Capítulo 18
- Oi? - minha mãe falou se aproximando de mim quando abri meus olhos.
- Oi... - disse despertando. Minha cabeça estava pesada, e apesar de não estar doendo tanto, estava muito desconfortável.
- Como se sente?
- Um pouco tonta.
- Seu café já chegou. Consegue comer?
- Acho que sim - falei me endireitando um pouco na cama que já estava com boa parte elevada nas costas.
- Vou chamar alguém para te ajudar a ficar mais confortável.
Ao contrário dos outros, eu adorava a gelatina do hospital. Sempre que possível, roubava uma e comia escondida. Coisa que agora, meu cérebro talvez não lembrasse.
Depois que me sentei direito na cama, alcancei a gelatina que estava na bandeja à minha frente com a mão dolorida por causa do acesso do soro. Resmunguei de dor e alternei a mão, deixando a dolorida quieta.
Saboreei a gelatina. Nada. Nenhuma lembrança.
- Mãe - falei colocando o pote de gelatina novamente na bandeja.
- Sim?
- Quanto eu esqueci?
Ela olhou para mim com ternura. Eu já sabia que a resposta não era boa.
- Bom, alguns anos.
- Anos? - me assustei.
- Eu sinto muito.
Fechei os olhos e tentei me acalmar. Surtar de novo não ia adiantar nada.
- Preciso saber quem eu sou.
- Eu sei, querida - respondeu com pesar.
- Quantos anos eu tenho, o que eu tenho feito... estou com medo de me olhar no espelho.
Segurou minha mão e parou por um tempo, me avaliando.
- Você ainda é minha menina linda.
Sorri em resposta, mesmo com uma vontade esmagadora de chorar me corroendo o peito.
- Tudo bem, mas eu preciso ir ao banheiro também - falei ao me levantar com certa dificuldade da cama.
Entrei no banheiro com medo do espelho. Então, não me dirigi a ele. Terminei rapidamente e voltei para a cama.
- Onde paramos?
- Está tudo bem? - minha mãe quis saber, certamente com medo da minha reação diante do espelho.
- Não olhei para o espelho, mãe. Uma coisa de cada vez.
Suspirou um pouco decepcionada e tentando manter a calma. Então tomou fôlego e começou a falar. Contou minha idade, o que me deixou um pouco em choque, mas não tanto quanto a próxima informação.
- Você já é uma médica. Neurologista.
- Sou? - eu estava feliz de saber, mas ao mesmo tempo com ódio mortal de não me lembrar de uma coisa tão importante.
- Sim - respondeu sorrindo.
- E Cristofer?
- Achei que nunca fosse perguntar - falou aliviada. - Ele também.
- Sério? - perguntei antes que ela terminasse de falar.
- Sim, querida. Vocês dois trabalham aqui.
- Não acredito - parei por um segundo avaliando a situação. - Por isso tantas pessoas me conhecem pelo nome... Meu deus - sussurrei. - E onde ele está?
- Já pedi para alguém chamá-lo. Acho que estava em cirurgia.
- Em cirurgia - repeti orgulhosa encostando minha cabeça no travesseiro que estava um pouco acima do meu pescoço no encosto elevado da cama.
Então lembrei da imagem destorcida do meu pai no dia em que cai.
- Eu lembro do meu pai! Eu tenho certeza que ele estava no dia que eu vim para o hospital. Onde ele está?
Será que tinha alucinado? E se ele tivesse morrido?
- Calma, Sofia - minha mãe pediu com um tom de voz sereno. - Ele estava lá sim. Nós estivemos aqui a madrugada toda com você. Mas ele precisa trabalhar.
Suspirei aliviada.
- Mas, a essa altura, vocês ainda não estão aposentados?
- Estamos. Mas - sorriu - realizamos um sonho nosso de tempos atrás. Ter uma floricultura.
"Continuamos morando no mesmo lugar. Mas agora não precisamos mais sair da região metropolitana e chegar até a capital para trabalhar. Lá é tão calmo, querida. Parece até que estamos a quilômetros daqui".
- Disso eu me lembro.
Ela sorriu enquanto Cristofer entrou no quarto.
- Sofia!
- Cristofer.
- Como está? - seu olhar de preocupação me fazia querer chorar.
- Estou bem.
- Bom, sua cara está horrível - falou me lembrando de que eu ainda não sabia minha atual aparência. Um medo me corroeu por dentro, chegando a me arrepiar. Eu estava adiando o momento de descobrir.
