou ele sussurrando. Tinha tatuagens de engrenagens pelo rosto e braços. — A mulher estava atrás dela, e não teria momento melhor pra pegar a menina. Tem soldados Diavol por toda Nebulosa, logo estariam atrás dela.
Eden fez cara feia quando virou para olhar Mabel que já estava correndo para longe no escuro. O homem com engrenagens tatuadas na pele foi até ela e a alcançou sem dificuldade.
— Então alguém tira as coleiras dela e a algeme. Coloca uma mordaça também. — Eden balançou os cabelos lisos e curtos mostrando um sorriso apaixonado. — Eris me nomeou para comandar essa missão pessoalmente. Ele espera muito de mim.
— Senhor Eris. Ele é nosso Mestre, não seu amigo. —Reclamou Abner.
— Ele estava flertando comigo semana passada. — Ela falou depois de um suspiro.
— Ele flerta até com o vento. — Sussurrou o homem com tatuagens no rosto enquanto segurava Mabel com certa dificuldade, puxando a gargantilha e pulseiras dela, as estourando sob as botas pretas. — Deveria ligar o bloqueador. Não sabemos que tipo de rastreador elas podem estar transportando.
Eles começaram a rodear Mabel. Ela estava tentando lutar e perguntar o que diabos estava acontecendo, mas então foi amordaçada e pressionada no chão úmido por Eden com muita facilidade apesar da diferença de altura. Mabel foi amarrada enquanto tentava gritar.
Eu me senti mal, mas não interferi.
— Para onde você estava indo sendo tão furtiva? — Perguntou Abner segurando minha mão e entrelaçando nossos dedos como se fossemos íntimos, mas ele só estava fazendo aquilo caso eu tentasse correr. — Você já sabe da verdade, não é? Está lidando com isso melhor do que nosso Mestre imaginou.
— O que ele quer comigo? — Sussurrei puxando minhas mãos e olhando para os lados. Não havia para onde correr, estava tudo escuro e o barulho de água escorrendo confundia meus sentidos. — Pra onde vocês querem me levar?
Eden me olhou de cima a baixo, jogou o cabelo preto para trás e estalou os dedos. O homem com engrenagens tatuadas no rosto levantou Mabel pelos ombros com uma extrema delicadeza.
— Vamos para a Casa do Bacanal como um atalho, depois vamos pegar o metrô e conversar sobre isso quando chegarmos. — Eden lambeu os lábios. — Vamos sair daqui logo. Já tô sentindo cheiro deles.
— Eu quero saber para onde eu estou sendo levada. Destino final. — Me irritei.
Eden me olhou como se eu fosse um inseto irritante.
— Olha só, nós estávamos planejando entrar no apartamento de alguma forma, mas por sorte você já estava fora de casa. — Eden cruzou os braços. — Você estava fugindo, não estava? Para onde você iria? — Ela suspirou. — De qualquer forma, nós estamos te dando uma chance de ter asilo político junto da sua família. Você tem sorte que o senhor Eris a queira tanto.
Eu engoli em seco e não respondi quando ouvi passos começando a soar no ambiente acima de nós, Abner me puxou para andar.
Eu estava presa entre o fogo e a lâmina da mais afiada espada. Era como ter que escolher o método menos doloroso de morrer.
●
Lá embaixo estava tão fétido e abafado que respirar pelo nariz era uma morte, respirar pela boca era outra muito pior. Levantei o tecido da blusa até o nariz para filtrar aquele ar nojento.
Eu me lembrei de Eris dizendo que queria algo de mim. De acordo com aqueles documentos, os Diavol queriam que eu desse filhos a Aiden para continuar a espécie deles assim como todo Lírio deveria fazer. Era possível que Eris quisesse a mesma coisa?
Meu estômago revirou.
— Sabe garota, meu Senhor Eris está colocando muito em jogo por sua causa. Se ele acredita que você serve para alguma coisa, eu também acredito. — Ela andava com as botas pretas sem fazer nenhum barulho, os brincos em forma de estrelas pendurados em suas orelhas estavam sacudindo a cada passo. Todos eles andavam de forma muito leve. — Vamos responder suas perguntas quando chegarmos ao menos no metrô. Ninguém aqui vai te matar ou coisa parecida.
Era como dizer: "Quando acabarmos de sequestrar você, pode gritar e perguntar à vontade o que quiser porque ninguém vai vir te ajudar."
