Capítulo único
Pedro, de 8 anos, e Ana, de 7, após a morte dos pais, passaram a morar com a avó Mirtes e seus três tios: tio Damião, um homem gordo que passara a vida toda pensando em dinheiro e sonhando em ser rico, porém devido à falta de disposição e capacidade cognitiva nunca conseguira alcançar tal sonho; tia Marina, uma praticante assídua do veganismo que estava sempre tentando convencer os netos a se juntarem a ela na salvação dos animais; e tio Justino, um homem metediço e fofoqueiro, desses que quando está com você fala de fulano e vice-versa. Na casa também havia Magda a empregada da família, uma mulher de comportamento extremamente estranho. Tinha a mania de ficar olhando as pessoas com cara de desafio após servir alguma refeição, e depois que a pessoa dava a primeira garfada, colherada ou gole, passava a olhar com cara de deboche, com um sorrisinho de canto de boca. Se dependesse dos filhos já teria sido demitida e sua casinha nos fundos da casa maior seria usada para outras coisas, mas sempre que o assunto surgia a avó defendia a agregada e dava a palavra final. Havia também Palito, o gato da família, apesar do nome o animal era uma enorme bolota de pelos alaranjados, parecia uma versão felina do tio Damião que também era peludo. A avó era extremamente apegada ao animal. O deixava comer na mesa com todo mundo, ele dormia com ela, estava sempre em seu colo enquanto ela assistia a missa na televisão. O animalzinho sofria do coração (mais uma semelhança com tio Damião), e por isso, obedecendo ao veterinário, a velha pingava uma gotinha de Viagra líquido na boca do animal duas vezes por dia. Não era incomum vê-lo grudado em algum móvel ou na perna das visitas como um cachorro.
A avó Mirtes estava fazendo o almoço de domingo enquanto os netos brincavam com o gato no chão da cozinha. A velha fazia questão de fazer o almoço de domingo enquanto dava um descanso para a criada. Considerava o dia especial, pois os três filhos estavam sempre em casa e almoçavam todos juntos. E também que havia convidado o padre José, um matusalém amigo da família.
O padre chegou e foi recebido pela velha, que apesar de velha era trinta anos mais nova que ele. O homem já estava com um pé no próximo mundo. Era bom que fosse chegado com Deus, pois qualquer um que o visse não daria mais que algumas horas pra que se encontrassem pessoalmente. Ele passou pela porta com a ajuda do andador e de uma freira que o acompanhava. Ela o deixou à mesa e partiu dizendo que voltaria apenas para buscá-lo. Vendo que não se preparara para servir a todos a velha mandou chamar a serviçal em sua casinha nos fundos, que veio visivelmente contra a sua vontade.
Uma vez que estavam todos à mesa, incluindo o gato, a empregada os serviu. Estavam todos famintos e felizes ignorando a mulher que praticamente jogava os pratos na mesa os xingando em voz alta "bem no meu dia de folga" "merda" "tudo é a Magda" "desgraçados".
— Eu não sei por que essa mulher ainda trabalha aqui. — disse o tio Justino assim que a empregada voltou para seus aposentos. — Mulherzinha desagradável.
— Não vamos começar essa discussão de novo. — disse a avó — Eu já disse que é o jeito dela.
— Bom, — começou o tio Damião — sem ter que pagar o salário dela sobraria mais dinheiro, dinheiro esse que eu poderia muito bem investir naquela ideia sobre o marketing multinível.
— Marketing multinível. — debochou o tio Justino. — Acho que você quis dizer esquema de pirâmide.
Damião irritou-se.
— Mas você tem uma língua hein? Não sei onde é que tá vendo esquema de pirâmide. É apenas um negócio onde cada um investe um pouquinho e todos saem ganhando. Você vende pra duas pessoas, essas duas vendem pra duas e assim vai aumentando até...
— Até não sobrar mais ninguém e a pirâmide desabar. — interrompeu a tia Marina, fazendo Damião calar-se de cara amarrada. — Delícia de salada mãe! Podia ter substituído o bife por um bife de soja.
Todos reviraram os olhos, até mesmo as crianças que tinham aprendido a imitar o gesto quando a tia tocava no assunto. E começou-se a discussão sobre carne. Todos falando em voz alta, exacerbados. Menos o padre José que parecia alheio a tudo que ocorria a sua volta, possivelmente morto, não fosse o movimento em câmera lenta da mandíbula. Após todos terminarem, passaram a conversar sobre política, todos sem razão alguma, apenas reproduzindo o que ouviam, enquanto a vó pegou o Viagra em cima da geladeira e pingou na língua do gato que já se acostumara com aquilo. A idosa esqueceu o frasco na mesa e nem percebeu quando Pedro o pegou e passou para Ana que, sem ninguém perceber, pingou uma gota no copo do padre. Na verdade a empregada, que agora voltara para recolher os pratos, notou, mas de raiva não contou a ninguém. A menina devolveu o frasco ao irmão que pingou três gotas no suco da avó. Dessa vez a empregada não viu.
