PARTE I [NARRATIVAS]1. Pontos de vista
Agosto de 2020.
Anderson
Minha esposa é uma força da natureza. Mas, também, de muitos modos, uma criança. A natureza e as crianças têm algo em comum. Podem ser imprevisíveis e intensas. Em seu modo caótico, Gia me amava e demonstrava isso de todas as formas possíveis, em meio a sua ingenuidade, impulsividade, inconsequência... E paixão.
Ela não queria que eu me preocupasse; mas, eu me preocupava. Aliás, preocupar–me é o que eu fazia de melhor. Sempre fui o alicerce, o porto seguro para o qual Gia voltava, depois de suas tempestades. Agora, ela cria que os papéis teriam sido invertidos. Como se situações como essa, por mais difíceis que sejam, possam alterar ou abalar as convicções de um homem como eu. Concordo que a adversidade muitas vezes revela qualidades desconhecidas, uma força antes ignorada; porém, eu não mudaria por causa da doença. E duvidava que Gia pudesse deixar de ser quem era. O que me trazia de volta ao foco da minha preocupação: Quem irá cuidar dela se eu me for...?
Gia ficava fazendo gracinhas para me distrair do tédio e do peso de minha nova condição. Bem, não tão nova assim, já que eu vinha trilhando esse caminho há algum tempo. A questão era que, agora, iríamos começar uma nova e tortuosa etapa.
Estávamos na estrada desde cedo. Deveríamos alcançar nosso destino em breve. O Centro Oncológico São Francisco, hospital de referência para o câncer, ficava na capital, no extremo leste do Estado (e nós morávamos no extremo oeste).
Bocejei e troquei a mão que segurava o volante, flexionando os dedos. Sou destro, assim, achei por bem descansar a mão direita, sabendo que vou precisar reaprender a me virar com a esquerda, depois da cirurgia. Senti os dedos suaves de minha es– posa se entrelaçarem aos meus, e virei a cabeça para fitar aqueles olhos límpidos, repletos de ternura e vulnerabilidade.
Ela deu o melhor de si para manter o sorriso radiante. Não era de longe o sorriso que me cativou quando a conheci – o sorriso de Gia contagiava e iluminava o mundo inteiro. Agora, porém, seu brilho vacilava.
Ao nosso redor, os pinheiros deram lugar às casas. Estávamos deixando a Serra para trás e costeando as cidades litorâneas.
–Vai ficar tudo bem, querida – disse eu, abafando um suspiro resignado. Pretendi soar confiante, por ela.
Os lábios de Gia tremeram, mal sustentando o sorriso. Ela não respondeu, mas acenou com a cabeça corajosamente.
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Gia
Como eu amava aquele homem!
Ele era o meu porto seguro. O meu centro de equilíbrio. O universo calmo e perpétuo pelo qual os corpos celestes viajam. Já nas palavras de meu marido, eu poderia ser comparada a: "uma supernova, explodindo no espaço sideral. Os resquícios da explosão se propagam por milhões de anos–luz; acalmando apenas quando os raios se diluem nas atmosferas de planetas habitados, ou não".
No fundo, no fundo, meu querido esposo era um romântico.
Como, aliás, penso que deva ser todo astrônomo amador.
Na visão de um homem de sentimentos profundos, com ele,
eu era uma "supernova que nunca se extingue". Comparações como esta denotavam a inconstância e o desassossego da minha personalidade. Já me julguei incapaz de me prender por muito tempo a uma única pessoa, a um só lugar, e a uma atividade exclusiva. Muito menos, de me deixar prender por uma aliança de casamento. Bem, isso foi antes de conhecer o amor da minha vida.
Cinco anos depois, cá estávamos, casados e felizes, comemorando bodas de madeira. Só que havia uma sombra em nosso horizonte conjugal. Uma sombra a ameaçar a nossa felicidade.
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No começo do relacionamento, nós não planejávamos ter filhos. Não tão cedo. Depois do diagnóstico, ainda mantivemos nossa posição. Mas desde as primeiras químios, o arrependi– mento de termos adiado a decisão, pesou... O tempo passa e não volta atrás, para que possamos mudar nossas escolhas.
Tudo começou no terceiro ou quarto ano de casamento. Anderson, sempre tão ativo, passou a sentir–se cansado sem razão aparente. Depois de vários exames, descobrimos o pesadelo desenhando–se em nossas vidas. Um câncer agressivo – com metástases. Não guardei os detalhes do diagnóstico, afinal, não entendia dessas coisas. Mas entendi que meu marido precisava se submeter a um tratamento quimioterápico e possivelmente, uma intervenção cirúrgica. Com urgência.
A ideia era diminuir o câncer e operá–lo. Só que a químio não foi bem sucedida, não como o desejado. As medicações foram alteradas. Anderson passou muito mal, perdeu o cabelo, e seu humor começou a oscilar (um pouco). Eu digo um pouco, porque ele fazia de tudo para se controlar e não me deixar saber o que realmente estava sentindo.