Eles provavelmente também não sabiam o que Eris desejava de mim, e isso me deixava mais assustada ainda. Ele havia me dito que a espécie deles estava acabando, que a maioria dos homens e mulheres Esmeradas estavam se tornando estéreis sem uma explicação certa, e assim, pelo que eu entendi vendo aqueles documentos, um projeto havia sido iniciado para fazer mulheres que pudessem gerar crianças Esmeradas.
Eu formei uma ruga entre as sobrancelhas. Havia alguma coisa faltando no meu raciocínio, alguma coisa estava incompleta, mas mesmo assim eu estava apavorada. Os Albastruz e Diavol estavam em uma guerra fria pela última possibilidade de fazer com que a espécie deles não se extinguisse e qual família levaria o prêmio por ser responsável por isso. Sim, estavam me disputando como um último pedaço de comida.
Eles estavam disputando para ver quem me deixava grávida primeiro. Isso me fez sentir nojo e pânico extremos, me fez tremer e a visão ficar turva.
Meus pais podiam ter mentido para mim? Eris disse que eles não sabiam de nada, mas até quando ele estaria falando a verdade?
Aiden esse tempo todo havia mentido, mesmo que estivesse me tratando com tanto cavalheirismo, fazendo tudo e se jogando em poças de lama para que eu pudesse sobre suas costas para que meus pés não se sujassem em lama. Ele agia com tamanho sofrimento e dor quando eu mencionava me afastar, ele agia assim porque me perder significava perder a chance de salvar sua espécie.
"Você pertence a Aiden desde antes de nascer." Disse Eris.
Mas que patética eu deveria ter parecido sob os olhares de todos. Eu, o que diabos eu era? Eu poderia ser considerada como uma pessoa?
Mas que patética eu era.
Eu comecei a rir tampando a boca, meus olhos estavam cheios de água enquanto a gargalhada aumentava e todos paravam de andar para olhar para mim, para olhar o pedaço de carne que eles estavam levando para ser colocado sobre um prato de ouro pronto para quem sobrevivesse ao duelo degustar.
Era inevitável engolir o que eu estava sentindo naquela hora, o que aquela descoberta abriu em mim. A sensação do meu peito aberto e meu coração arrancado era dolorosa e ardia o suficiente para me fazer fechar as mãos em punhos e cobrir o rosto molhado com as duas mãos.
— O que vocês são? — Perguntei ofegante em um fio de voz tentando enxergar no meio da escuridão para onde as lanternas apontavam. Eu estava sorrindo, mas não havia graça nenhuma, estava muito nervosa. — Com que… diabos eu estou lidando?
Quando limpei os olhos, percebi que havia um elevador de portas rosa neon lá embaixo em uma das paredes úmidas. Eden apertou o botão para subirmos.
— Bem, é uma pergunta com muitas respostas. — O homem de engrenagens no rosto começou. — Quer dizer, depende de como vocês nos chamam.
— Os humanos nos deram muitos nomes ao passar dos anos, vocês se encantam muito fácil com as coisas. Até nos colocaram em livros e filmes, nos adoravam como deuses e tudo mais. — Eden revirou os olhos. O elevador abriu e eu hesitei, mas no final acabei entrando junto com o resto antes que eu fosse puxada. — As minhas preferidas são as suas chamadas teorias da conspiração.
Enquanto Eden fazia aspas com os dedos de unhas longas, o elevador subiu em uma velocidade tão absurda que Eden parou de falar e eu me agarrei nas barras de ferro. Aparentemente só eu e Mabel estávamos prestes a ter um infarto, todos estavam agindo como se aquela fosse uma rotina normal de suas vidas, olhando no espelho atrás de nós e arrumando os cabelos.
Quando o elevador enfim parou e a porta abriu, minhas tripas estavam brigando entre si para ver quem saía primeiro pela minha boca.
— Enfim, alguns de vocês também inventam baboseiras enormes. Deixe que nosso senhor te explique isso, ele explica as coisas muito bem, eu poderia ficar horas ouvindo Eris falar. — Murmurou Eden.
— Senhor Eris. — Repreendeu Abner revirando os olhos. — Espero que um dia ele te escute dizer isso e te repreenda.
— Enfim, nós vamos vê-lo daqui a pouco. — Murmurou Eden. — Ele está na Groenlândia, temos que ir até lá o mais rápido possível. Temos que sair deste continente antes que os Diavol nos alcancem, eles não têm respeito por nada, nem por nosso ambiente neutro.
Abner colocou uma mão em meu ombro e acariciou minha pele arrepiada.
