Capítulo 3 - Samantha
Penny se ajeita no lugar e coloca a régua na mesa. É um pouco assustador, tenho que admitir.
— Seu trauma é geometria?
Tenho certeza que o dom da Lexie também afetou seu cérebro, não que ela fosse das mais inteligentes antes disso. Sua pergunta sem sentido quebra o clima de morte que havia se instaurado.
— Um professor, para ser sincera, o pior professor — Penny respira profundamente — ele aplicava castigos físicos severos às meninas, sempre pedindo silêncio e boa postura. Um fio de cabelo solto no coque era motivo para ser atingida com uma dessas réguas.
— Caramba, Penny. E você nunca procurou ajuda? — Hanna coloca a mão sobre a dela para mostrar apoio.
— Eu era só uma criança, acho que por isso eu acabei assumindo tantas responsabilidades na faculdade, eu tenho que ser a melhor, senão, sinto que ele ainda pode me acertar com a régua.
Todas as outras estão de cabeça baixa, como um minuto de silêncio para a pequena Penelope White que já nem existe mais.
Me sento no braço do sofá, longe do círculo no chão que elas fizeram em torno da mesa de centro. Eu entendo a Hanna por querer se livrar do dom dela, mas as outras não. Bria pode chegar em qualquer lugar e ter tudo apenas pedindo por favor e Penny consegue falar com os mortos, podia ser famosa se quisesse.
— Eu fiquei trancada dentro de um fliperama quando era criança, eu devia ter uns cinco anos quando meus primos me levaram para jogar — Claire começou e logo vi a ficha prateada na sua mão — eu fui ao banheiro quando eles estavam saindo, eu achei que me veriam, mas quando saí, eles tinham partido e havia um homem trancando a porta por fora, ao invés de gritar, eu me escondi.
— Passou a noite toda lá?
— Não sei, Bria. Eu me lembro do mesmo homem destrancando a porta enquanto falava com meus pais, mas não sei quanto tempo passou. Nunca falei sobre isso, parece algo que eles simplesmente esqueceram — ela termina colocando a ficha ao lado da régua.
— Eu também já fiquei presa — Bria dá uma breve olhada para a irmã mais nova — na primavera, quando eu tinha oito anos, fomos acampar em uma floresta próxima de casa. Lexie quis brincar de esconde-esconde e era a minha vez de esconder.
— Eu sou dois anos mais nova, só pra vocês saberem. Não tive culpa de nada.
— Eu não disse que teve. Acontece que eu entrei em um tronco de árvore oco e senti algo passar nas minhas costas antes de me encolher e virar para a entrada do tronco. Era um urso pardo. Ele quase me pegou, depois ficou tentando enfiar a pata enquanto eu me encolhia e gritava.
— Ele te arranhou?
— Não, por muito pouco e foi muito rápido também, meu pai atirou nele e o urso ficou lá, caído na entrada, com seus olhos abertos sinistros. Desde então, nunca mais entrei em nenhuma floresta ou bosque.
— Você quase foi comida por um urso e tinha medo de ets? — pergunto como forma de quebrar o clima uma segunda vez, o que funciona porque todas estão rindo.
Brianna dá de ombros
— Não tem ursos em qualquer lugar.
— Eu posso falar agora? — apesar das suas palavras sutis, Olivia assumiu uma postura de superioridade nos últimos meses. Tanto que não espera que alguém responda antes de continuar — não é bem um acontecimento, mas um lugar na minha infância. A casa da minha tia-avó, onde eu era obrigada a ficar nas férias escolares. E ela tinha um monte de gatos, eram enormes e muito ariscos, eu tinha que ficar sentada no sofá o tempo todo segurando o novelo de lã enquanto ela tricotava, com medo de ser atacada pelos felinos.
Olivia jogou um rolo de lã vermelha sobre a mesa e esse caiu perfeitamente alinhado com as outras coisas, me fazendo revirar os olhos.
— Hanna, o que você trouxe?
Hanna deu uma risada histérica quando ouviu a pergunta de Claire.
— O destino é mesmo um filho da puta sádico — ela riu outra vez enquanto tirava um bisturi do bolso interno da capa.
Acho que agora entendemos o humor, porque estamos rindo juntas.
— Eu fiquei muito doente quando era pequena e passei muito tempo no hospital, com médicos me furando e cercando a maca, o tempo inteiro.
— Sinto muito, Hanna — dessa vez era ela quem estava sendo amparada por Bria.
— Eu estou bem. Lexie, sua vez.
— Tá, mas vocês já sabem da história. O cachorro...
