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Ao dar play na multimídia, você ouvirá: Vivaldi - Winter (The four seasons)
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Às 7 horas da manhã, Amélia estava sentada na frente da livraria ainda fechada. O sol fraco despontava em meio à poluição e as pessoas andavam apressadas, de um lado para o outro, como bolinhas de pingue-pongue. A moça esfregou os braços gelados com as mãos.
— Você de novo. — Ela ouviu uma voz feminina. Olhou para cima e deu de cara com Miriam. Levantou e deu espaço para a mulher conseguir destrancar a porta do estabelecimento.
Sem mais diálogos, Miriam adentrou o corredor estreito da livraria e Amélia a seguiu. A idosa ia acendendo as luzes conforme andavam, um pouco mais lentamente do que o necessário.
— Você acreditava antes? — Miriam perguntou, a voz não muito amigável.
— Em coisas como fantasmas? Decididamente, não. — Amélia mordeu o interior da bochecha. — Ainda não caiu a ficha direito.
— Não é à toa que nem todos nós temos contato com a paranormalidade. — A mulher parou e se virou para encarar a hesitante moça.
— É porque seríamos todos malucos? — Amélia tentou brincar. Miriam não sorriu.
— Tente descobrir uma coisa de cada vez. — A idosa se virou novamente e continuou sua caminhada. — Não queremos que nada de ruim te aconteça.
Era? Amélia nem sabia que a velha se preocupava com ela, afinal. Um pequeno calor de gratidão se manifestou, com timidez, em seu peito.
Quando adentraram os fundos da livraria, Miriam se dirigiu de imediato para sua mesa habitual. Amélia compreendeu a mensagem silenciosa de "não quero mais conversar" e foi caminhando para longe.
Nem teve tempo de cultivar alguma apreensão ou medo, porque Ícaro estava sentado no chão do primeiro corredor em que ela colocou os pés. O coração deu um pinote com o susto, mas não durou tanto.
— Eu tocava piano — disse ele, sorrindo. Amélia franziu as sobrancelhas em confusão com a declaração repentina. — Lembrei por causa do toque do seu celular. De ontem.
— E como era? Tocar? — perguntou, pensando que ela mesma não conseguia nem fazer uma escala musical.
— Intenso. — O espectro encarou o teto. — Não sei se consigo tocar agora, e nunca tentei. Não quero lidar com o arrependimento de não ter conseguido.
— Até os mortos tem medo, é? — comentou, irônica.
Ícaro lançou um sorriso afetado para a moça.
— Engraçada.
Amélia riu. Não pela primeira vez, se surpreendeu com o próprio riso. Respirou fundo e se sentou no chão, também; não tão perto dele, mas não tão longe. O silêncio após a conversa perdurou por alguns minutos, apenas a respiração da moça ecoando no espaço.
— Eu entendo você, Ícaro. — Era a primeira vez que ela pronunciava o nome dele, o fantasma notou. — Às vezes é melhor deixar as coisas só dentro da cabeça.
— É, a realidade é meio ruim — concordou ele. — Sempre achei isso. Escrever me deixava tolerar a vida em geral.
— Você escrevia? — Amélia não conseguiu esconder a surpresa na voz.
— E você me leu. — Ícaro retrucou, divertido. — Quem você acha que escreveu aqueles contos?
— Como assim? — Ela torceu os dedos. — De onde você tirou tudo aquilo?
— São memórias que roubei. Sempre pensei que, para me redimir, deveria, pelo menos, honrar essas memórias de alguma forma.
Amélia prendeu a respiração. Se fechasse os olhos, poderia até visualizar peças de quebra-cabeça se encaixando umas nas outras. O tempo todo, era isso! Talvez tivesse sido o motivo pelo qual o livro a assustara tanto. No fundo, ela se sentiu até burra por não ter cogitado aquela possibilidade antes. Estava muito ocupada sentindo medo das páginas. Afinal, quantas almas desconhecidas não tinham sido despejadas ali?
— Agora me sinto uma intrusa por ter lido — comentou a moça, num sussurro.
— Sem nomes, sem culpa — zombou Ícaro.