A mãe dele, Dona Célia, ficou inconsolável. Tornou–se super– protetora. Isso deixou Anderson cada vez mais acabrunhado. Não com ela, ou comigo, mas com a doença e a situação. Ele não queria nos causar qualquer sofrimento, ou incômodo. Achava que não deveria dividir conosco a sua pesada carga.
Meu marido costumava ser um sujeito muito calado e tranquilo; mas numa situação dessas, duvido que houvesse serenidade por baixo de sua aparente resignação. Eu me debatia entre a consciência de que ele precisava de espaço, e o impulso quase incontrolável de protegê–lo e mimá–lo. Contudo, embora não conseguisse adivinhar o que lhe passava no íntimo, uma coisa eu tinha praticamente certeza: Anderson não queria que mudássemos a rotina para agradá–lo.
Eu só queria que ele aceitasse a nossa ajuda. Que compartilhasse o que quer que estivesse sentindo ou pensando. O silêncio dele era muito doloroso para mim. Mais difícil de suportar do que se ele esperneasse, chorasse ou agredisse; porque eu não sabia o que fazer ou o que dizer diante de tanto estoicismo.
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Erasmo
César era a fortaleza da família, não eu...
Sim, ele devia estar tão devastado quanto todos nós. A diferença residia no modo de reação. César conduzia a vida e os problemas como todos na família esperavam que fizesse.
Se fosse para refletir a respeito, as cobranças sobre ele eram maiores. E eu me sentia envergonhado pelo alívio que isso me causava. Isto é, pelo fato de os holofotes não estarem sobre mim. Porque eu não fazia ideia de como lidar com o que estava posto, quem diria, com as obrigações e compromissos familiares.
O que estava posto: nossa mãe tinha câncer, ou algo do tipo. Não entendi direito. Era demais para suportar, sequer raciocinar. Eu costumava ser um cara calmo, de boa... Mas desde que recebi a notícia, tive vontade de fugir para bem longe e só voltar depois que César tivesse resolvido tudo.
Depois que as coisas voltassem a ser como sempre foram.
Eu e meu irmão trabalhamos na Construção Civil, num pequeno negócio de família. O dia em que recebi a notícia, nunca iria esquecer, estávamos em um canteiro de obras. O caos auditivo que sempre domina um ambiente assim – os sons de britadeiras, guindastes e misturadores simplesmente desapareceram. Não ouvi mais nada do que acontecia ao redor, exceto um zumbido crescente em meus ouvidos.
E quando o mundo e o meu foco de atenção voltaram a se encaixar, ouvi a voz de meu irmão ao celular, falando sobre o diagnóstico como quem fala do clima. A incredulidade tomou conta de mim. Ele passou a discorrer sobre os planos em andamento, a fim de solucionar o problema. Disse algo a respeito de um cisto estrambótico, que não era propriamente um câncer, mas cujo es– trago poderia ser grande, posto que estava alojado na veia aorta do coração de nossa adorada mãezinha.
Cirurgia de emergência programada. Prognóstico pouco favorável.
Eu tive dificuldade para acompanhar após o "pouco favorável", mas verdade seja dita! Eu me esforcei, pois se precisasse me mexer, teria que saber "como" e "porquê". Pelo que entendi, precisávamos correr com os exames pré–operatórios para que ela pudesse ser internada o quanto antes.
– Quem vai contar pro pai? – perguntei, assim que ele se calou.
– Ele já sabe... – César fez uma pausa. – Foi o cardiologista dele quem descobriu a situação. Se não fosse pelo Dr. Bernardo... – escutei o suspiro, antes que ele continuasse: – Eles estão tentando encaixar a mãe na fila de cirurgia do hospital de referência.
–É particular? – perguntei, querendo resolver tudo rápido.
– Não, mesmo que fosse, não temos como bancar.
Como não?
– Quanto custa?
– Entre quarenta e sessenta mil reais. Fora a instrumentação, os medicamentos e o tratamento posterior... E sem contar o transporte e hospedagem para quem tiver que acompanhar e toda a logística da coisa...
Eu murchei feito um balão de gás.
– SUS... Alguma chance?
Ele deu uma risada sem humor. – Seria ótimo, não acha? Que nossa mãe aguentasse esperar na fila...
Ele fez uma pausa. Meu coração acelerava descontrolado a cada alternativa barrada.
–Vamos contar com a boa vontade do médico, que conhece o cirurgião do hospital – prosseguiu o meu irmão, ansioso para mostrar o lado positivo. – Se encaixarem a nossa mãe, então, ela terá uma chance de vida. Quanto mais demorar...
Bem, até agora, não vi o lado positivo.
–Vamos vender nossos carros, – comecei a dizer – vamos vender...
–Calma! Se der tudo certo através do médico, não teremos que passar o chapéu entre os parentes. O plano de saúde do papai irá cobrir parte dos custos, eu acho... Não sei! Não sei! – Ele ficou nervoso.
– Como não sabe? – Se ele é o pilar da família. O cara que sabe tudo.
Percebendo o meu tom indignado, César sugeriu:
– Se quiser ir até a central do Plano de Saúde, com as requisições e exames da mamãe, fique a vontade!
– E fazer o quê?
– Ora, dar entrada na papelada!
– Não, eu não sei lidar com isso.