— Vocês querem me levar pra Groenlândia? — Perguntei segurando o estômago. — Eu não posso simplesmente sair daqui, minha amiga tá inconsciente na mansão de Aiden, ela não tem mais ninguém. Eu não posso-
— Você tem noção de que Eris está cometendo um crime de guerra? — Perguntou Eden irritada, seu sotaque ficou mais forte enrolando a língua. — Senhor Eris está tentando roubar uma propriedade dos Diavol. Ele pretende responder a esse crime sob o Tridente de Poseidon no futuro.
— Mas-
— Deveríamos só… contar a ela o que os Diavol fizeram. — Falou o homem com engrenagens no rosto piscando os olhos pretos. — Ela viria com a gente de boa vontade.
— Não vamos perder tempo com isso agora, ela é humana, demora para processar informações. Você não entende que esse território não é nosso? — Reclamou Eden me pegando pela mão e me tomando de Abmer como se não estivesse reclamando de mim instantes atrás. Ela não pareceu se importar com o suor nos meus dedos. — Temos que ir para a fronteira, temos que pegar o metrô!
Começou a reclamar que deveríamos ser rápidos enquanto entrávamos naquele ambiente calmo e bonito que eu me lembrava de ter conversado com Eris, que eu me lembrava dele ter dito que minha família estava em sua posse.
Nós nos encaminhávamos quase correndo para outro elevador, tropeçando entre aqueles que comiam peixe na praia, outros que conversavam animadamente deitados sobre a grama verde em um bosque iluminado.
Em alguns minutos estávamos do outro lado daquela praia gigantesca que Eris havia me dado um ultimato, eu ainda podia vê-lo soltando fumaça azul no ambiente.
Por um momento eu me lembrei de Carmem indefesa naquela enorme cama.
— Eu não posso sair daqui sem Carmem. — Murmurei puxando minha mão da de Eden. Ela sem se importar, apertou o botão do elevador pedindo para descer mais.
— Nós vamos te arrastar. Simples. — Respondeu Eden simplesmente. — Você quer ir andando ou ser carregada por Mariano?
O homem com engrenagens no rosto crispou os lábios e olhou para longe de nós, sinalizando que não queria fazer aquilo.
— Nós vamos embora agora. — Disse Eden. — Se os Diavol souberem que estamos aqui, no caso acho que já sabem, nós todos seremos mortos e nossas mortes serão justificadas no tribunal do Tridente de Poseidon porque não deveríamos estar aqui.
Eu não tive tempo para pensar em nada, nem em que eu estava sendo levada para um lugar estranho por pessoas estranhas, ou que minha família não estava mais em casa e sim sendo mantida como refém em outro lugar, nem que eu estava agindo como uma pateta do lado de Aiden e depois sendo sequestrada por pessoas em um esgoto. O homem tatuado me pegou pela cintura e me fez entrar no elevador junto com o resto enquanto murmurava pedidos de desculpas por estar me obrigando.
As portas foram fechadas e para minha completa surpresa, o elevador não foi para cima e nem para baixo, mas para trás em uma velocidade absurda. Gritei em plenos pulmões enquanto ele parou e depois começou a subir tão rápido quanto antes.
Eu estava tonta quando a porta abriu novamente em outro lugar. Mariano me segurava pela cintura e braços ainda murmurando pedidos de desculpas ao tempo em que tirava algo do bolso.
— Mastigue isso, vai melhorar o seu enjoo. — Eu bati em sua mão com raiva e o que parecia ser chiclete caiu no chão.
Pisquei os olhos e pelo pouco que eu enxergava, estávamos no metrô. Em uma parte estranha dele.
As paredes eram rosa neon e lilases, tudo brilhava ao redor com azulejos que pareciam brilhar mesmo quando as lâmpadas não alcançavam os lugares escuros. Tive que piscar os olhos várias vezes enquanto Mariano me amparava a andar naquele lugar ainda com as pernas trêmulas pela viagem brusca.
Mariano me fez sentar em um banquinho preto de mármore enquanto dava tapinhas nas minhas costas com as mãos tatuadas. Eu estava prestes a vomitar meu próprio estômago no chão cheio de garrafas de vidro coloridos e vazios.
Eden olhou algo em um relógio de bolso azul metálico.
— Alguns segundos para sairmos. Quase chegamos atrasados. — Ela limpou um suor invisível do rosto. Meu maior sonho no momento foi jogar aquela mulher na linha do metrô.
Mabel se remexeu ao meu lado, Mariano colocava outra algema em seus pulsos porque Mabel aproveitou aquele instante que ele me ajudou, para deslocar o próprio polegar, libertar a mão direita e talvez tentar sair correndo.
— Onde estamos? — Ela perguntou antes de vomitar. Mariano não deu a mínima.
