Capítulo 33
Destranquei a porta e a abri com cuidado. Vasculhei a sala com o olhar. Nem sinal de Carter nem Eduardo, quer dizer, Heaven.
- Nome ridículo que meu cérebro achou para me sacanear - sussurrei colocando as duas malas para dentro. Deixei as duas ali mesmo, no corredor de entrada, enquanto avaliava a casa. Nem parecia que tanta coisa tinha se passado na minha vida, como se eu tivesse saído apenas há algumas horas.
Subi as escadas rumo ao meu quarto, vagarosamente, sem muita vontade. Também estava vazio. Nenhuma alucinação. Bufei em desaprovação. Mesmo com muito ódio, mesmo me sentindo a pessoa mais atormentada da face da terra, desejei ver Eduardo. Se eu estava doente, então que ele aparecesse.
Decepcionada fui tirando a roupa que eu usava a caminho do banheiro. Queria tentar lavar minha tristeza.
Lá dentro, me agachei quando vi os resquícios do meu celular no chão. A tela estava inteira trincada, com pedacinhos faltando como se fosse um quebra cabeça inacabado. Cacos brancos estavam espalhados pelo chão de mármore preto, iam até embaixo do gabinete da pia. Balancei minha cabeça em desaprovação quando me levantei. Respirei fundo pensando em tudo que eu ainda tinha pela frente e fiquei exausta.
Queria ligar para Olívia, mas não sabia o celular dela de cabeça, o de Cristofer eu sabia.
- Você o quê? - desconfiei que ele tivesse se sentado depois de ouvir que eu tinha recuperado a memória.
- Sim. E estou muito desapontada com vocês e com meus pais e...
- Sofia! Você não pode me culpar, conhece sua mãe. Eu não tive escolha - não me deixou terminar.
- Eu tenho que fazer exames de rotina. Como acharam que iam poder esconder isso?
- Conversamos sobre isso. Eu dei um prazo seguro à ela.
- Olha, tudo bem - suspirei. - Queria que fizesse um favor.
- Diga - respondeu prontamente.
- Quero encontrar com você e com a Olívia. Pode ser?
- Claro.
- Cristofer?
- Oi?
- Eu estava com saudades - confessei.
- Eu também, Sofia. Estou feliz que esteja de volta.
Combinamos de nos encontrar no café da namorada dele, que não era muito longe do hospital, assim se eles precisassem voltar, estariam por perto.
Fiquei feliz em saber que eles estavam bem novamente depois do que tinha acontecido com os dois, mas não me ative muito a isso. Egoísta
Quando cheguei, vi Cristofer perto do balcão conversando com ela. Ele parecia tão sereno e feliz, como se ele tivesse sido descascado daquela casca grossa e triste que ele tinha virado anteriormente. Fiquei feliz por ele. Um pouco de calor para o meu coração frio.
Me aproximei lentamente, um pouco constrangida de interromper. Mesmo que eles estivessem cada um de um lado do balcão, pareciam estar imersos numa bolha só deles.
- Oi - falei quando cheguei perto dele.
- Oi! - cumprimentou se virando para mim, revelando uma Sofia sorridente atrás dele.
Tentei não ficar carrancuda como havia me habituado.
- Você está bem? - escutei ele falar abafadamente por conta do abraço apertado. - Me diz como está! - olhou para mim preocupado.
- Estou tentando fazer com que tudo fique bem.
- Oi, Sofia. Como está? - ela saudou gentilmente, os olhos verdes brilhantes.
- Bem - menti. - Obrigada - sorri gentilmente para ela.
- Alguma coisa para beber? - quis saber para quebrar o clima intenso.
- Um café, bem forte - pedi sorrindo para que ela se sentisse à vontade.
- Vamos sentar para esperar Olívia, tudo bem? - Cristofer avisou para ela se debruçando sobre o balcão para roubar um beijo.
Ela sorriu para ele e concordou apenas com a cabeça. Os olhares dos dois chegou a me constranger.
- Esperem até chegarem num quarto - cochichei para ele quando nos encaminhamos para a mesa.
- Cala a boca - respondeu querendo rir.
O meu pedido chegou junto com Olívia.
- Trouxe um cupcake para você, Sofia. Por conta da casa - falou ao colocar o doce na mesa. - Já vem um para você também, Olívia - falou antes de voltar para a cozinha.
- Ela é linda, Cristofer - Olívia falou dando uma cotovelada em Cristofer antes de me olhar com os olhos negros cheios de lágrima.
- Oi - falei me levantando.
Ela me abraçou com uma força esmagadora que eu respondi da mesma maneira. Lágrimas ardidas começaram a se formar nos meus olhos enquanto estávamos abraçadas sem falar nada.
- Esperem chegar a um quarto - Cristofer falou perto do meu ouvido.