- Ah. Obrigada. Muito lisonjeiro da sua parte - disse passando a mão no cabelo.
Os dois estavam me olhando com um olhar triste de caridade quando lembrei de uma pergunta que queria fazer, mas que tinha esquecido.
- Eu cortei meu cabelo desse jeito tão curto?
Os dois ficaram um pouco mais sérios e minha mãe se adiantou.
- Olha, não que eu entenda muito disso, mas parece que é a moda.
Não falei nada enquanto ainda sentia o cabelo nos dedos.
- Não que ver? Eu tenho um espelho aqui em algum lugar - falou se virando para procurar na bolsa.
- Pode aproveitar para esticar um pouco as pernas e ver no banheiro - Cristofer ajudou.
- Não quero - falei rispidamente.
Os dois paralisaram diante da minha grosseria.
- Preciso me preparar para isso. Ainda não estou pronta.
- Sofia!
Uma mulher disse entrando no quarto, quebrando a atmosfera tensa que tinha se formado.
Eu olhei para ela tentando reconhecer algum traço que fosse.
A pele era lisa e negra, não havia uma falha sequer. Os dentes brancos apareciam emoldurados por lábios carnudos que me sorriam ternamente.
- Ah, não... - resmungou contrariada com o meu silêncio.
Quis gritar e sair correndo, mas senti pena dela.
- Pois é - falei um pouco cínica. - Não sei quem você é.
- Como não! - falou se aproximando muito mais do que eu esperava. - Sou sua namorada, benzinho.
- Olívia - Crisofer repreendeu enquanto minha mãe arregalava os olhos.
- Ok. Desculpa. Eu sou Olívia. Sua melhor amiga. Muito prazer - me estendeu a mão de dedos compridos para eu apertar.
Fiquei um pouco sem reação, mas lentamente estendi a mão para ela também.
- Boas notícias - meu medico entrou.
- Mais um para festa - mais uma vez fui cínica.
- Sofia - minha mãe repreendeu.
- Você terá alta no final da tarde - o médico respondeu sem dar muita importância para minha malcriação.
- Já? - Cristofer pareceu incomodado.
- Sim. O médico respondeu cortês.
Então Cristofer desandou a fazer perguntas sobre exames que eu jamais tinha ouvido falar. Os dois foram andando para fora do quarto enquanto Cristofer parecia estar fazendo uma prova oral.
Olívia olhava para mim ainda da mesma forma como antes. Eu queria sentir raiva, mas algo nela me confortava demais.
- Meninas, vou ver se está mesmo tudo certo. Vocês vão ficar bem? - minha mãe quis saber.
- Claro - Olívia respondeu por mim enquanto minha mãe saia.
- Então você sabe bastante sobre mim?
- Sim. Falou se sentando na poltrona em que minha mãe estava.
- Bastante quanto? - eu quis saber.
- Bastante tudo.
Seria bom ficar um tempo com ela para saber de tudo mesmo, sem a edição da minha mãe para a vida parecer linda e perfeita.
- Desculpa ter sido um pouco grossa.
- Não tem problema. Eu no teu lugar estaria surtando.
Nós duas rimos da sua sinceridade quando todo mundo voltou para o quarto.
- É, parece que você vai mesmo fazer o checkout desse "hotel" - Cristofer entrou dizendo. Parecia mais tranqüilo.
Minha mãe estava radiante. Eu senti medo.
Estava pronta pra ir para casa sem me lembrar de absolutamente nada?
Depois de todas as recomendações médicas e receitas infindáveis de remédios, ficamos novamente sozinhas.
- Estou pensando, Sofia - minha mãe falou sentando-se na poltrona. - Conversei com seu pai e acho que seria melhor você passar um tempo com a gente. Para se recuperar totalmente.
Foi um grande alívio ouvir as palavras da minha mãe. Eu estava apavorada de pensar em ficar sozinha na minha casa. Uma casa em que eu não lembrava de ter vivido.
- Tudo bem - respondi sem ânimo.
Vi a tristeza aparecendo em seu olhar, mas não consegui agir de outra forma. Algo de muito ruim havia tomado meu ser. Como se eu fosse uma marionete comandada por um humor péssimo e malvado.
No caminho para a casa dos meus pais, finalmente paisagens conhecidas. Cresci fazendo aquele caminho. Recostei minha cabeça no vidro da janela e fiquei em silêncio por todo o percurso.
