[Capítulo Único]
Pedras calcadas de paralelepípedos aglomerados abaixo de um início de aglomeração, bons-dias inaudíveis, coleção de vazios e motores, um ou outro ou outro, soando zummm, treck-treck-treeeim nos semáforos, ruas, alvorada, e todo o mais à mostra também — vem comprar, sim, que o resto vem de brinde. Vem de brinde, pode apostar, já que era bem simples: ganhar o teu peixe, tem é que ganhar o teu peixe, que hoje ainda é dia.
Amanheceu nas costas dele uma certeza, a certeza convencida de que, no mais tardar, ele iria cair, sim; de que tudo que sobe, desce; pode apostar, quer postar? — vem de brinde, vem comprar — põe no galo aí pra mim, que hoje eu vou de galo; vou de galo.
— Vem comprar! Vem comprar! Na compra de um saco com mais de um quilo, vem um molho caseiro. É de brinde, vem comprar!
Quase que quase toda manhã, bem de manhã, menos amanhã, porque amanhã não haveria manhã de manhã, Tato corria pra pegar o caminhão das frutas. Das frutas, das verduras, dos legumes... o caminho. Concebendo que às 5h26 ele pegava tudo que tinha pra pegar, às 6h01, se tudo desse certo, ele despejava no seu carrinho; aí, lá pras 6h24 ele estava chegando ao depósito alugado, que não era bem alugado por ele, mas meio que o aluguel taxava e retinha de uma parcela da comissão dele, lá com o seu Cedinho, então dá pra dizer que o aluguel era meio que um aluguel, mesmo, e que Tato tinha que pagar a taxa no fim daquele dia mesmo, então a vendinha tinha que render. Sendo assim, às 6h36 ele estava montando a barraca de venda, às 6h48 ou 49 a barraca estaca, caraca! E pronto: às 6h50, em ponto, no ponto de venda, a venda, à venda, inaugura a venda! E logo vieram os fregueses, gostando do tempo cedo, com o matutino já fluido nas veias, que nem os comerciantes, e começou, às 7h03:
— Ô moço, o tomate tá quanto, hein, moço; tá quanto?
Aí Tato, o Moço, muito simpático no olhar, e cativante no sorriso, e confiante na agilidade para mostrar um produto de uma qualidade que era só cuspir e comer — como ele dizia —, disse a ela que custava R$ 4,29, o quilo.
— Mas tá bem barato, hein, ô moço; será que não tá estragado, não, moço?
— Que isso, dona. Aqui é só produto de qualidade; qualidade que é só cuspir e comer, que eu garanto. Caíram do caminhão hoje cedo; hoje cedim, cedim.
A dona olhou para ele, meio que se fazendo de difícil, adocicando o cu, sabe como, mas aí começou a examinar e selecionar os tomates que Tato mesmo já havia ele mesmo examinado e selecionado, porque às vezes não caía coisa boa do caminhão, mas, naquele dia, Tato parecia estar com sorte.
— Esses daqui parecem tá meio farelentos, será que tão não? — perscrutou a dona, ao olhar como que uma expert em tomates, a filha da puta ignorante, que nem o significado de “perscrutar” ela saberia dizer, e menos ainda dizer “perscrutar” em voz alta, se pedissem.
— Que isso, dona, que isso. Ó, a senhora aperta assim — e pegou o tomate que ela estava segurando, apertando-o levemente por entre os dedos, e o tomate reagia se mantendo firme, porém macio — e aí, viu só, quando ele não enruga nem afunda, e se estiver com a cor boa, quer dizer que tá bonzinho, viu só?
— Ô moço, eu sei ver se um tomate tá bom, moço, eu hein. Eu criei TRÊS filhos, moço. Três! Dois meus mesmo e um afilhado, do meu ex-marido, que morreu.
— Meus pêsames. Que Deus o guarde.