— Meio de transporte exclusivo para Esmerados saírem do continente direto para o litoral. — Eden inclinou a cabeça para o lado procurando palavras em sua mente. — Sem ninguém saber.
— Descreveu precisamente o que é a imigração clandestina. — Murmurou Mabel limpando a boca no ombro.
— Hm, Mariano, coloque a mordaça nela de volta. — Eden reclamou revirando os olhos. — Parece que eu sou a única pessoa que entendeu que nós estamos de fato cometendo um crime neste exato momento.
Nossos pés começaram a tremer sobre o chão, um barulho chiou em nossos ouvidos.
— Ah, aí vem ele. — O metrô parou bem em nossa frente abrindo as portas. Era prateado como aqueles que eu sempre peguei, nunca desconfiaria que aquele vagão transportava Esmerados que quisessem entrar em países e continentes que não os pertencesse.
Mariano me pegou pelos braços e me fez entrar junto com Mabel, nos jogando sobre os assentos pretos que ladeavam o vagão gelado.
Assim que entramos, o metrô partiu correndo com a mesma rapidez daquele elevador.
Eu só conseguia pensar em Carmem.
— Fiquem quietas. — Falou Eden entredentes e saiu colocando o indicador no ouvido respondendo algo como terem chegado mais cedo porque desconfiavam de algo estranho acontecendo.
Enquanto segurava nas barras de ferro para não cair no chão por causa daquela rapidez, olhei para Mabel sentada em minha frente do outro lado do vagão. Haviam retirado sua gargantilha e as pulseiras, ela estava com o casaco vermelho amarrotado assim como todas as suas roupas. Ela retribuiu meu olhar, engoliu em seco, encostou a cabeça no vidro do vagão que se movia sem parar.
Eu fiz cara feia e rangi os dentes revirando os olhos, descansando minhas costas no vidro do metrô e tendo picos momentâneos de pânico imaginando Carmem acordando sozinha ali na casa de Aiden. Ela perguntaria por mim e Perseu lhe daria a notícia de que eu fugi e a deixei.
Descansei o rosto nas mãos.
O que a minha vida virou?
Mariano estava nos olhando de longe quando começou a andar e se sentou perto de nós em outro banco. Ele passou a mão nos cabelos espetados e crispou os lábios.
— Seu marido Diavol, ele é chamado de Diabo por todas as pessoas que o conhecem. O apelido não é à toa. — Formei uma ruga entre as sobrancelhas, um arrepio gelado correu minha espinha.
— Marido? — Aquela palavra saiu baixa e arranhando minha garganta.
— Senhor Eris não vai fazer mal a você. — Ele falou para mim. — Ele também não fez mal a sua família, eu os vi chegando em Arcádia. Estão todos bem, só são bem barulhentos, mas-
Mabel riu com sarcasmo.
— Eris levou a família dela para Arcádia? Eu duvido. — Ela estalou o pescoço. — Não se deixe enganar, garota, ele vai fazer você parir até que não aguente mai-
— Nosso Senhor Eris é estéril. O Lírio não serviria para esse propósito. — Respondeu Mariano para Mabel, depois ele me olhou. — Você não deve sofrer por Aiden. — Mariano olhou para trás observando se Eden estava escutando, então se abaixou para falar comigo sussurrando. Eu queria dizer a ele que não estava sofrendo por Aiden, mas não tinha forças para isso. — Estávamos observando de longe, vimos o que aconteceu com aquele garoto… aquele garoto que você matou. Nosso Senhor Eris tem pombas informantes em todos os lugares, então uma delas viu que tinha alguma coisa de errada no cadáver. Você não deve ter parado para pensar na hora, mas os olhos de-
Algo como uma explosão parou o vagão por fora, Mariano foi interrompido pelo embalo do metrô que descarrilou e virou para o lado nos fazendo despencar aos gritos.
A pancada foi tão forte que as luzes piscaram, todos nós fomos lançados para frente e caímos do banco para o chão com tanta força que eu senti minha cabeça doer de novo.
Enquanto eu ainda abria os olhos segurando minha cabeça que formaria mais um calombo, vozes masculinas irromperam no local.
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Olha o buchim da Amélia que coisa mais lindinha 💘
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Prontos pro último capítulo desse livro daqui a pouco? Eita que esse povo gosta de uma bomba hein
Amélia só queria parar de comer miojo em todas as refeições e acabou no meio de uma conspiração. Parece eu tentando resolver meus problemas.
Vocês já têm uma suposição do que esse povo seja? Vamos descobrir no próximo!
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