– Então, não me venha com o seu jeito crítico e superior. Quando eu for até lá, saberei o que dá ou não dá para fazer.
Eu não gostava de situações mal resolvidas, ou indecisas, ainda mais quando a vida de nossa mãe estava em risco.
– Quando saberemos? – perguntei, sentindo minha boca seca.
– Se tudo der certo, ainda hoje.
– Graças a Deus.
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Kakau
Eu não sabia muito bem como se deu o processo diagnóstico. Só sabia o queos médicos decidiram fazer, depois da bateria de exames aos quais mamãe teve que se submeter. Papai estava transtornado com tudo aquilo. Mamãe estava muito nervosa, deprimida e toda a família ficou abalada. Porque ela era o nosso pilar emocional. Tá certo que o César era a força motriz, o filho que resolvia os problemas; mas, até ele retirava a sua força de algum lugar. E esse lugar era a mamãe.
Se algo lhe acontecesse, eu nem sei o que seria da gente.
Meu irmão César frequentemente me chamava de "filhinha da mamãe"... Erasmo concordava com ele... E meu noivo Norberto também, só que apenas pelas minhas costas. E eu mostrava a língua para os três. Sou a filha caçula, a mais paparicada pelos meus pais. Ao longo dos anos, desenvolvi uma forma especial e infalível de lidar com a mamãe. Afinal, sou o seu Xodó. Agora, o César e o Erasmo contavam com o meu jeitinho de envolver a mamãe, sem que ela perceba, para tornar a sua estadia no hospital o menos traumática possível.
Nós três combinamos que iríamos nos revezar no papel de acompanhante hospitalar, durante a internação dela. César seria o primeiro a acompanhá–la até o centro cirúrgico e estaria lá, quando acordasse. Eu assumiria logo depois, durante a recuperação e passaria as noites com ela. Erasmo ficaria todos os dias.
Graças a Deus, nós estávamos unidos nessa. Eu ficava só imaginando a situação dos pacientes que não tinham alguém para cuidar deles, ou os acompanhantes que não tinham ninguém para ajudá–los e arcavam com tudo sozinhos.
Não era o nosso caso. Nós três abraçamos o compromisso.
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Assim que cheguei, César zombou de mim, dizendo que eu não iria aguentar. Que era melhor deixá–lo fazer o meu turno e depois, pular direto para o Erasmo. Mas eu protestei, veemente– mente. Não permitiria que minha mãezinha ficasse sem mim, no hospital. Ela sentia muito a minha falta. Ele ainda tentou me dissuadir. Não sei o que aconteceu para que mudasse de ideia quanto a minha participação. Apenas opinou que eu era mimada demais e que iria estranhar o desconforto do hospital. Mas eu provaria a ele que estava enganado. Tudo o que me importava era a mamãe.
O resto era resto. Eu estava preparada para o que desse e viesse.
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A prática não foi exatamente como eu imaginava. Descobri, nesses últimos dias, que estava "Perdidinha da Silva". Não fazia ideia do que significava ser uma acompanhante hospitalar. Para começo de conversa, achei que pudesse deixar o quarto mais acolhedor. Levei almofadas coloridas, o roupão preferido da mamãe, e alguns mimos que eu tinha certeza de que ela iria querer por perto.
Contudo, chegando ao hospital, a maioria das coisas que eu trouxe foram barradas pelo pessoal. Inclusive a maquiagem! Norberto teve que levar tudo de volta.
E agora que estava lá dentro, sozinha com a mamãe, eu descobria como as coisas podiam ser estranhas. A primeira coisa que me chamou a atenção foi o desconforto da poltrona. A gente não tinha nem um travesseiro, e cobertor para se proteger do frio da noite. Se ao menos tivessem me deixado ficar com as almofadas, agora eu não teria esse torcicolo persistente. Eu nem sabia que tinha problema de coluna, até experimentar aquela poltrona horrorosa.
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César
Eles me achavam forte, imbatível. Alguém a quem se procura quando precisa de ajuda.
Deus... Como eu estava cansado disso. Alguns dizem que é fácil não assumir tal papel; ilustram o problema com aquela baboseira toda, do tipo "discipline a mente em dez passos", etc... O capim que verga com o vento; o sábio que rejeita o presente... Blá, blá, blá!
Fato é que... Fica difícil de explicar, ainda mais para quem não sofre na pele. A maioria das pessoas minimiza os problemas, talvez, na tentativa de não olhar para eles. No auge do teu desabafo, quando você está vulnerável, acabam repetindo a lenga–lenga: "pelo menos, você tem uma família amorosa"; "pelo menos, vocês não vivem debaixo da ponte"; "pelo menos, você não é um refugiado sírio atravessando a fronteira para escapar dos bombardeios"; "pelo menos"...
Acho que eu estava mais cheio dos "pelo menos", do que da situação em si.
Acontece que muitas vezes, você não tem escolha. Não pode simplesmente rejeitar o presente ou vergar com o vento... Precisa, sim, assumir o papel de fortaleza da família. Do contrário, a família colapsa.
