Passei a noite toda em claro tentando desvendar o mistério da mudança repentina do meu amuleto, só percebendo que já era dia quando escutei batidas na porta que me fizeram voltar a realidade. Avistei um forte clarão vindo do lado de fora, e após abrir a pequena e estreita janela, um sol radiante iluminou todo o quarto e quase queimou as minhas retinas no processo. 

   — Amy, você está acordada? — Escutei a voz abafada da Chloe que batia incessantemente na porta. — Levanta, já é de manhã!

   Toc,toc,toc,toc,toc,toc…

   Como alguém pode ser tão energética logo de manhã? Que chatice!

   — Eu já acordei! — Falei tentando me manter calma. — Já estou saindo. — As batidas na porta pararam. — Os meus ouvidos e o meu juízo agradecem. — Sussurrei em desabafo.

   Peguei o pingente e o coloquei de volta no meu pescoço, o colocando de um jeito que ele ficasse escondido por debaixo da minha roupa deixada pela celestial no pequeno cômodo,um longo vestido branco com manga que cobria perfeitamente o meu corpo, e logo me disponho a sair do quarto antes que a louca da Chloe voltasse a bater. Assim que abro a porta, para a minha surpresa, não encontro ninguém me esperando do outro lado, e após uma olhada pelo extenso corredor, acabo descobrindo o porquê. A "energética" Celestial estava babando no Demiumano sem camisa ao lado, sorrindo animada enquanto passava a mão nas cicatrizes do corpo dele, o mesmo deixava sem-pudor nenhum.

   Que nojentos!

   Assistir essas trocas de carícias me embrulhava o estômago, mas, estranhamente,também me deixava irritada a ponto de querer brigar com os dois.

   Me tocando de que eu estava olhando por tempo demais, decido me virar e caminhar para o mais longe possível dali, contudo, sou impedida por uma voz que chama pelo meu nome.

   Que droga!

   Eu poderia muito bem fingir que não estava escutando a Chloe me chamar, porém conhecendo a peça, ela começaria a gritar o meu nome incansavelmente até que eu respondesse.

   Me virei para a mesma ao mesmo tempo que revirava os meus olhos, ela se aproximava agarrada no braço do Derek, enquanto que o mesmo me fitava com os seus olhos escarlates.

   Ao menos ele estava vestido.

   Tentei me conter ao máximo para não vomitar no "casalzinho" que estava em minha frente.

   — Finalmente acordou, dorminhoca? —  Ela veio me abraçar com toda a sua animação, eu mal tive tempo de retribuir o abraço, já que a mesma veio me atropelando com a sua falação. — E essa cara abatida? Não dormiu bem não? Pelo menos o vestido que deixei para você caiu feito uma luva, e a propósito, eu acordei maravilhosamente bem, e estou de ótimo humor, e olha essa pele…— passou a mão em seu rosto — está perfeita como sempre, me sinto ótima e como sempre, linda e poderosa a ponto de derrotar qualquer um que se atrever a entrar em meu caminho, você não concorda comigo? — soltou um grande sorriso encarando o demiumano que a olhava com o seu semblante bobo de sempre. Ele apenas balançou a cabeça meio que sem jeito, concordando automaticamente em resposta. — Viu só? Até o lindinho aqui concorda comigo, e como não concordar? Eu sou, blá-blá-blá…

   Sério? Como que ela consegue falar tanto sem parar? Já tinha esquecido o quanto ela era tagarela e importuna. Eu já estava de cabeça cheia com os eventos da noite anterior e pelo fato de ter passado a noite em claro, agora tenho que ficar aqui para escutar alguém que não parava de falar? Fala sério.

   Pego o Derek me olhando com seu semblante aflito. Fico sem entender o que se passava na cabeça dele e o motivo de sua preocupação para comigo. Evito olhar diretamente em seu olhar, que por algum motivo estranho, sempre me prende e me leva a ficar fitando-o por muito tempo.

   De cabeça cheia e confusa, já penso em mandar a celestial se calar e ir naquele lugar, mas ainda bem que não foi preciso, pois o demônio, Zékriön, apareceu já chamando atenção de todos e interrompendo a tagarela sem controle.

   — Mal amanheceu o dia e você já está perturbando os nossos convidados com a suas histórias intermináveis, tic tic? — Disse ele de forma divertida,puxando a de cabelos pretos pelo braço e a tirando daquele corredor. — Vejo vocês lá fora depois que se alimentarem, tic tic.— Falou, saindo do recinto e levando a celestial com ele, não antes de dar um piscadela para mim e um sorriso amarelado. Eu estranhei isso, mas resolvi deixar quieto.

   Percebendo que eu estava a sós com o demiumano que ainda não desgrudava os seus olhos de mim, decidi sair dali o mais rápido possível sem dizer nenhuma palavra, antes que eu fizesse alguma coisa que o magoaria ou que o machucaria, porém,  o seu atrevimento o levou a segurar na minha mão e impedir que eu seguisse em frente.