— Que Deus o guarde u'a porra! — Ela percebeu a besteira que fez, ao falar de “Deus” com a porra na boca, e fez sinal de cruz, ah, perdão, misericórdia, Senhor. — Enfim, acontece que ele morreu foi ano retrasado, moço: faz tempo já; aquele traste! Chega em casa que nem um filho sem mãe, já fedendo a cerveja de tanto beber com aquelas piranhas lá do trabalho dele. E é isso mesmo: piranhas. Onde que já se viu mulher ficar saindo pra beber, seja dia ou noite, com sol ou chuva, com um homem casado, pai de família já, bebendo todo dia! Nãããooo, comigo não! E eu falava mesmo. Aí também já chegava meio mamado, né, mas mesmo assim eu falava. Aí ele me metia a mão, me metia a mão na cara, mas eu falava, falava mesmo, que não era boba nem nada. Era como minha mãe dizia: vai me bater de todo jeito, mas, eu falando, pelo menos eu me vingo falando e ainda faço ele ouvir umas boas de umas verdades, o cachorro. Mas ela não falava “cachorro”, não; o cachorro fui eu que pus agora. É que meu pai também dava umas mãozadas nele, sabe; era outro traste também, outro cachorro, que bebia o dia todo, se deixasse. Mas aí, enfim, esse meu ex-marido — e então cuspiu no chão —, tu acredita que, mais assim pro fim da vida, nem pros filhos mais ele estava ligando? Chegava assim em casa e dormia. Aí os garotos pediam um dinheiro, né, pra comprar uma roupa nova, que estavam precisando, ou pedia pra sair, ver gente, respirar ar diferente, né, e o cachorro nunca ia! Agora, pra bancar as piranhas lá do trabalho dele, amamentando elas com cerveja da boa, pra isso ele tinha tempo, pra isso ele tinha paciência. Reunião de escola? Hum! era sempre com a cachorra aqui. Se um passasse mal, que nem aconteceu, qualquer dia assim desses, era eu quem levava, era eu quem ia! Nem por aquele outro filho dele, o meu afilhado, ele levantava um dedo sequer! quanto mais aquela barriga de chopp, de velho gordo dele. Eu hein, Deus me livre, sabe, Aguentei muita coisa, sabe, muita grosseria mesmo. A gente casa, cria os filho pra homem vir e ainda dar na cara da gente, Deus me livre, isso sim. Por isso tô bem, bem sozinha. Vou ali na tendinha quando dá na telha, tomo bem mesmo um caldo de cana, um pastel, um litrão, ainda mais agora, com os filhos crescidos, e fica por isso mesmo, se você quer saber, sem homem esperando em casa pra dizer que tu, que passou o dia cozinhando e limpando que nem uma cachorra, não faz nada, que ele trabalha e você só fica em casa coçando o rabo, com as pernas pro ar! Agora você vê! E ainda se fosse alguma coisa; mas não, era um fodido, que nem uma pensão que preste dava aos filhos, e eu ainda não tive que criar o filho lá da outra?, e agora que ele morreu é que não sobra nada mesmo... quer dizer, já não sobrava, né... o desgraçado, desestudado, aquele velho... Não, não; chega de homem, tô bem com eu sozinha, Deus me livre. Mas, hein, moço, pesa aqui pra mim, pesa. Vê quanto é que dá esses 5 tomate aqui, ó — disse por fim, entregando-lhe o saco já até amarrado.
Tato pegou o saco, pesou, pôs outro saquinho plástico com alças, uma sacola, pensando que era sempre assim: a cada pratinho verduras e legumes, uma história. E Tato deu à dona a sacola.
— Mas, ó, moço: você tá dizendo que estão bons, os tomates. Quero só ver, hein, quero só é ver. E se eu chegar em casa e os tomates estiverem podres por dentro, com bolor, com fungo, com aqueles bichinhos e essas porcarias? Que é que eu faço contigo, moço? — Mas agora ela estava com um tom mais brincalhão; de melhor astral que antes, pelo menos.
— Eu dou o dinheiro da senhora de volta, e ainda dou pra senhora de graça mais tomate; falo isso porque me garanto: só vendo coisa de qualidade. Qualquer coisa, vem me procurar; só perguntar por aí pelo Tato.
— Tá me dando nome falso não, né, moço? E vão saber quem é Tato, nessa bagaça aqui? Olha que dá falsidade ideológica, hein, olha que dá. — Mas a dona não esperou resposta: deu um “tenha um bom dia, viu, moço” e vazou, como dizem, meteu o pé, como dizem.
Sucedido isso, pois, que “pois” é coisa de gente chique, de gente estudada — e não é? ora pois —, vieram uns moleques por ali. Já era depois das 7h37 e tava brotando gente, já. Movimentação, o restante dos comerciantes, dos camelôs chegando, a tendinha do pastel com caldo de cana venham provar só quatro e cinquenta mas com refresco fica só três e cinquenta, o dia raiando um calor quente que já se prevê como será o dia. Os moleques vêm sorrindo, rindo um com o outro, zombando uns do outro, e de repente vem uma fominha, foi só ver a barraquinha de Tato. Foram até lá em suas roupas tristes — algumas pequenas demais pra idade, outras nada mais que um pouco mais do que apenas “andrajos” —, vestindo caras tristes, já manjadas, dizendo tiu, ô tiu, tem uma fruta aí não, ou um tomatim que seja aí não, tiu?