Como naquele livro "Razão e Sensibilidade", duas irmãs – a racional e a impulsiva. Minha mãe diria que Jane Austen não seria um bom exemplo para um cara como eu, e sim, "Quem mexeu no meu Queijo?"
Mais um papel atribuído.
Quer saber? Estou divagando aqui. Enfim...
Há situações, nas quais, alguém está enxergando o problema de maneira objetiva e precisa tomar a iniciativa; enquanto os demais arrancam os cabelos e se jogam no chão. E você pre– cisa assumir a dianteira, mesmo que esteja morrendo de medo. Mesmo que não saiba o que fazer. Mesmo que não tenha alguém para lamber as suas feridas, depois de uma batalha sangrenta.
Esse alguém era eu.
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Não faz muito tempo, papai se aposentou e eu tive que as– sumir a presidência de nossa pequena firma de construção. Meu irmão Erasmo estava trabalhando conosco desde que se formou, mas sua utilidade para a empresa não chegava nem perto de meus mais antigos funcionários. Mas ele era o meu irmão.
E eu o amava, mesmo sendo um garoto fútil e sem grande serventia. Mas família não era sobre serventia, certo? Deixe o calculismo para as outras áreas da vida... Família era sobre laços estreitos de amor, sangue e identidade. Se não pudéssemos contar uns com os outros, incondicionalmente – e independente de nossas expectativas pessoais, ou profissionais –, então, para quê existiriam as famílias?
Kakau, a caçula, não era muito diferente. A princesinha da mamãe. Nossos pais se habituaram a mimar os dois e a cobrar de mim as atribuições de um capitão de fragata. Era isso que eu fazia naquela família. Conduzia o barco por entre o mar revolto.
Quando o mar ficava calmo, eles se esqueciam um pouco de mim. Não havia chocolates quentes à noite, depois de um dia de trabalho duro. Não havia preocupação pelo meu bem estar. Isso porque eu aparentemente estava sempre bem. Eu era a rocha.
Mas nossa mãe era o centro gravitacional, pela qual esta rocha orbitava. Pelo qual todos nós orbitamos.
Quando soube do diagnóstico, odiei como nunca ser aquele que resolve os problemas. Quis desaparecer. Para bem longe. Qualquer lugar servia. Desde que eu não visse ou ouvisse falar de ninguém. Desde que eu, quando voltasse, encontrasse tudo como antes.
Daí, veio a culpa. Eu me senti o pior dos filhos. Indigno do amor que mamãe sempre me dedicou, mesmo que atribuindo–me um papel ou valor diferente dos outros dois.
Mas a culpa veio e foi embora muito rápido. Desapareceu, diante do medo que se instalou em mim e este – o medo – não foi mais embora. Nem por um segundo.
O medo de perder a mamãe.
Medo de falhar... De que nada do que eu fizesse fosse o bastante para que mamãe continuasse viva neste mundo, iluminando os nossos mundos.
Desde que papai me procurou, em lágrimas, eu passei por uma procissão de péssimos estados de espírito: raiva, confusão, culpa, medo, desespero.
Para resumir, eu me sentia miserável.
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Luísa
Na televisão, em programas de cantores, geralmente aquele que abre as guelas antes, durante e depois da cantoria, é quem ganha a simpatia do público e dos jurados. Tem gente que diz: "Quem não chora, não mama". Eu não gosto muito desse lance de "ventilar" os momentos mais marcantes da minha vida, muito menos, os meus infortúnios.
Não consigo me apresentar como alguém digno de piedade. Aprendi desde cedo a ser forte, a não me lamentar, a agir quando era preciso agir, e a não chorar em público. Odiava demonstrar vulnerabilidade na frente dos outros. Era... Humilhante. Porque, daí, eu me sentia culpada por achar que não merecia compaixão. Posar de "a vítima" me faria sentir como uma impostora. Então, eu não falava. Eu não tinha voz, nem para mim mesma.
Essa visão era algo que eu vinha mudando, com o passar do tempo. Forcei–me a olhar sob um novo prisma para os momentos mais dolorosos da minha vida.
E o mais doloroso deles era saber que eu não fui bem–vinda ao mundo... Nem pelo meu pai, que já era casado e tinha uma família. Nem pela minha mãe, que teve um caso com ele, sem imaginar que fosse engravidar.
Surpresa, surpresa! Engravidou! Ficou muito "p" da vida, e me teve como quem tem que lidar com um apêndice, um agregado, um anexo. Algo que você tem, mas não tem. Algo que você pode colocar para trás, quando não quer por perto, ou para frente, quando quer ostentar a maternidade.
Então... Minha mãe era minha mãe, quando queria posar para amigos, familiares e conhecidos. Mas não era minha mãe, quando achava que eu fosse dar algum trabalho. Como, por exemplo, quando precisei de um dentista aos oito anos de idade, porque uma cárie foi até a raiz do dente. Ou quando necessitei de atendimento médico de urgência, por uma amidalite, ou gripe forte.
Minha mãe nunca ficou comigo nos hospitais, quando precisei dela. Eu dependia dos acompanhantes dos outros pacientes, caso tivesse sede e quisesse tomar um gole de água, ou precisasse de ajuda para ir ao banheiro. Ela vinha me ver, claro, como quem visita um acamado conhecido seu, depois, ia embora.
Desde os treze anos, fui treinada para resolver problemas. Minha mãe sempre dizia que eu deveria ser autossuficiente; nunca depender de ninguém; e fazer tudo sozinha. Com a chegada da fase adulta, acabei descobrindo que ela me treinou para ser sua empregada, não para ser independente.
Eu fazia tudo na casa. Minha mãe passava o dia assistindo televisão, indo ao shopping, comprando e gastando até que as dívidas viessem bater à nossa porta. Daí, eu me desdobrava para pagá–las, e me enterrava em dívidas também, por causa disso.
Ela achava certo. Afinal, se teve que me dar a luz na marra, eu deveria servir para alguma coisa. Ou seja, sustentar os seus luxos, limpar a sua sujeira, e cuidar dos seus animais. Chegou ao ponto de controlar o meu salário e o quanto eu gastava comigo mesma. A prioridade eram os gastos dela, não os meus.
Todos os caras que conheci, mamãe conseguiu espantar. Amigos e amigas também. De modo que eu vivi parte da adolescência, sozinha. Sem dinheiro para ter o meu próprio canto. Presa por um compromisso de cuidar de uma mãe que se com– portava como uma adolescente.
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Ainda jovem, Dona Bete teve o primeiro câncer. Eu tinha quinze anos, na época, quando fui cuidar dela no hospital. Fui sua acompanhante durante a internação e resolvi os problemas da casa. Depois, quando eu estava com vinte anos, ela teve o segundo câncer na mesma mama onde fizeram a cirurgia de quadrantectomia (retirada de parte da mama). No segundo procedimento, a mama foi completamente retirada, e ela passou a usar uma prótese. Aos vinte e oito anos, eu cuidei dela quando teve o terceiro câncer, na outra mama, muito mais agressivo que o câncer anterior.
A mama foi completamente retirada. Ela passou por um rigoroso tratamento quimioterápico e radioterápico.
Aos trinta e dois anos, eu iria cuidar dela em seu quarto câncer, agora de pulmão. Minha mãe estava com sessenta e um anos. Provavelmente, este câncer foi uma herança mais de seus anos como fumante, do que da genética da família.
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Teria início uma nova via crucis... Minha mãe sabia ser uma péssima paciente. Se já exigia de tudo, no dia a dia – com plateia, num hospital, ficaria ainda pior. Ela e o Seu Dantas (o paciente do quarto ao lado) bem que poderiam dar as mãos e irem juntos rumo ao pôr–do–sol.
Assim caminhava a humanidade e eu, com a culpa que nunca me deixava, de não ser a filha ideal que Dona Bete queria na vida dela, mas para quem sempre recorria quando precisava.
Custei a perceber as manipulações. Eu tinha uma visão de maternidade sagrada: as mães sempre amam os filhos. É impossível que uma mãe queira o mal de um filho. No entanto, esse ideal não era para todo mundo.
Acho que vou parando por aqui. A minha história de vida não é uma história bonita, que as pessoas gostariam de ler. É a história de uma pessoa que viveu anulada, sem voz, sem vez, sem ser a prioridade de ninguém. Nem na infância, nem na adolescência, muito menos na fase adulta.
Hoje reconheço que eu me permiti viver assim. Acreditei que merecia menos do que realmente merecia. E agora que começava a ver isso, não me importava mais se iria parecer uma bruxa por querer dar prioridade às minhas necessidades, do que às de minha mãe. Isso não significava que doesse menos. A indiferença, o desinteresse, as reclamações. Claro que doíam e iriam sempre doer... Mas eu não mais me permitiria anular.
Não pedi para nascer e não nasci para ser, como minha mãe não se cansava de me dizer: "a sua empregadinha". Não que eu pretendesse deixar de cumprir com as obrigações de uma filha. Longe disso.
No entanto, se ninguém se preocupava com a minha saúde, eu teria que fazê–lo. Se ninguém mais se preocupava se tenho ou não um momento de divertimento, alegria, ou distração, eu teria que fazê–lo. Se ninguém mais se preocupava se tenho alegrias ou tristezas, eu teria que fazê–lo.
Se eu não me amasse, ninguém mais iria me amar. No meu caso, nunca uma filosofia de botequim se encaixou tão perfeita– mente. Porque eu não tinha uma família com a qual pudesse con– tar. Eu só tinha a mim mesma.
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Andreia
Alguns me consideram o tipo da garota boazinha. Aquela da qual as pessoas querem ser amigas, nunca a melhor amiga, ou a namorada, ou a amante... Mas aquela amiga prestativa, conveniente, confiável... Com quem se pode contar. Provavelmente, algum dia, alguém acharia que sou a esposa ideal.
Às vezes, eu me ressentia de ser vista assim, ou em permitir que me vissem nesse papel. Mas não era o caso, agora. Seu Josué precisava de mim. Ponto.
Era tudo o que importava. Para ele, eu seria prestativa e confiável. Ele era e sempre seria o meu pai do coração.
Não aquele que me gerou, mas... O pai que elegi e que me elegeu.
O homem que contribuiu com seu esperma para a minha concepção, não quis ter nada a ver comigo. Quando mamãe morreu, foi o meu padrinho, Seu Josué, quem me acolheu e criou como se fosse sua filha. Ele me incentivou a me tornar a adulta que sou. Graças ao meu padrinho, eu tinha uma referência familiar positiva.
Quando soube que ele, a fortaleza que conheci (e para a qual eu corria sempre que precisava) teria que se operar devido a um tumor na cartilagem do joelho, próximo do osso da tíbia, meu coração afundou no peito.
O médico disse que o prognóstico era favorável, pois se tra– tava de um câncer de desenvolvimento lento, porém, ele precisava ser operado.
Nenhum dos filhos se predispôs a ficar com ele no hospital. A internação não aconteceria sem a presença de um acompanhante hospitalar. Os filhos tinham uma porção de compromissos e acredito que, no fundo, sabiam que eu tomaria a iniciativa.
Meu padrinho detestava se impor à vida das pessoas. Fosse a minha ou a de seus filhos biológicos. Por isso, ele se calou sobre as dificuldades da internação. Mas, quando eu descobri, não hesitei em largar tudo para atendê–lo. Na verdade, o problema de internação era o de menos.
Mais tarde eu descobriria que ele vendeu o casebre em que morava para bancar a cirurgia e o tratamento (o qual envolvia procedimentos complementares, fisioterapêuticos, que não estavam disponíveis a não ser particular).
O meu padrinho era do tipo que pensava num problema de cada vez, sabe? Eu ainda não decidi se, neste caso, a sua forma de pensar deveria ser considerada positiva ou exasperante. Contudo, se você coloca a questão de um tumor em perspectiva, a prioridade é o tempo que se leva para realizar o procedimento adequado.
Seu Josué ficou sem casa, mas só pensaria no problema da moradia depois. Se eu o conhecia bem, uma coisa era certa: ele não iria deixar que ninguém assumisse o controle de seus assuntos. Só esperava que, quando deixasse o hospital, ele aceitasse morar comigo.
Eu tinha uma casinha. Pagava o aluguel por meio de um trabalho mal remunerado, e não muito seguro. No entanto, não hesitei em pedir um afastamento a fim de acompanhá–lo. Como nenhum dos filhos se mexesse para ficar com o pai, passei no trabalho, a fim de dar satisfações.
Quando estive lá, senti que, por mais que desse conta do meu trabalho, mesmo à distância, e mesmo que todos alegassem compreender a minha situação... O clima não estava muito favorável com a gerente, Carolina. Especialmente por um comentário que me deixou indignada: "Ele nem é o seu pai de verdade".
Deus... Ele foi mais pai do que qualquer outro poderia ter sido. Como alguém de fora, que não sabia dos fatos, ousava dizer algo assim? Mas eu tive que engolir, a fim de não piorar ainda mais minha situação no emprego.
Por sorte, eu tinha uma supervisora muito boa, que fazia o "meio de campo" com a gerente. Só que mesmo a supervisora estava cansada de aturar os desmandos e a irresponsabilidade na gestão, bem como, a liderança tóxica de Carolina, que era agressiva e manipuladora com os funcionários. Ela desejava estar em todas as ações que considerava pessoalmente lucrativas, mas não queria fazer o serviço para o qual estava sendo paga – gerenciar o setor.
Para mascarar a falta de iniciativa, ela colocou uma assessora dedo duro, a Rosa Cristina, paga basicamente para sentar junto à janela e espionar a vida dos funcionários. Para as duas, os demais colegas eram apenas peças de tabuleiro a serem usados conforme sua conveniência.
Ela chegou a invocar com o cabideiro da minha supervisora, porque queria mostrar quem mandava.
Num clima como este, repleto de mesquinharias e disputas, eu não podia esperar boas coisas em relação ao meu afasta– mento. Neste caso, acho que eu seguiria o exemplo do meu padrinho...
Para não pirar, melhor que eu lidasse com um problema de cada vez.
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O hospital ficava na capital, e eu me vi obrigada a me dividir entre a pequena cidade pesqueira, onde morava, e o local da internação. Isso, porque precisava tratar dos meus bichinhos de estimação. Animais que recolhi da rua, em situação de extrema vulnerabilidade. Contava com a vizinha para dar uma olhada neles, enquanto estava fora.
Eu ficava angustiada de me manter afastada e só vê–los de tempos em tempos.
Mesmo que Dona Odete fosse uma boa pessoa, confiável, eu não gostava desses acordos, em que a gente fica dependente dos outros... Nesse particular, talvez eu fosse mais parecida com o meu padrinho do que imaginava.
Com certeza, meus bichinhos estavam sofrendo com a minha ausência, mas eu rezava para que, ao menos, Dona Odete estivesse cumprindo com o que me prometeu. Isto é, de atendê-los adequadamente, com carinho e dedicação. Deixei um trocado para a compra das rações e torcia para que ela lhes fizesse um carinho de vez em quando.