   — Espere!...Me desculpe…— Soltou a minha mão após uma encarada minha.

   — O que você quer? Fala logo que eu estou com pressa e sem paciência hoje.— Falei de forma ríspida. Não queria ser tão grosseria, mas o seu ato me incomodou.

   — Eu só queria…— pude sentir que ele estava nervoso com alguma coisa. — Deixa para lá. Vamos comer. — Disse ele. Saiu apressado e me deixou sem entender nada naquele corredor extenso e solitário.

   O que deu nesse idiota?

   Após ter me alimentado, acompanhei o demônio de olhos alaranjados que ficou de me mostrar o lugar, como já era previsto, a Chloe e o Derek também nos acompanharam. Começo a escutar eles cochichando e rindo de alguma coisa que me nego a entender,  mas era quase impossível não prestar atenção nos falantes atrás de mim.

   — Às vezes, minha jovem, é  preciso escutar a voz do coração e ignorar um pouco a razão, tic tic. — O demônio ao lado chama a minha atenção. Ele deve ter notado o meu semblante confuso pois logo prosseguiu. — Eu vejo como olha para o Derek, tic tic.

   — Eu não sei do que você está falando. Eu e o Derek nunca fomos e nunca seremos mais do que companheiros de viagem. — verifiquei se o demiumano estivesse ouvindo, mas o mesmo estava distraído acariciando as asas vermelhas da Celestial.

   Mas porque me importo?

   — Enfim, tic tic, estamos nos preparando para derrotar o rei e roubar o seu trono, tic tic. Estamos quase preparados para isso, tic tic, mas como bem sabemos, precisamos de um campeão,tic tic.

   — E esse não seria você? — Perguntei. Ele parou e sorriu soltando uma gargalhada que chamou atenção do casal atrás. — Porque está rindo? Disse alguma coisa engraçada?

   — Desculpe, Amélia,  é que fiquei feliz por você achar que eu ainda consiga lutar,tic tic, contudo, eu sou um demônio inferior com poucas forças restante, não sou páreo para o rei, nem chego perto, tic tic. Não, para isso precisa ser alguém mais forte e habilidoso, que consiga aguentar as árduas batalhas que virão, tic tic.

   — E não tem ninguém assim aqui?

   — Bom, acredito que tenha acabado de chegar uma excelente candidata, tic tic — Me encarou. Podia ver seus olhos brilharem de esperança.

   — Quem? Eu? — Não estava acreditando que ele se referia a mim.

   — E quem mais seria? — A chloe se aproximou depositando o seu braço no meu ombro. — se não a única pessoa que já me derrotou em um combate? — Ela abriu um sorriso que me fez revirar os olhos. — Me lembro como se fosse ontem…— Lá vamos nós novamente para mais falações sem limites. — você e eu lutando para decidirmos quem era a mais forte entre nós, e é claro que deu você como a vencedora, apesar dos meus esforços, eu nunca fui capaz de derrotá-la, nas inúmeras vezes que lutamos eu nunca venci nenhuma vez sequer, e isso me frustrou por anos, mas…será que você ainda está em forma? Eu mesma não parei de lutar desde então, e me tornei mais forte. — Ela abriu as suas asas em exibição, como se isso demonstraria a sua força.

   — Fico feliz por você. — Disse apenas. Notei um certo incômodo por parte dela.

   — Já sei, que tal lutarmos agora? A vencedora fica com o coração do Derek.— Ela abriu um largo sorriso e deu uma piscadela para o moreno,que ficou todo vermelho envergonhado.

   — Não mesmo! Dispenso. — Eu respondi séria. Não gosto de lutar apostando os sentimentos dos outros, ninguém é um objeto que possa ser comprado ou ganhado em uma aposta idiota, ainda mais alguém que eu…respeito.

   — Qual é, maninha, não me diz que está com medo de finalmente perder para mim? — Ela sabia bem como me provocar, porém não iria cair nesse truque barato. Desde que eu a conheci, ela sempre tentou ser superior a todo mundo, se mostrando ser a mais forte e a mais bonita do que qualquer uma. Isso nunca me incomodou, pelo menos até ela me ver como uma rival e querer me superar de qualquer jeito, começando disputas e competições que eu sempre vencia. — Eu não esperava isso da grande "Leoa indomável ". — Com isso ela conseguiu o que queria. Eu odiava que me chamassem assim e ela sabia disso. — Olha, vejo que agora está disposta a lutar, não é mesmo?

   — Vamos acabar logo com isso! — Falei, encarando-a.

   — Se vão lutar, sugiro que lutem na arena de treino, tic tic. Estamos quase chegando lá, tic tic.

   Continuei encarando a rabo de cavalo que tomou a frente do Zékriön. Ela se virou para me fitar.