Fiz força para falar umas duas vezes, mas nada saía de mim. A infelicidade me corroia por dentro e mover meus lábios parecia um exercício pesado e impossível.
Dentro de casa, os cheiros e as cores me traziam mais lembranças.
- É bom lembrar de algo para variar - falei quando parei dentro da sala.
- O que quer almoçar? - minha mãe quis saber tentando me agradar.
- Não estou com fome. Talvez mais tarde - comecei a subir a escada que dava para o meu antigo quarto.
- Você precisa se alimentar. Só comeu uma gelatina! - falou ao pé da escada.
Mas eu, estúpida como jamais havia sido, não respondi.
Quis chorar por ter sido uma pessoa horrível com a minha própria mãe. E chorei.
Entrei no quarto e sentei na beirada da cama olhando pela janela. O sol estava brilhante, mas eu estava morrendo de frio. Então, tirei as sapatilhas usando apenas os pés para descalçá-las e me enrolei no cobertor que estava sobre a cama.
- Sofia?
O som da voz do meu pai penetrou nos meus ouvidos assim como o frio que eu estava sentindo.
- Vamos jantar?
- Pai? - olhei para ele tentando focalizá-lo.
- Sim, querida.
- Não estou com fome.
Quando terminei a frase, minha mãe entrou no quarto se irritando comigo.
- Não comeu nada hoje o dia todo. Vamos. Fiz uma sopa para esquentar um pouquinho o corpo.
Resmunguei enquanto ela me desenrolava do cobertor, mas levantei.
- Eu nunca pensei que ia voltar a ser criança - falei emburrada.
Eu já estava bem velha para esse tipo de tratamento, mas com o meu comportamento infantil, eu estava merecendo.
A sopa entrou no meu estômago como um balsamo e minhas mãos finalmente esquentaram.
- Estou pensando em ficar em casa esses dias, enquanto a Sofia estiver melhorando - minha mãe falou para o meu pai, como se eu nem ao menos estivesse ali.
- Não precisa - falei colocando mais uma colherada na boca.
- Não tem problema nenhum - meu pai continuou. - Eu dou conta da floricultura sozinho.
- Não precisa - falei mais ríspida.
Os dois se entreolharam e permaneceram em silêncio até o fim da refeição.
Subi para o meu quarto depois que terminei. Meus pais estavam na cozinha quando eu sumi sem desejar boa noite.
Voltei para o meu quarto e deitei novamente.
Já havia dormido por um bom tempo quando senti que estava congelando de frio novamente, foi quando senti o peso de mais cobertas sobre meu corpo.
Em seguida, escutei os dois conversando no corredor.
- Não comeu direito. Nem banho tomou!
- Ela não está fazendo acompanhamento com a psiquiatria do hospital?
- Se recusou a fazer. Está tomando apenas os remédios para dor.
Depois as vozes ficaram longe e não pude mais decifrar o que falavam.
Chorei até pegar no sono novamente.
Escutei um pássaro cantar incansavelmente e despertei. O dia estava nublado e continuava frio.
Fiquei na cama de olhos abertos, mas não movi um músculo.
Preciso tomar um banho.
Só o pensamento de sair da cama me incomodava, mas eu precisava levantar. Estranhei meus pais ainda não terem surgido para tentar me fazer comer algo.
Movi minhas costas um pouquinho. Depois levei as pernas até o lado da cama e meus pés tocarem o chão.
Ainda não vi a droga da minha cara.
Estava sem a menor curiosidade.
Desci as escadas e desconfiei que estivesse sozinha.
Na cozinha, tive a confirmação.
Um bilhete com a letra da minha mãe estava posicionado ao lado do telefone que estava sobre a mesa. Dizia que eu precisava me alimentar e que se precisasse, eu podia ligar que eles viriam a qualquer momento. Ao lado do telefone havia uma infinidade de comida. Parecia um café da manhã de hotel. Mas não toquei em nada.
Subi as escadas e entrei no banheiro desesperada para fazer xixi. Suspirei quando resolvi que devia acabar com a espera e olhar logo de uma vez para a minha cara velha e acabada.
O cabelo realmente me surpreendeu. Estava curto demais. Fazia umas ondulações nas pontas. Ainda tinha a mesma cor de sempre. Os olhos estavam afundados no rosto. A olheira bem marcada. Mas eu não estava tão velha quanto imaginei. Era eu mesma de cabelos curtos e olheiras enormes.