Quinze minutos depois, ainda estavam todos sentados quando a avó e o padre começaram a suar e disseram que estavam passando mal. Antes que alguém pudesse fazer qualquer coisa os dois morreram. Ninguém entendeu nada. Como os dois morreriam ao mesmo tempo assim? Seria algo na comida? Ficaram todos preocupados, a empregada sugeriu que todos enfiassem o dedo na garganta para vomitar antes que morressem também, mas ninguém mais estava se sentindo mal.
Ainda sem aceitar, tio Justino, sem saber o que fazer chamou uma ambulância que levou os dois corpos em meio a muito choro. As crianças, no canto da sala com a empregada, não diziam uma palavra. Nem entendiam que tinham matado a avó. Tio Justino jogou o celular na parede e o aparelho despedaçou-se.
No dia seguinte, após retornarem do velório, o advogado da família estava na sala com todos reunidos para ler o testamento da dona Mirtes. Ele tirou alguns papeis da mala enquanto todos aguardavam ansiosos. Tirou também uma aliança com uma enorme pedra vermelha que fez os olhos do tio Damião brilharem e suas mãos coçarem. Depois de conversarem um pouco sobre a falecida o homem explicou que ela deixara a aliança para os filhos, que era de sua bisavó e que era valiosíssima.
— Entretanto, tem uma condição.
— Diga logo homem! — exclamou tio Damião sem o menor esforço para disfarçar a ganância.
— Ela deixa o objeto caso seja enterrada com o gato. Caso contrário o anel fica conosco.
— Mas o bichinho tá vivo! —exclamou tia Marina imediatamente.
O animal agora estava com as crianças brincando no chão da sala.
— Ora, isso é fácil de resolver. — disse Damião enquanto Justino examinava as roupas do advogado.
— Não diga isso nem de brincadeira irmão! — disse Marina muito irritada.
— Ora e não tem jeito de resolver isso? —perguntou Justino. — O senhor é advogado, resolva isso de forma que a gente fique com a aliança e o gato inútil fique vivo.
— Lamento, mas não há nada que eu possa fazer. —disso o homem em tom conclusivo e recebeu um olhar de desprezo de Justino.
— Se eu tivesse cursado direito certamente acharia um jeito. —provocou o tio, mas o advogado apenas o ignorou.
A freira que acompanhara o padre entrou pela porta de repente. No dia anterior havia uma aura de bondade ao seu redor, e ela falava de forma gentil e carinhosa. Hoje toda essa aura havia sumido.
— O que vocês fizeram com ele?!
Todos a olharam espantados. Que pergunta era aquela?
— Os dois morrerem ao mesmo tempo, alguma coisa aí tem! E eu com a ajuda de Deus vou descobrir! Os dois eram idosos...
— Ela era idosa. —interrompeu o tio Justino. — Ele já tinha passado dessa pra uma melhor faz tempo, só não tinha percebido ainda.
O rosto da freira tornou-se vermelho.
— Confessem logo! O que vocês fizeram?
A tia Marina tentou pacificar a mulher.
— Irmã, a senhora precisa se acalmar. Olha o que está dizendo, o Padre José era nosso amigo de tanto tempo. O que de ruim faríamos com um homem tão bom?
— Foram as crianças! —disse a empregada em voz alta — Eu vi! Eles colocaram Viagra na bebida dele!
— O QUE?! — disseram todos ao mesmo tempo.
— Magda! Isso é uma acusação seríssima! —disse a tia Marina.
— Eu só tô dizendo o que eu vi. —disse a empregada dando os ombros
— Isso é verdade? —perguntou a tia para as crianças que assentiram.
— Ah meu Deus. —disse a tia.
— DEUS? —gritou a irmã que agora já estava roxa.
— Olha, —começou o tio Damião. — a senhora tem que entender que foi um acidente.
— FODA-SE! —gritou a freira. — Eu vou arrancar até o último centavo de vocês! Essa cidade inteira vai saber o que vocês fizeram! — disse ela saindo pela porta. Naquele momento ela era uma versão mais ominosa do Darth Vader.