Nos separamos sorrindo para Cristofer e fungando para tentar conter a vontade de chorar.
- Você está bem? - ela quis saber.
Respirei fundo dando uma golada no meu café quente antes de responder.
- Estou furiosa - contei encarando o líquido da minha xícara. - Estou tão furiosa que sinto náusea - olhei para ela novamente.
- Sei que pedir desculpas não vai anular essa sensação, mas eu sinto muito - Olívia segurou na minha mão que estava solta sobre a mesa.
Soltei o ar abruptamente dos meus pulmões e continuei.
- A verdade é que estou em fúria comigo mesma, e acabei descontando em todo mundo. Em vocês, nos meus pais - me senti envergonhada.
- Eu ficaria pior - Olívia confessou.
Eu sorri para ela em agradecimento.
- Não se culpe agora. Dá um tempo pra essa cabeça.
Assenti tomando um gole da bebida para confortar minha mente.
- Estou muito feliz por vocês dois - falei por fim para Cristofer. - Ela parece ser incrível.
- E é - confirmou com os olhos brilhantes e um sorriso envergonhado. - Um anjo que apareceu na minha vida.
Olívia fez uma cara que pareceu de nojo, mas riu logo em seguida da brincadeira quando nós dois fizemos o mesmo.
- Eu gosto de ser solteira - ela deu de ombros. - Posso ter quem eu quiser.
- Que bom. Estou entre o melhor dos dois mundos - bufei olhando pros dois.
- Gabriel não tentou entrar em contato?
- Não faço ideia, Olívia. - voltei a falar. - Estou sem celular. Mais uma coisa que preciso dar jeito - suspirei.
- Ainda sobrou dinheiro para comprar um novo, ou você gastou tudo com hotéis carérrimos e shows? - Cristofer sorriu ironicamente para mim.
- Também não faço ideia da minha condição financeira - sorri para ele imitando sua ironia.
- Bom - Olívia começou fuçando na bolsa. - Acho que um problema a menos, nesse caso - continuou depositando uma caixinha de celular com um laço em cima.
- Não! - falei impressionada colocando as duas mãos na boca que estava aberta.
Os dois sorriam para mim com cara de convencidos.
- Vocês dois, seus bestas! - abri o presente apressada.
- Tomei a liberdade de fazer alguns ajustes - Olívia alertou quando liguei o aparelho.
- Sério?
- Sim. Alguns telefones que eu tinha de pessoas que conhecemos, caso teu chip tenha sido destruído também.
O aparelho soou alguma música enquanto a tela se iluminava e terminou de iniciar. Quando os ícones apareceram, por trás deles, a imagem de Heaven se estampou na tela me fazendo piscar algumas vezes.
- Tcharammmmm - ela falou esticando as duas mãos para frente em direção ao aparelho como se fosse ajudante de um mágico.
Olhei para ela com os olhos um pouco arregalados e sem ação, mas logo fingi uma alegria forçada e bati palminhas.
- Eba...
- Sabia que você ia gostar dessa porcaria de fundo de tela - Cristofer falou.
- Eu amei - me referi ao aparelho, mas eles não precisavam saber desse detalhe. - Vocês são os melhores.
- Não somos? - Olívia falou antes de dar um gole no seu café.
- Se pensam que vão fazer minha raiva passar com um presente desses, estão corretos - sorri quando notei que eles esperavam outro desfecho para a minha frase.
***
Assim que cheguei em casa, larguei minha bolsa na mesa de centro como sempre fiz e sentei no sofá com meu celular novo na mão. Encarei a tela dele, vendo a cara da minha alucinação. De pressa entrei na galeria do celular que continha apenas imagens de paisagens e escolhi uma que parecia um deserto. Perfeito. Substituí a imagem de Heaven por essa. Entrei nas configurações de privacidade e fui escolher uma senha. Costumava ser o aniversário dele. Por anos eu usei a mesma.
- Aff... - bufei batendo o punho esquerdo no assento macio do sofá.
Fechei meus olhos e respirei fundo soltando o ar com um gemido. Por fim, decidi colocar meu próprio aniversário. Muito inovador.
Ele não tinha culpa das minhas alucinações, mas minha raiva estava se revertendo quase que automaticamente para a figura de Heaven. De qualquer forma, era indiferente, ele não existia. Nem na versão que eu tinha criado, nem na vida "real", já que era apenas uma representação em 2D de um ser humano em telas ou páginas de revista.
Joguei meu celular novo no sofá quando levantei e fiquei indiferente ao aparelho. Subi para o meu quarto e me joguei na cama, espremendo os olhos ao bocejar.
- Você podia aparecer, só mais uma vezinha - cochichei já pegando no sono.
No dia seguinte, acordei com dor no corpo por ter dormido toda torta e com a roupa que eu tinha saído. Nem escovar os dentes eu tinha escovado.
- Que nojo - foram as minhas primeiras palavras do dia.