— Você foi mordida, isso não é um trauma —Alicia bate com a mão espalmada na mesa, derrubando os objetos que precisam ser recolhidos, exceto pelo novelo da Olivia —eu disse que precisava ser um medo profundo e enraizado, algo forte, que domina a vida de vocês. É isso que ele quer.
— Ele quer nossos medos?
— Nós não estamos fazendo um ritual para um demônio qualquer. Helder é um leviatã e sim, ele se alimenta dos traumas das pessoas.
Lexie fecha a cara e se levanta em um salto, rapidamente andando até a cozinha, ela enche o copo de água e volta, deixando-o sobre a mesa. Ela não fala, mas seu olhar demora no rosto de Bria.
— Não foi culpa minha.
— O urso também não foi culpa minha — Lexie respira fundo — eu me afoguei quando tinha seis anos, fiquei presa em algo e não conseguia subir. Sempre achei que sereias haviam me salvado no último segundo.
— Certo, Alicia. E você? — Claire pergunta com voz calma.
Alicia coloca um prego enorme e enferrujado na mesa e se senta.
— O que isso quer dizer? — pergunto um pouco mais acusadora.
— Vamos começar.
— Ah, Alicia — Hanna resmunga acompanhada pelas outras — todas nós contamos.
— E vocês acham que eu vou fazer parte dessa pequena sessão de terapia? Vocês não são minhas amigas, estamos aqui por Helder e se algo der errado...
— Algo pode dar errado? — Bria arregala os olhos.
— Não vamos desistir agora, vai dar certo — Olívia diz mais confiante, claro que para ela tudo dá certo.
— Está ficando tarde, deem as mãos — Alicia apanha as mãos de Hanna e Olívia e logo o círculo se forma em torno da mesa, todas ajoelhadas.
Respiro profundamente, sendo a única a ficar de fora. Me sento na bancada com a garrafa de vinho enquanto elas olham para cima, o céu escuro, marcado por uma única bola iluminada logo acima da claraboia, servindo de moldura para a lua bizarra.
— Tem algo errado — ouço Lexie cochichar para Olívia, logo que Alicia começa a entoar o cântico.
É simples, apenas vogais intercaladas, logo, até eu estou entoando mentalmente.
Uma ansiedade palpita no meu peito, por fora, sou apenas a "não bruxa" observando o pequeno ritual satânico acontecendo na sala. Mas por dentro, há tanta apreensão e medo.
— Tem algo errado — a mesma frase, agora dita por Claire. Vindas de uma vidente perfeita, as palavras tem um efeito diferente.
O canto cessa, todas se olham em silêncio e segundos depois, a mesa e tudo que há em cima dela começa a chacoalhar violentamente.
Alicia é tão rápida pegando as velas que duas delas se apagam, restando apenas a terceira. Há gritos e desespero.
— Alicia, o que está havendo? — pergunta Bria enquanto tenta proteger Hanna para que nada a atinja.
Até então, o novelo era a única coisa firme sobre a mesa, dançando sem nunca cair. Mas agora ele tomba.
A mesa para e todas ficam quietas, acompanhando com os olhos, o bolo de lã rolar pela madeira e cair no chão, indo parar no curto e escuro lavabo, o azul anis sumindo na escuridão.
Então, o som mais assustador que já ouvi, como uma sirene fina e baixa que atrai os olhos de todas para o alto, eu me aproximo, lentamente, deslizando pela sala a fim de olhar pela claraboia.
A lua está vermelha.
— Corram — a voz de Alicia está baixa e sem nenhuma emoção.
Seu tom sem urgência faz com que demoremos muito para agir. Alguns segundos e todas estão se levantando, na mesma hora em que os armários se abrem com violência, assim como todas as portas e forças invisíveis começam a arrastar cada uma para cantos diferentes da cabana.
Bria é puxada pelas escadas acima enquanto chama pela irmã e posso ver Claire estender a mão em pedido de socorro logo antes da porta do banheiro se fechar.
Me encolho encostada na mesa de centro, apavorada, uma lágrima escorre do meu rosto.
Quando os gritos começam a cessar, olho para Alicia, agarrada no batente da porta de entrada, ódio latente em seus olhos.
— O que você fez?
Suas unhas arrancam lascas de madeira e ela some, seu grito ecoando até longe.
Meu coração afunda no peito quando percebo que estou sozinha, no silêncio e escuro, sem uma única diferença em mim, chego até a me sentir ainda menos bruxa.
Me levanto devagar. Não deu certo.
Corro para fora, olhando em volta, para a entrada, lago, floresta. Não há nada.
— Você prometeu — grito tão forte que minha garganta doi, caio de joelhos, em prantos, agora mais baixo e suplicante — você prometeu — sussurro.
Então o vento e uma leve sensação na minha nuca.
Eu não estou sozinha.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro