Capítulo 1: Georgia Locke e seu Conto de Água e Gelo
“Everything is blue.”
Colors, Halsey
Era de certa forma reconfortante viver em Salem. O céu nublado e as árvores secas espalhadas pela cidadezinha davam a impressão de viver num eterno outono. Cresci na cidade bruxa, onde todos se conheciam, mas não o suficiente, onde ninguém compartilha seus segredos, mas é possível ouvir cochichos em cada esquina, bar ou portaria. Tenho dezoito anos, cabelos e olhos castanho escuro e pele preta. Em aparência, sou uma adolescente comum.
Aos oito anos, meu pai, Hudson, morreu num terrível acidente de carro e passei a morar com minha mãe, Erin, entre crises de ansiedade, pílulas e janelas quebradas, me acostumei. A fácil adaptação sempre foi uma das minhas maiores virtudes.
Comigo, esteve minha melhor amiga, Amber, não sempre mas, não me lembro exatamente de quando ela não estava aqui. Nos conhecemos na 7° série e somos inseparáveis desde então.
Me apaixonei por ela desde a primeira vez que a vi com maquiagem de borboleta numa segunda-feira escolar, havia algo nela que me intrigava, não sabia se era sua confiança exagerada ou o simples fato de que ela não ligava pro que os outros achavam, Amber pertencia a ela e era assim que eu sempre quis me sentir.
Nós crescemos e mudamos: enquanto a linda e privilegiada Amber vivia uma vida de socialite com festas, namoricos e noites de bebedeira, eu estudava e trabalhava pensando que isso talvez me daria um futuro melhor mas, abdicando, aos poucos, o que poderia viver no presente.
Minha mãe sempre estava bêbada então não conseguia trabalho e, quando o conseguia, era demitida, porque o cheiro de álcool era forte demais para ser ignorado, ela dependia de mim pra continuar viva e a culpa não me permitia deixá-la.
— Jorji... — Amber me chamava assim, mas esse não era meu nome. — É realmente deprimente te ver aqui de segunda a sábado, isso quando não trabalha aos domingos.
— Eu gosto daqui, eu gosto da minha recepção... — eu digo, arrumando algumas pastas — Eu não sou como você, não faço questão de...
— Ter uma vida social?
— Bobagens adolescentes. Ter vida social não é se encher de maconha na casa de algum traficante de meia idade durante os sábados enquanto Celine Dion toca na rádio e gays vomitam nos paus uns dos outros.
— Droga, Georgia, você não deveria basear seu olhar sobre o mundo em fanfics do wattpad. — Amber disse, descendo do balcão em que estava sentada, ela sempre se sentava ali quando vinha me ver no trabalho, o que era quase todos os dias.
— Ao menos passo meu tempo trabalhando e não chupando pau de universitários, senhorita Johnson.
— Você está relativizando os meus interesses. O que você chama de chupar pau de universitários eu considero uma forma de criar relações com pessoas que terei ao longo dos meus anos de faculdade.
— Bebendo a porra deles.
— Eca! Você é nojenta.
— Obrigada!
— O que vai fazer depois daqui? — pergunta, meticulosamente analisando as pontas duplas inexistentes de seu rabo de cavalo loiro.
— Hum... Nada, eu acho. Só tomar um banho e chorar até dormir pensando em minha vida miserável. Acho que esqueci meu antidepressivo em casa... — comentei, dando uma olhada em minha mochila.
Ela me encarou por alguns segundos, desviando o foco de seu cabelo. Parecia me analisar.
— Vamos pra festa do Nico.
— Não!
— Por que não?
— Não tenho tempo pra isso, Amber. Além do mais, o seu "namorado" e a turminha dele não são lá meu tipo favorito de companhia. — expliquei, enquanto entregava as correspondências de um morador, olhei pra ela depois que ele entrou no elevador. — Não tenho interesse.
— Jorji. — ela pegou meu rosto com as duas mãos, me fazendo olhar em seus olhos, um arrepio subiu por minha espinha por estar tão próxima a ela. Seus olhos azuis me fitavam afetuosa e sua boca estava há apenas alguns centímetros da minha. — Você precisa começar a viver, pode ser nossa última chance. E se isso não te convencer... — ela me solta. — Savannah vai estar lá.
— Por que tanto drama? Só vamos terminar o ensino médio e por que a Savannah me convenceria de qualquer forma? Eu não me importo com ela. — falei, tentando manter a postura de quem não dá a mínima. O lance com Savannah era complicado.
— Você claramente quer comer ela.
— Bee! — repreendo, corando.
— Parece que achei seu ponto fraco, né? — me pergunta, sorrindo.
— Não! Olha... Ok, você venceu, mas só porque pode ser minha última chance de dar a louca antes de entrar na faculdade e ter que enfrentar o mundo real. Não tem absolutamente nada a ver com Savannah, ok? — expliquei, ela segurava o riso. — Eu vou.