Fui direto para o chuveiro e depois escovei os dentes por uns cinco minutos. Desci vagarosamente para a cozinha, arrastando minhas meias no piso de madeira. Mas não havia absolutamente nada para comer.
- Merda.
O desanimo tomou conta de mim quando eu fui até a sala e sentei no sofá vendo meu celular jogado. Precisava fazer alguma coisa da vida, afinal, eu tinha voltado com tanta gana para casa para isso. Mas vontade era justamente o avesso da sensação que eu sentia.
Fiquei encolhida na poltrona por horas em silêncio, escutando os passarinhos e alguns carros que passavam vez ou outra na rua. Meu corpo doía de ficar tanto tempo na mesma posição, mas eu não queria fazer nada que não fosse ficar parada.
Mesmo assim, me arrastei para fora do sofá e peguei o celular quando voltei lá para cima. Mexi nos cacos do meu antigo aparelho, que eu tinha deixado no meu criado mudo na noite anterior, em busca do chip. Parecia intacto. Coloquei no novo celular que pareceu funcionar normalmente. A agenda dos meus contatos levou alguns segundos para aparecer. Ótimo. Agora eu estava conectada com o mundo novamente.
Continuei sentada na cama olhando para a porta do banheiro que estava entreaberta. Era estranho ficar sem fazer nada. Fazia tempo que não ficava assim em casa com os meus plantões no hospital consumindo a maior parte do meu tempo. Agora, que a memória tinha voltado, parecia que eu nunca tinha ficado na casa dos meu pais.
Minha vida sempre atribulada não permitiu que eu tivesse um hobby, não tinha nada, nem comida quando lembrei que estava com fome.
Na despensa, encontrei um pacote de bolacha doce e um frasco de nutella. Tinha mais coisa enlatada, como milho, por exemplo, e só.
Sentei no sofá com meu almoço saudável e comecei a comer quando vi o DVD do The Odds sobre a estante da sala. Larguei meu pote de nutella no sofá, ao lado do pacote de bolacha, e peguei a caixa do DVD na mão. Ao encarar a capa, minha vontade era de jogar na parede, quebrar em várias partes, tacar fogo.
Infantil.
Ele não era culpado da minha mente estar prejudicada. Eu não podia ser tão infantil.
Ao contrário de todos os planos que tinha para o DVD, coloquei para assistir.
- Masoquismo - falei para mim mesma quando me sentei novamente no sofá cruzando as pernas e dando atenção para comida.
As luzes na televisão começaram a piscar anunciando o início do show. Logo depois, luzes coloridas começaram a atravessar o palco e labaredas de fogo em quatro pontos se acenderam fazendo a platéia gritar. O baterista foi iluminado por um holofote, seguido pelo guitarrista. Em seguida, ao som da bateria, ele entrou. Heanven usava uma camisa branca de listras finas verticais azuis, mal abotoada, revelava boa parte do peito, para variar. A calça era tão apertada que eu duvidava que não fosse dolorido quando ele se mexia; e ele se mexia o tempo todo. Os cabelos jogados para trás não permaneciam parados por muito tempo. A mão passava por eles o tempo todo quando mechas rebeldes caiam no seus olhos. Algumas vezes ele ignorava ficando absolutamente lindo.
- Desgraçado de lindo - falei de boca cheia.
Quando ele passou a mão pela milésima vez no cabelo, lembrei das vezes que Eduardo fazia isso, bem em frente aos meus olhos, e meu rosto ardeu junto com os meus olhos que se inundaram de lágrimas ácidas.
Heaven pulava de um lado para o outro nas batidas da música, levando uma multidão ao delírio enquanto eu lembrava do Eduardo, que era só meu.
Larguei uma bolacha de qualquer jeito, meio mordida, dentro do pote de nutella e o empurrei para o lado para abraçar meus joelhos e apoiar minha testa neles.
Eu tinha beijado ele! Eu fiz sexo com ele! Eu fiz sexo com uma alucinação, ele tinha cheiro, gosto! E eu estava desesperadamente sofrendo com a falta que me fazia sentir tudo isso.
A voz dele penetrando meus ouvidos a cada acorde da música era uma tortura, mas era o único modo de me aproximar dele já que ele tinha sumido.
Talvez eu devesse voltar para a casa dos meus pais, era o gatilho para as minhas alucinações. Talvez tivesse a ver com algo que só me fizesse alucinar lá. Esfreguei as mãos no rosto e fui até a cozinha, tomei quase meio litro de água para engolir o choro e todo o doce que tava preso na minha garganta. Me recostei na pia e comecei a pensar na ironia que minha vida tinha se tornado. Eu tinha pouco tempo de vida provavelmente, não ia conseguir escapar duas vezes, entretanto, eu não tinha absolutamente nada para fazer com o pouco tempo que me restava.
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