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E cá estava eu, sentada numa poltrona cruel, virando as noites para atender o meu querido padrinho. Ele sentia muitas dores na perna, de onde o tumor foi removido. A equipe médica estava decidindo sobre químio, rádio, ambos e, no caso, quantas sessões. Também havia a possibilidade de uma segunda cirurgia, por conta da supressão de um nervo da perna. O que prolongaria a sua estadia no hospital.
Bem, eu ainda tinha algumas semanas pela frente, e esse tempo teria que servir para convencê–lo a morar comigo. Enquanto isso, realizava trabalho remoto, com a gerente respirando no meu cangote; e ligava para Dona Odete para saber das minhas "crianças".
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Plínio
Fiz de minha paixão pelo surf, algo rentável. Não, eu não era um surfista famoso, nem talentoso. Na verdade, eu era bem medíocre sobre as ondas. A questão é saber como fazer a diferença, junto aos outros surfistas.
Projetei minhas próprias pranchas, trabalhei na minha própria cera. E hoje, a empresa que criei exportava pranchas de surf e materiais esportivos. De rato de praia a executivo, a minha vida deu uma guinada de cento e oitenta graus. Tornou–se uma roda viva de trabalho duro.
Eu gostava assim.
O ápice do meu esforço estava se aproximando: minha empresa encontrava–se em vias de abrir uma filial na Austrália e de realizar uma lucrativa fusão de uma das minhas marcas com uma empresa conceituada do ramo, na Austrália – Dynamic Corporation.
Reuniões, pesquisas, viagens, papelada, legislação, e eu ato– lado até o pescoço no projeto. Então, veio a bomba.... O meu pai estava com câncer... O tumor crescendo em seu pulmão esquerdo. Um pulmão de fumante inveterado.
Ainda por cima diabético rebelde.
Ele precisou ser internado com uma semana de antecedência. O médico cirurgião esperava, com isso, controlar a diabete, impedir que se empanturrasse de doces e continuasse com o cigarro.
Deus... E minha vida, uma locomotiva a todo vapor. Como freá–la e acomodar isto?
Diziam que eu era capaz de fazer muitas coisas, de superar obstáculos que outros evitavam ou desistiam. Alguns me chamavam de empreendedor, criativo, imaginativo, até arrojado. Devo concordar, mas a notícia que recebi prometia superar todos os obstáculos que já enfrentei, para chegar onde cheguei.
Prometia ser uma provação emocional, acima de tudo.
Para a minha família, acho que era e sempre seria um zero à esquerda. Não importava o quanto fosse bem sucedido, ou quantos feitos tenha conquistado.
Eu era o filho errado. Nunca seria tão bom, tão merecedor das graças divinas, ou tão trabalhador quanto o Zeca – o filho certo.
À primeira vista, Zeca e eu formamos o clássico caso da ovelha negra versus o filho modelo. Mas quem nos conhecesse, saberia que nossa relação era mais complexa do que aquilo. Zeca cresceu mendigando a aprovação do nosso pai. Sua segurança e bem–estar eram alimentados diretamente pelo meu fracasso em agradar o velho.
Nosso pai gostava de ter esse controle total sobre ele. De ter o poder de comandar a vida dos filhos, fazendo–os competirem entre si.
Eu não quis viver nessa eterna corrida pela aprovação paterna. Deixei que os dois pensassem e fizessem o que bem en– tendessem. Na real, esgotei toda a minha filosofia de botequim para tentar entendê–los. A vida segue, e eu não perderia um minuto dela para lamentar o que não tive: um pai presente, ou que apenas me amasse, um irmão parceiro, uma família legal; enfim...
Em relação às situações mal resolvidas de uma família, temos que aceitar. Porque é o que é, entende? Cada um vê a situação do seu jeito e acha que o outro é quem está errado. Sendo assim... É preciso reunir toda a sua serenidade para aceitar o que você não pode mudar.
Ah, eu administrei bem a rejeição. Zeca era o preferido. Ponto final. E... Bem, eu não me deixaria aprisionar ou limitar pelas decepções e tristezas de meu genitor. Não deixaria que me atribuísse papéis estereotipados, nem rótulos.
Ao contrário dele, mamãe sempre me incentivou a abrir as asas e voar. No pouco do convívio que tivemos, olhando para trás, a imagem que carrego na lembrança evocava–me sensibilidade, gentileza e amor. Eu me perguntava, às vezes, como duas pessoas tão diferentes se uniram em matrimônio.
Desde a morte da mamãe – o nosso "sol de amor", a família se tornou algo escuro, pesado e desagradável. A lembrança dela ficou longínqua a tal ponto de me questionar, de vez em quando, se foi produto da imaginação de um garoto de seis anos.
Cresci, tornei–me um adulto acostumado à negatividade reinante; e mesmo estando habituado à desaprovação do meu velho para tudo o que eu fizesse... As vezes a ferida ainda sangrava.
Eu dizia para mim mesmo que não doía mais, só que não era verdade. Alguns dias eram menos difíceis do que outros. Apenas isso. E os dias menos difíceis tornaram–se o meu padrão de felicidade familiar.