Depois do trabalho, fui com Amber até a sua casa. A casa dos Johnson era um apanhado adorável de clichês dos anos 60, com seu belo jardim com cercas brancas e estrutura suburbana de dois andares, a fronte em cinza com uma enorme garagem para todos os seus três carros, na parte de trás havia um celeiro que agora era a casa da irmã mais velha de Amber, Dakota.
Lembro de quando era criança e sempre era recebida pelo forte cheiro de biscoitos quando ia visitá-la, adorava também a sensação de sentir a grama nos meus pés enquanto brincávamos no jardim durante o verão. Agora a grama não mais era verde e definitivamente não fazia cócegas nos meus pés, tudo ali agora era acinzentado, fodidos pelo clima nada convidativo de Salém e pela aura fantasmagórica ao redor da família de Amber.
Agora, os Johnsons eram — em resumo — uma família não tão unida. Vinhas cresciam na janela da residência tanto figura quanto literalmente, ilustrando os crescentes problemas entre Amber e seus familiares.
— Esse é o problema, sabe? — ela me disse uma vez. — Sou tão livre e me importo tão pouco com seus padrões mas ao mesmo tempo ainda me sinto pressionada a ser a garota perfeitinha como Dakota... É, tipo... Não existe linearidade entre quem meus pais querem que eu seja e quem eu quero ser mas... De alguma forma... Eles sempre acabam vencendo.
E é sempre esquisito visitá-la agora porque existe uma grande diferença entre quem Bee descreve e as pessoas que vejo. Mas esse é o problema dessa família, as aparências importam mais do que ser genuíno ou palpável.
Entrei na casa com Amber me puxando pela mão, fomos como raios até seu quarto onde ela iria nos arrumar pra ir até a festa. O quarto de Amber era um misto de jovem emo dos anos 2000 e patricinha do tik tok, basicamente, sua cama com dossel rosa bebê contrastava com a parede de grafite escuro, pôsteres de bandas e cantoras pop ficavam espalhados por todo o lado e móveis como sua penteadeira e sua escrivaninha ficavam alocadas nas extremidades. Em cima da escrivaninha estavam alocadas suas bonecas monster high, algo que também me lembrava nossa infância.
— Ah, a água tá um pouco gelada e o aquecedor não está funcionando. — ela disse, enquanto saia do banho, eu estava mexendo em uma das bonecas.
— Hm, ok... — fiquei a aguardando, observando como seus cabelos molhados se misturavam com suas costas, criando uma imagem quase fantasmagórica no quarto com iluminação amarelada.
Observei ela abrir uma das portas de seu armário e procurar a toalha que usava quando dormia lá, oque não acontecia desde quando sua irmã voltou a morar no jardim dos Johnson.
— Como estão as coisas? Com Dakota e etc... Surreal ela estar quase se casando com nosso professor. — perguntei, observando o celeiro pela janela. Já não havia mais o aspecto animal tão forte no espaço, o vermelho havia sido trocado por um rosa salmão bem suave e a porta grande para a saída das vacas havia sido substituída por uma larga o suficiente para Jeffrey levar Dakota nos braços depois da infame cerimônia.
— Argh... Você tinha que me lembrar disso? — ela reclama, revirando os olhos.
— Fingir que não existe não vai fazer isso sumir, eles vão se casar e Jeffrey vai ser seu novo cunhadinho. — digo, silvando a última palavra como uma cobra e andando até ela, que desembaraçava seu cabelo no espelho.
— Odeio quando você faz isso.
— Isso? — brinco, ainda silvando. Olho em seus olhos através do espelho, uma tensão esquisita pairava no ar. Beijo seu pescoço, ainda a encarando, Bee fecha seus olhos, relaxando. Abraço-a pegando pela cintura. — Venho sentindo sua falta desde o intervalo de primavera...
— Você fez sua escolha, Jorji... — ela começa, ainda de olhos fechados, podia sentir o tom sussurrado, quase gemido, em sua voz. — Além disso, acho melhor você ir tomar banho, tá toda suada do trabalho. — conclui, se afastando de mim.
A festa começaria as oito da noite mas aparentemente "ninguém chega no horário marcado, então vamos as nove."
A casa de Nico ficava há alguns quarteirões depois da de Amber, nos conhecíamos hà muito tempo, estudamos juntos por todo o ensino médio, mas não havia muito em Nico que me interessasse o suficiente pra cultivar uma relação. Ao contrário de Amber. Óbvio.
Fomos até lá andando e a música trap genérica que tocava na casa era audível mesmo há quilômetros de distância, tenho certeza disso, eu consegui ouvir a partir da esquina. Amber estava particularmente animada, com seu vestido branco e bordado flutuando em movimentos provocados pela brisa fria. Uma jaqueta jeans cobria seu colo, usada apenas porque insisti.
Eu vestia uma blusa branca padrão e uma calça jeans skinny preta, ambas de Amber.
A rua de asfalto escuro parecia mais longa do que era por conta da escuridão. Me perguntei quanto tempo demoraria até que um vizinho chamasse a polícia.
— Acho que pode ser super divertido. — Bee especulou, mais otimista do que jamais soou.
— E eu não duvido que você acha mesmo.
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