— Sai, sai daqui, moleque, você e teus amigos; eu comecei agora. Mal vi a cor das moedas, ainda.
— Qualé, tii — disse o outro. — Tamo cuamaió fomi, na moral.
— Tamo varadão mermo, tii — completou o outro do outro.
Tato olhou para eles com cara meio assim, sabe como. Pensando que
— Vocês não estão fazendo coisa errada, não, né? Não vão tá roubando, assaltando... Cadê os pais de vocês?
— Iiiihh, ô tii, qual foi, tii. Tão em casa, a gente só tá com fomi.
Tato olhou pra eles meio assim, sabe como. Pensando que
— Tá legal, toma aqui. — E deu, a um deles, dois tomates, que não estavam tão bonitos assim mesmo; ao outro, um caju e uma pera; e ao último ofereceu uma maçã e uma banana, e tá muito bom; que lambam os beiços.
— Aê tii, tu é brabo, qualé teu nome, tii?
— É Tato, moleque.
E os moleques, a rir:
— Teu nome é Tatú, tii?
— Ta-to. TÁ-to.
— E nós falou o quê? Então! Ta-TÚ. — E riram.
Tato balançou a cabeça, voltando a arrumar as frutas, as verduras, que o movimento já estava aumentando e hoje ainda era dia.
— Vai, vai, vai, moleques, vai, que ainda tenho que vender.
— Não, não, mas pera aí — disse o outro do outro, ainda se recuperando da risada —; então é tatú, né?
— Já falei que é TÁ-TO.
— E que diferença faz o acento no ú ou não? — disse o um.
— Quando o “u” tá na última sílaba e é palavra oxítona, não leva acento, moleque, a não ser que esteja precedido de vogal, tipo em “baú”. Te ensinaram isso na escola não?
— Ih alá, o tii manja dos português. Tu é professor de português, ô tii Tatão.
— Não. Mas eu estudei, né, moleque, Uma coisa ou outra fica. Cês tinham era que pegar num livro, isso sim.
Os três, de boca cheia de caju, tomate e banana, olharam-se a si mesmos e riram, mas não de si, mas do tii Tatão. Do tii Tatão, que manja dos português pra vender fruta na feira, grande merda, grande merda.
— Aí, mais valeu mesmo aí, tii Tatão. Tii Tatú. Fortaleceu.
E foram. E rindo, ainda. E Tatú era o cu sem acento deles. E, pelo que Tato — é T-A-T-O, pivetes! Vai, soletra! T-A-T-O — pôde perceber, eles seguiam pela rua Riachuelo e, seguindo por aquele direção, ou eles iram para casa, ou para os Arcos, ou para a Praia do Flamengo ou ao Aterro.
Às 8h11, pronto: aquilo tudo tava que tava; as senhoras com seus carinhos humildes todo de ferro ou tecido, com cestinha e tudo, vagueavam tentando — sequer ler o que estava escrito ali, a idade é mesmo foda e a vista já não é a mesma — achar o melhor preço. As vozes dos muambeiros, dos comerciantes, dos de trabalho informal, chamem como quiser, aumentavam, aninhavam-se umas às outras, formando um coro desarmônico de “olha o past— dois e cinquen— olha, olha, hein, freguesa, olha, olha, hein: vem que tá fresquinho, que tá docinho, que tá gos-to-si-nh— hoje tem, heeeein; hoje teeemm...”.
Tato soube que aí deveria se adiantar, que estava tudo oficialmente aberto agora, que o movimento se intensificou. E lá foi ele:
— Tem tomate, tem caju, tem morango, tem maçã, vem que tem, vem que tem. Pode vir freguesa, vem que tem: tem alface, tem pepino, pra fazer aqueeela salada, hein, patroa? Aquela salada, que a senhora, sabe, que a senhora gosta, que o maridão vai amar. E tem molho também, hein! Vem que tem, vem que tem, vem de brinde, hein, vem de brinde; compra aqui, que é só cuspir e comer. Preço baixo, preço baixo, vem que tem!
Até que naquele dia Tato vendeu bem. Ficaria feliz, o seu Cedinho, que só gostava de ter a grana dele e ficar numa boa, bem de boa. Também, com o sol rachando! uma lua daquela!, como dizem, um sol pra cada um, como dizem.