   — Que tal apostarmos uma corrida até a arena? — ela se dirigiu a mim abrindo e batendo as suas asas levantando vôo. — Ainda sabe voar, não sabe? — Essa é a mesma Chloe do passado, quando começa a querer competir, não para por nada.

   — Eu topo! — Sorri, liberando as minhas asas, e levantando vôo também. A Celestial conseguiu acender as minhas chamas por competição.

   Eu achei interessante não precisar tirar o vestido para isso, as minhas asas saíram sem danificar a roupa, isso que é tecido de alta qualidade feita por anjos costureiros.

   — Meninas, vão com calma, tic tic. — O demônio de olhos alaranjados tentou nos impedir, porém a gente já não estava ouvindo mais ninguém, apenas focamos em nossa competitividade.

   — Pronta? — Eu assenti com a cabeça. — Eeee…Agora! — ela disse por fim iniciando a corrida aérea.

   Com a minha velocidade máxima não seria problema vencer a celestial animada, contudo, isso seria um problema que revelaria a minha identidade Nephilim diante de todos, pois ativaria os meus poderes demoníacos. Eu nunca contei que era uma Nephilim para a Chloe, ela sempre acreditou que eu fosse uma celestial também. Apesar dos anos que a gente se conhece, eu nunca me senti à vontade para me abrir por completo para ela, e isso foi um dos motivos da nossa separação. A gente era muito diferente uma da outra, nós tínhamos visões diferentes do mundo. Ela queria ser a rainha mais poderosa de todas, estava sempre atrás de poder, era obcecada por isso. Eu, por outro lado, queria ser normal, me misturar com todo mundo e viver livre, não como uma órfã de pais que lutava para sobreviver, e sim como uma mulher forte e independente que era amada por sua mãe. Infelizmente, a vida nunca nos dá nada de mão beijada e sempre coloca obstáculos em nossos caminhos para nos testar e nos fazer superar, mas na maioria das vezes, a gente acaba tropeçando ou sendo impedidos por esses mesmos obstáculos.

   Por muito pouco, a Chloe venceu a nossa pequena disputa aérea. Ela pulou em alegria como se não houvesse o amanhã. Eu achei hilário quando a mesma começou a fazer uma pequena dancinha toda desengonçada, parando somente no momento em que os meninos chegaram.

   Enquanto ela comemorava a sua vitória, eu analisava o lugar. Tínhamos pousado no centro de uma pequena, mas espaçosa, arena hexagonal, que era ligada por mais quatro outras iguais. Inúmeras rochas pontiagudas de cores azuis com detalhes em vermelho estavam espalhadas pelos arredores da arena e formando um domo circular, apenas aberto na parte de cima, entrada essa que   eu entrei, mesmo com um pouco de dificuldade devido aos ventos fortes. Eles fizeram uma réplica perfeita da grande arena que é  usada para determinar o próximo rei ou rainha no território dos humanos. Alguns Celestiais treinavam nas outras arenas juntos com alguns de outras raças.

   — Finalmente alcançamos vocês, tic tic. — Disse o Zékriön assim que chegou junto com o Derek. — Pelo visto já estão preparadas, tic tic. — Eu e a Chloe já estávamos em nossa posição de luta no centro da arena, ambas nos olhávamos ferozmente. — Lembre-se, garotas, é  apenas uma luta amigável,  então peguem leve, tic tic. Preparadas? Comecem, tic tic.

   — Não se contenha, Amélia! — O Derek gritou para mim, mas eu mal escutei, estava focada demais na minha adversária.

   — Tá vendo isso? O seu namorado já sabe que você vai perder, como perdeu agora a pouco. — A celestial tentava me provocar, eu não perdia o meu foco tão facilmente. — Ele será meu assim que eu acabar com você, maninha.

   — Chega de falar! Vamos logo começar com isso. — Falei com um sorriso de canto de boca.

   Ela avançou em minha direção em alta velocidade após levantar vôo, desferindo um poderoso chute na intenção de ferir o meu rosto, mas me defendi sem nenhuma dificuldade protegendo o meu rosto com o meu braço. Antes que ela pudesse agir, agarrei o seu pé e a lancei com força, porém a mesma logo se recompôs antes de bater nas rochas atrás dela.

   — Isso não foi…— Sem tempo a perder, eu voei em sua direção e em um instante, já estava em sua frente.

    Com os meus punhos envoltos em luz, soquei na altura de seus olhos, contudo, a mesma conseguiu se defender bloqueando o meu soco, mas dessa vez, ela não conseguiu evitar de sair voando novamente e colidir nas rochas que a jogaram para frente.

   — Nada mal. — Eu reparei que a Chloe já estava se levantando — Mas vai precisar mais do que isso se quiser me derrotar. — Disse retribuindo a provocação dela.

   Com a ferocidade de um felino encarando a sua presa, ela me fitou. Ergueu novamente as suas asas e partiu para enfrentar-me, dando continuidade à batalha.