— Pronto! —disse o tio Damião com voz de choro. —Vocês estão felizes crianças? Você tá feliz Magda? Aliás, você tá demitida, pode ir juntando suas coisas. Por um segundo... Por um segundo meu Deus! Agora de onde a gente vai tirar dinheiro pra pagar processo?
— Calma, irmão! O universo vai dar um jeito de consertar tudo!
Assim que a tia Marina parou de falar a freira voltou.
— Eu vi uma aliança em cima da mesa quando eu entrei, como o advogado está aqui eu imagino que seja herança, e que seja valiosa. —agora ela parecia bem mais calma e disposta a negociar, como se tivesse sido substituída por uma versão mais moralmente flexível de si. — Eu quero a aliança. Vocês me dão a aliança e eu fico em silêncio.
Novamente todos ficaram em choque com a atitude da irmã. Onde já se viu uma freira agir daquela forma? Porém não estavam em condições de negar. Afinal seus sobrinhos haviam matado o padre da cidade.
— Tudo bem. —disse Justino, tomando a decisão sozinho. — Só temos dois problemas: primeiro que a aliança só é nossa se ela for enterrada com o gato, e segundo, cadê a aliança?
— A gente usou pra decorar o bolo. —disse Ana.
— QUE BOLO? —gritou Damião pondo-se de pé.
— do Palito.
Todos olharam para o gato, que agora lambia os bigodes sujos em cima de restos do que fora um pedaço de bolo.
— Meu coração! — disse o homem caindo sentado novamente segurando o braço esquerdo dormente.
— Pois bem, —disse a freira — se é assim que vocês querem vocês vão ver o que eu vou aprontar com vocês!
Assim que a freira saiu com suas vestes negras esvoaçando os tios voltaram a discutir o que seria feito.
— Não temos outra escolha, —começou tio Damião — temos que matar o gato.
— Só por cima do meu cadáver — disse a tia Marina.
— Eu sei uma receita de gato se vocês quiserem aproveitar. —disse a empregada com um cutelo na mão.
— De onde você tirou isso? —perguntou tia Marina. A empregada apenas sorriu.
— Olhem, — começou Justino — eventualmente esse gato vai...e aliança vai sair junto. A gente podia dar laxante pra ele e acelerar o processo.
— Excelente ideia irmão! — gritou tio Damião.
Após relembrar a todos que a aliança só seria deles caso a velha fosse enterrada com o gato o advogado partiu dizendo que voltaria no dia seguinte.
— Agora nós podemos pegar aliança e nos mudar pra bem longe. —disse o tio Damião esfregando as mãos.
Os outros concordaram com a ideia, então eles deram o laxante para o gato e foram dormir.
No dia seguinte a empregada já havia partido e não havia nenhum sinal do gato, apenas fezes liquidas por todos os cômodos da casa que estava com um cheiro insuportável.
— Aquela megera levou o gato! Roubou a nós todos! — gritava tio Justino para todos ouvirem. Tia Marina deu a ideia de procurarem nas fezes e foi o que eles fizeram. Foi tio Damião que encontrou, e foi Justino que impediu que ele a colocasse no bolso e sumisse também.
— Então é isso? —perguntou tia Marina cercada pelos sobrinhos e os irmãos. — Agora nós sumimos pelo mundo e deixamos tudo isso para trás?
— Sim. —respondeu Damião. — Depois nós vendemos a aliança e tudo será resolvido.
À noite todos estavam de malas prontas. O advogado ligara e tia Marina disse que estavam com o objeto e que ele podia pegá-lo no dia seguinte. Então todos saíram ao portão da casa, o ar fresco soprou esperança em seus rostos e as crianças sorriram animadas para partir para uma cidade nova. Tudo estava resolvido.
A dez metros na frente deles a freira surgiu das sombras. Debaixo de suas vestes saía uma fumaça negra e seus olhos agora estavam vermelhos.
— Então vocês iam fugir, não é? — disse com uma voz grossa demoníaca. Quando de repente a empregada surgiu atrás dela levantando um cutelo. Tia Marina tampou os olhos das crianças. E elas apenas ouviram o barulho do golpe.
— Ela chamou o irmão dela! — disse a empregada gritando. — O que comanda o exército! Tem um tanque vindo e uma tropa inteira atrás!
Eles não sabiam se acreditavam ou não na mulher, mas na dúvida entraram correndo no carro junto com ela que foi sem ninguém chamar e fugiram. Ao virar a esquina por pouco não bateram de frente com um tanque que rumava à sua antiga casa. Eles nunca mais voltaram, até porque não tinham condições uma vez que a aliança na verdade não valia nada.
Fim
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