Mais ao lado, seu Pedro estava lucrando com os sucos da fruta, com a água de coco; e o bar do Juca, mais ainda; uma gelada desce que desce bem mesmo num dia desses. Um dos senhores que estavam recostados nas cadeiras do seu Juca ergueu-se e seguiu para de encontro a Tato, perguntando quanto é
— que tá esse prato de morango?
— Tá quatro.
— Que isso, meu parceiro. Dá pra afrouxar um pouco a mão, não?
— Aí o senhor me quebra, meu patrão; que se eu molho sua mão, quem molha a minha? O palhaço faz todo mundo rir. Mas quem faz o palhaço rir?
— Pô, mas, quatro numa bandeja de morango, tu quebra minhas pernas. É que meu filho mais novo, o moleque pira numa vitamina de morango — E tu tá de mão fechada pro moleque e pra vitamina de morango dele. Mas, pra dar oito conto no litrão, tá bem.
Vender pra pobre é pedir esmola pra mendigo mesmo...
— Dá não, patrão.
— É que eu não tô com a quantia aqui toda. Vim ali do bar do Juca; foi-se tudo. E se eu não chego com o bagulho do moleque, a mulher fica zumbindo no ouvido da gente, sabe como, né. — Tato fez que sim, mas meio que foda-se; filho feio não tem pai, né isso? — Ó, eu tenho aqui... — O fulano meteu a mão no bolso e voltou para Tato com uma nota de dois reais. — Aqui, ó. Amanhã eu passo aqui e te pago a diferença, já é? Valeu?
Tato odiava porque odiava um caloteiro, gente que pede fiado, que diz valeu, quando pede fiado, que diz já é, valeu? e tudo mais, e estava bem a tempo de disser — disser ou dizer, eita porra esqueci — que não. Mas aí Tato, o Tatú, tii Tatão, o Moço, se lembrou do que a dona, aquela dona lá, contou pra ele na história dela, e repensou. Esse fulano estava bebendo que nem um carro viciado, que nem um bebum, um irresponsável? Sim. E ele havia esquecido o morango do filho — talvez o único motivo de ele ter saído de casa naquela tarde? Sim também. E agora, vai ver, ele só lembrara por causa da bronca que levaria da patroa, e ele não estava no clima de ouvir o “zumbido” naquela noite. É, provável, sim. Mas também era legal saber que, mesmo mamado, o fulano havia se lembrado do filho, do morango pra vitamina que ele gostava de tomar, provavelmente pela manhã, pela mesma manhã que, enquanto bebia a vitamina, Tato estaria descarregando outro caminhão.
Tato pensou nisso, em vista da história daquela dona, e também vislumbrando a hipotética situação daquele cara e cedeu, porque pelo menos ele estava tentando, estava sendo presente, estava tentando ser carinhoso e demonstrar atenção ao gosto do filho, por pressão da esposa ou por boa vontade, não importa; o que importa é fazer — algo que aqueles moleques de mais cedo talvez nem conseguissem conceber. E Tato imaginou que, se ao menos isso o marido dela tivesse feito, melhor. Talvez o ódio da mulher por ele fosse atenuado, fosse menor — uma mãe pode até suportar, a duras penas, ver vez ou outra a cara de fulano, se esse fulano tratar bem os filhos. Se bobear, até chama fulano pra entrar em casa novamente pra tomar uma água, pra comer um bolinho enquanto as crianças se arrumam, e pra onde que você vai levar eles mesmo, hein, Jorge?
— Tá bom, chefe, pega aí — disse Tato, entregando-lhe a bandeja em troca da metade do valor. E tudo bem. Havia coisas piores que dois reais a menos — a fome com roupas andrajosas, com a dos garotos de mais cedo, por exemplo —, e também havia coisas melhores, “e graças a Deus”, agradeceu Tato.
Às 19h, Tato recolheu-se a si e à sua tendinha, pois já não havia muito que fazer. Ele desmontou tudo, pondo o restante que sobrou num carrinho, e as madeiras da barraca em cima, ou embaixo, perto das rodas, e levou aqueles trecos para o depósito — com boa parte do resto ficando pelo lixo mesmo, não servindo para o dia seguinte, ainda mais fora de um refrigerador —, por fim, molhando a mão do seu Cedinho com o aluguel, a taxa, o faz-me-rir, o chame-como-quiser. E tudo bem. Amanhã ainda era dia, e haveria outro caminhão, e outras donas e moleques e fulano, e outras frutas e verduras e legumes e tudo baratinho pra senhora, freguesa, e o molho da salada vem de brinde, vem que tem, vem que tem, é só cuspir e comer.
22-23/12/2020
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