Liguei o chuveiro e esperei a água estar fervendo para entrar debaixo.
Devia ter feito isso muito tempo atrás.
Procurei pelo xampu e vi que havia mais de um frasco. Cheirei todos eles antes de escolher um. Estava fazendo uma massagem suave no cabelo enquanto os lavava quando senti um relevo na minha cabeça.
- Mas o que é isso? - me assustei passando dois dedos sem parar pela marca. Eu tinha uma cicatriz enorme na cabeça e não sabia do que se tratava.
Ainda tentei ver no espelho enquanto me penteava, mas era um trabalho impossível.
A tarde veio, a noite desceu e eu fiquei o tempo todo deitada na minha cama.
Escutei o carro dos meus pais na garagem e sem entender muito bem porquê senti vontade de descer e ir ao encontro deles.
Na metade da escada já pude ouvir os dois conversando.
- Trouxe esse suco, eu sei que ela adora.
- Vamos pedir pizza, talvez ela sinta fome quando o cheirinho de orégano invadir a casa...
Meu coração se derreteu.
Eu tinha os melhores pais do mundo e estava sendo uma filha miserável.
Terminei de descer bem lentamente e entrei na cozinha atraindo o olhar dos dois.
- Querem ajuda para guardar as compras? - ofereci.
- Claro, querida - minha mãe respondeu tentando conter o entusiasmo.
- O que acha de pizza? - meu pai quis saber perto da geladeira guardando umas garrafas de suco.
- Acho ótimo. Adoro orégano - sorri.
Vi uma nova esperança no olhar deles e então desabei.
Comecei a chorar. A força do sentimento de tristeza foi tão grande que até perdi o ar.
Os dois vieram ao meu encontro assustados enquanto eu tentava explicar o que estava acontecendo.
- Sou uma filha horrível! E vocês são os melhores pais do mundo.
Eles não falaram nada, mas me abraçaram.
- Eu sinto muito - continuei.
- Eu acho é ótimo. Já estávamos pensando em te deixar de castigo - meu pai brincou.
- Não é fácil, Sofia. Mas não desista. Não desista - minha mãe repetiu enquanto me apertava contra ela num abraço esmagador.
O cheiro de orégano realmente invadiu a casa de uma forma deliciosa.
Comi uma fatia da pizza, mas meu estômago não quis aceitar mais do que isso.
- Eu não tenho celular? - eu quis saber enquanto meu pai descarregava catchup sobre uma fatia de pizza.
- Tem - ele disse como e fosse muito óbvio.
- Tinha - minha mãe corrigiu cruzando os garfos sobre o prato.
- Digamos que ele sofreu um acidente, junto com você.
- Como assim?
- Você estava falando comigo ao telefone quando caiu - minha mãe pareceu triste. - Então, caiu e destruiu o celular na queda.
- Como isso aconteceu?
- Saiu do banho e escorregou no chão liso e molhado do banheiro.
Comecei a rir. Mas ria com tanta força e vontade que senti que tinha assustado os dois.
- Desculpa - pedi entre risadas. - Mas eu estou vendo a cena e me pareceu tão engraçado...
Minha mãe começou a rir um pouquinho. Meu pai já tinha os dois cantos dos lábios erguidos quando eu voltei a rir. Em alguns segundos os dois estavam me acompanhando numa gargalhada alta e libertadora.
Aos poucos fomos voltando ao normal e nos recompondo. Meu pai ainda comia enquanto nós duas já estávamos satisfeitas.
- Ah - falei ao lembrar. - Tenho uma cicatriz enorme na cabeça!
Meu pai começou a tossir enquanto minha mãe dava tapinhas nas costas dele.
- Você se enroscou numa árvore na faculdade, nada grave. Mas precisou levar uns pontos.
Toquei o local com as pontas dos dedos novamente.
- Eu estava fazendo o quê?
- Era uma festa. Acampamento... Não sei bem ao certo.
- Então eu era do tipo festeira na faculdade? - sorri.
- Chegava sempre depois do sol em casa - meu pai respondeu de boca cheia.
- Seu pai não dormia até você voltar.
- Obrigada por me trazerem até aqui - falei do nada.
- Para nossa casa?
- Sim. Eu acho que é o único lugar que eu quero estar agora.
Minha mãe segurou minha mão com força sobre a mesa e finalmente eu tive um final de noite agradável.
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