Por tudo isso, eu me afastei do convívio tóxico. Fiz a minha vida e sentia–me bem com isso. Por outro lado, é difícil explicar, mas, eu ainda sentia um forte senso de compromisso em relação a eles. Não dava para ignorar quando um pai ou um irmão precisavam de ajuda... Mesmo que não reconhecessem, muito menos quisessem a minha intervenção.
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Ana Lúcia
Quando as pessoas perguntam: "O que você quer ser, quando crescer?" A maioria responde: médico, advogado, dentista (respostas de senso comum, dadas por jovens ambiciosos, porém, moderados e sensatos). Também há quem responda: cantor(a), ator/atriz, famoso(a), milionário(a), modelo(a), traficante, ou cônjuge de traficante (respostas de quem encara a fama como profissão, percebe?).
De um jeito ou de outro, a alavanca dos sonhos é ser valorizado, estimado, ter sucesso e dinheiro para fazer o que quiser. Mas, daí, de um jeito ou de outro, a vida real se interpõe à imaginação e aos sonhos de pessoas inconsequentes tanto quanto ponderadas.
Se você está em meio a uma realidade cuja gravidade puxa de volta ao chão... Sabe que a tenacidade será testada ao limite. Não importa o quão talentoso você seja.
Eu amava cantar desde pequena. Primeiro, com os artistas famosos que assistia na televisão. Meu karaokê improvisado. De– pois, na escola, com algumas aulas rudimentares por parte de uma professora de Artes contratada – e por ser contratada, ela não durou muito na escola.
Mas não foi a escola pública que matou o meu sonho, ou me desestimulou por não dar atenção ao talento... Na verdade, perdi todas as ilusões de um mundo cor de rosa, quando os abusos começaram. Quando meus peitos se desenvolveram e eu espichei.
O marido da minha mãe passou a me bolinar com onze anos. Coincidentemente, o primeiro ano em que fiquei menstruada. E o assédio foi se tornando algo cada vez mais ousado... Da maneira tradicional descrita pela literatura: primeiro com presentes, depois presentes e carinhos inapropriados, depois pre– sentes, carinhos inapropriados e estupro.
Fui estuprada cinco vezes. E eu me senti um lixo.
E eu fugi para nunca mais voltar, antes de completar doze anos.
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De lá para cá, minha vida foi uma sucessão de pessoas boas e pessoas ruins. Algumas me ajudaram, outras me prejudicaram. Como na vida de qualquer um. Se minha mãe foi atrás de mim? Não, ela não foi. Acredito que ela sabia de tudo, mas fingia não ver. E quando não foi atrás de mim, ela fez a sua escolha.
O resultado da minha vida foi que eu completei dezoito anos, comemorados com os demais moradores de rua. Cada qual, vivendo e convivendo com suas decisões. Alguns, por causa da droga, outros, porque por causa da droga, não queriam prejudicar suas famílias, e outros simplesmente porque não tiveram uma chance na vida.
Eu me encaixava nessa última categoria. Mas continuei cantando e continuei trabalhando. Lavava pratos, até que alguém da vigilância sanitária questionou porque um morador de rua estava colocando as mãos nos pratos dos clientes. Não importava o quanto eu fosse limpa, o que importava era onde eu vivia.
Às terças, quintas, sábados e domingos, eu dormia na rua, em lugares estratégicos, com outros moradores. Às segundas, quando o abrigo abria, eu era a primeira da fila para tomar banho e às vezes tinha sorte de chegar cedo e conseguia uma cama. E quando isso acontecia, eu dormia lá, na segunda. Às quartas e sextas também. Mas no final de semana, o abrigo fechava. Eu saía da rota perigosa dos moradores de rua mais violentos, que invadiam a cidade nesses dias e andavam até a parte onde eu costumava ficar – perto do hospital do câncer. Lá, com menos patrulhamento da polícia e menos moradores de rua, eu dormia no banco do ponto de ônibus em frente.
Foi assim que eu comecei a ver os pacientes indo e voltando do tratamento, com seus acompanhantes. Eles sentavam no ponto ao meu lado e nos dias em que eu estava ali, nós conversávamos. Às vezes, eu cantava para eles. Tadinhos, a maioria eram idosos, tão solitários, mesmo com os acompanhantes. Uma solidão que vinha da incerteza se eles iriam viver por mais tempo. Eu percebia que o meu canto os ajudava, colocava um brilho e um sorriso no olhar. Um dos velhinhos me perguntou por que eu não procurava uma igreja para me ajudar; afinal, eles certamente precisariam de alguém com "o meu talento" no coral.
Mas eu não era dada a frequentar igrejas. Eles queriam pessoas que aceitassem a doutrina. E eu não acreditava em Deus, há algum tempo.
Um belo dia, alguém pediu para eu cantar para os pacientes que passavam o dia na quimioterapia. Em troca de um lanche e um banho no banheiro dos acompanhantes. Eu aceitei, claro. Da cesta de doações de hospital, ganhei algumas mudas de roupa e sapatos. E assim, eu levava os meus dias. Até consegui trabalhar como frentista num posto de gasolina ali perto. Quer dizer, até que o dono do estabelecimento entendeu que eu não tinha carteira, nem residência, então, fui dispensada outra vez.
Atualmente, eu cantava pelos lanches do hospital.
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