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A   Ú L T I M A   V E Z
s e g u n d  o   c o n t o



"[...] o espírito da Perversidade. Esse espírito a filosofia não leva em consideração. Mas eu não estou mais certo de que minha alma vive quanto estou certo de que essa perversidade é um dos impulsos mais primitivos do coração humano — uma das faculdades, ou sentimentos, primárias e indivisíveis que dão direção ao caráter do homem."

— Edgar Allan Poe



O ar denso do cômodo gélido adentra minhas narinas, evasivo. Sobre a mesa de mármore perfeitamente polido, minha mão se aperta contra o cabo da faca, a lâmina reluzindo em contraste com a luz ofuscante da minha cozinha. Nela jaz o passaporte de vidas para o doce inferno. Vidas as quais, em algum futuro certo e não distante, irão escorrer diante de meus orbes oculares, como névoa.

     Matar.

     Ah, a fome de sangue é a única coisa que consegue me despertar.

     Dizem que não sinto nada, que sou imutável, gélido, indiferente. Mentira.

      Eles é que não são nada para mim, então por que ter o mínimo de interesse para com algo tão dispensável? Nunca uma equação foi tão básica.

     Ainda dizem, também, que sou sem escrúpulos, apático, sádico. Essa, sim, é uma doce verdade.

     É isso que me desperta; a vida que se expira como um sopro jogado ao infinito vácuo. Uma bela arte, um anseio intrínseco de algo como eu — deixei de ser alguém há muito tempo — que se deleita com o poder que essa mórbida dádiva trás.

     Procuram meu rastro de sangue por muitos anos. Eles não percebem que, próprios, construíram meu legado. E não passam de criaturas desprezíveis que rastejam atrás de migalhas que quero deixar, peças de xadrez em meu jogo, e continuam em busca de justiçade que sua justiça serviria para mim, afinal?

     Besteira.

     Algumas vezes me peguei pensando sobre o que eu era. A psicologia afirma ter alguma propriedade no assunto, os leigos destilam conhecimentos rasos sobre os monstros. Mas quanto de minha mente eles conhecem? Qual a porcentagem de noção eles possuem quanto o comportamento dos anormais? Tudo é supérfluo, frívolo, superficial. É inútil. Você só lê o que eu quero deixar transparecer, o que me importa. Foi assim que estipularam meu modus operandi.

     As genitálias arrancadas, as bocas costuradas em linha negra e as mãos decepadas demonstram que posso estar tirando a vida de pessoas para vingar homens pedófilos, a corja. Grande ilusão.

     Eles só tocaram no que foi meu um dia, só ousaram violar o que nunca deixou de me pertencer. Talvez a polícia pudesse perceber que sou uma constante na vida de todas as mulheres envolvidas com esses homens, se não fosse meu paradeiro incerto e movimentos por todo o mundo, se não fosse as provas que implanto na vida dos meus alvos ao longo da caçada.

     Vamos lá, você provavelmente é um idiota e também acreditaria se fosse um pai com sangue nos olhos e a polícia chegasse com fotos de sua filha abusada e dizendo que um bastardo qualquer estava com esses arquivos em seu domínio.

     Tudo é uma teia bem orquestrada, e quem está no centro do controle sou eu.

     O tremor do metrô faz com que os móveis se chocalhem com o piso inconstante perto da estação.

     Minha irmã de vintes anos dorme como um anjo em seu quarto, indiferente às mazelas que a cercam. Já se passam das duas da manhã, é o que o relógio digital sobre o armário branco indica.

     É perto da hora dos demônios, hum?

     Não muito tempo passado — exatos dois dias — havia tomado um nome e o mantido em um lugar aleatório nos arredores de Detroit.

     É a hora da retaliação, pois.

     Quase nada anda pelos becos podres da iluminada cidade quando saio de casa. Com exceção de drogados, prostitutas e assassinos de meia boca, nenhuma alma além jaz entre meu caminho. Em algum beco escuro, entretanto, vozes me fazem cessar a caminhada.

     — Sua vadia dos infernos! — esbraveja. O corpo masculino avança sobre uma jovem mulher ao impor uma arma em sua direção.

     Coloco as mãos no sobretudo azul escuro.

     — Não, não, por favor — ela clama. Eles sempre imploram. Patéticos. — Eu nunca mais vou fugir de casa, e eu não ia à polícia denunciar você. Eu juro, amor! — Será que ele será tão burro para não perceber que ela está blefando levianamente?

     As marcas em todo o corpo e rosto deixam claro que ela o odeia, a bolsa em suas costas denuncia que não estava indo apenas ao mercado. A denúncia poderia não vir, mas isso seria o de menos para ele. Fugir significaria que iria perder seu brinquedo, isso seria a gota d'água para ele.

     O homem avança sobre ela e agarra seu pescoço, levando sua outra mão até a altura da coxa dela.

     Um erro. O revólver fica perto de mais da pequena e astuta mão.

     E, como eu prevejo, perceptiva, ela ataca quando ele desce o rosto até seu pescoço delgado.

     Mal tem tempo de reagir. Dois tiros anunciam fogo.

     Ela teve a decência de erguer a arma, sem se afastar, e infligir a morte ao indivíduo que antes tinha ela em suas garras.

     Olhos cristalinos se voltam para mim e, de súbito, se arregalam, crispando em surpresa.

     Me vejo tão entretido com a pequena cena que, imerso, não me afastei e tampouco permaneci na penumbra.

     — Você viu — há uma leve tremulação nas palavras, mas o susto se esvai, dando vez à determinação.

     — O quê, querida? Eu não vi nada além de uma mulher fugindo das garras de um monstro. — Incorporar o personagem é tão fácil... — Você está bem?

     — E-eu... Eu não devia tê-lo matado... N-não sou como ele. — Às vezes me escapa da memória que ações desse nível de "horror" não são exatamente da natureza humana. Eu nunca soube e nem vou saber como é a sensação que ela está enfrentando agora. Arrependimento? Surpresa? Repulsa? Medo? Não poderei dizer que experimentei nenhum sequer. — Mas eu não podia mais deixar alguém roubar minha vida. Muito menos arruinar. — A pequena criatura ergue o revólver em minha direção, com determinação nos olhos. — É a última vez que tomam de mim.

     Não tirei meus olhos dos seus quando o tiro atravessou a luz fraca do beco e residiu em meu peito. 

    Eu posso, então, abraçar a única coisa que um dia pude sentir na vida — a vil dor. Quando meu corpo cai ao chão, sei que tenho um riso nos lábios, porque a morte amiga vela meu leito em meu último suspiro.


*****


— A madrugada de quinta em Detroit foi regada a mortes e horror. — A voz da jornalista era profissional. — Uma garota que tentava escapar de seu marido enfrentou o dia mais aterrorizante de sua vida, disse ela. Segundo a jovem de 26 anos, enquanto tentava fugir de Mike Peterson, o homem que a mantinha presa em casa sob a mira de violência e abusos, foi interceptada pelo agressor e se viu desesperada com a possibilidade de voltar para a rotina dolorosa. No momento da abordagem, um homem apareceu e tentou ajudá-la, mas as chances de conseguir eram mínimas, uma vez que havia uma arma envolvida. Chase Lambert foi morto com um tiro à queima roupa, não tendo como se defender. Ela relatou que, mesmo em choque com toda aquela cena sangrenta, conseguiu tomar a arma de Mike enquanto ele se distraiu, e precisou atirar em legitima defesa. As investigações apontam que o relato foi, de fato, verídico, o que não deixou brecha para quaisquer acusações para ela, que apenas defendeu sua vida. A notícia de que uma mulher no mundo escapa das garras de um agressor é um alento — é uma vida que volta a brilhar novamente. E também fica a comoção por Chase, o hom''em de bom coração que lutou em socorro por uma causa tão humana, mas que, infelizmente, se foi...

     Cora Lambert não consegue terminar de assistir o noticiário. Seu celular, onde a página está aberta no vídeo, treme em sua mão. Isto é sobre o seu irmão, que agora está morto.

     Sua morte havia sido anunciada a ela apenas há um par de dias. Ele fora o homem que ficará sempre conhecido pelo ato heroico, que morreu fazendo uma boa causa. Ela acreditou nisso quando recebeu a trágica notícia — e como não acreditaria? Sempre foi carinhoso, um homem carismático e que sempre fez o bem.

     Mas agora Cora não consegue mais ver seu irmão assim.

     Não diante de um pequeno depósito do porão de sua casa — no covil de um assassino.

     Por Deus, ela mal pode pronunciar aquilo em palavras ditas.

     Um grito rasgou sua garganta minutos atrás, quando viu a parede recheada de fotos. De corpos. Homens mortos e em situações aterrorizantes estão diante de seus olhos através das imagens. Assim como arquivos, informações de crimes, reportagens sobre assassinatos ocorridos nos últimos anos, que, inclusive, assustaram-na nos noticiários.

     Mal sabia que estava do lado do perigo o tempo todo.

     Ela não precisa de muito para raciocinar o óbvio: Chase era um dos serial killers mais procurados dos Estados Unidos.

     — Alô — murmura ao telefone quando a polícia atende sua ligação, ainda chorando e encarando o espetáculo de horror. — Eu t-tenho uma denúncia a fazer...

     E o faria com um sopro de alívio no coração.

     O fim.

     Aquela noite em que ele se foi havia sido a última vez em que um monstro teve poder sobre vidas.

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