— Você publicou algo antes de morrer? — Ela nem havia se dado ao trabalho de escutar o deboche.
Ele mordeu o polegar e se remexeu.
— Digamos que ninguém podia descobrir que eu escrevia.
— E isso por que...
— Por que é que você não escreve, afinal? — Ícaro indagou. — Eu vi algo assim nas suas memórias.
Ela percebeu a mudança de assunto. Preferia ter começado a falar da diferença nutricional entre batatas fritas e cozidas do que discorrer sobre seu tortuoso caminho na escrita.
— Não sou boa.
— Ou você só é modesta.
— Não sou boa — repetiu, querendo encerrar a conversa.
Ícaro encarou a moça. Amélia desviou os olhos.
— Bom, quando eu não sabia muito bem como escrever algo — pronunciou ele, lentamente —, ficava acordado a madrugada toda esperando o sol nascer. Era uma visão bem privilegiada na minha casa.
O que era aquela coisa toda com o sol ultimamente? Primeiro o pôr-do-sol com Natã, agora o nascer dele com Ícaro. Intrigada, ela assentiu, esperando o restante. Então o fantasma continuou:
— Era rejuvenescedor. Talvez fossem as latas de energético ajudando, mas... A manhã que vinha com o sol me mostrava o que eu devia colocar pra fora.
— Nunca tinha pensado assim — murmurou ela.
— As primeiras vezes existem para ver as coisas de outro jeito. — Ícaro se levantou enquanto falava. Logo, havia sumido detrás da estante mais próxima.
Amélia mordeu os lábios. A desaparição repentina não a tinha agradado. Seu coração começou, gradativamente, a bater mais rápido. Ela tentou controlar as voltas desagradáveis em sua barriga.
Felizmente, Ícaro estava de volta em poucos segundos, e sua aparição foi tão normal quanto poderia ser. Amélia relaxou o corpo. Ele se aproximou da moça, ainda sentada, e se agachou. Estendeu-lhe uma caneta preta de tubo lascado.
— Acabei descontando um pouco de raiva nela uma vez. — Ele sorriu, um tanto envergonhado. — Mas é boa para escrever. Você deveria testá-la junto com o nascer-do-sol.
— Posso tentar. — Ela deu um sorrisinho, também, e segurou a caneta. Na sequência, correntes frias viajaram do objeto até suas mãos, invadindo o sangue e as veias da moça.
Aturdida, Amélia viu os pelos de seus braços ficarem arrepiados.
Ícaro soltou a caneta de imediato, e Amélia nem tinha notado o quanto estava gelada, até que não estava mais. Olhou para o fantasma, que a olhava de volta com o que ela deduziu ser melancolia.
— Não é muito bom ter contato comigo em nenhuma forma — afirmou, de modo retórico.
A moça permaneceu em silêncio. Não podia mentir e discordar do espectro, já que sua constatação era um fato. No entanto, só podia estar sendo contaminada pela tristeza de Ícaro, porque, estranhamente, percebeu uma compressão em seu próprio peito.
A verdade era que ela não tinha parado para pensar que ninguém deveria ter medo de ser tocado.
Infelizmente, ela também compreendia aquele tipo de medo. Afinal, sua especialidade era fugir de qualquer tipo de contato humano, não? A diferença é que Amélia sempre pôde... Escolher.
— Eu diria que você só tem algumas peculiaridades. — Ela se levantou, ajeitando as roupas. Ícaro também se levantou. Amélia pigarreou. — Preciso ir, meu turno começa daqui a pouco.
Ícaro franziu os lábios. A moça se encaminhou para a saída.
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Nem a visão das princesas da Disney no pijama de Amélia a distraiu o suficiente para que conseguisse fechar os olhos depois que acordou no meio da madrugada.
Ela tentou beber água; então, foi ao banheiro; contou carneirinhos; trocou o lençol; por fim, se sentou na cama e ficou olhando para o nada. A Bela sorridente em sua calça começou a parecer entediada depois de tantos olhares fixos dirigidos à sua figura. Nem princesas gostavam de tanta atenção, afinal? Amélia balançou a cabeça. Estava perturbada a ponto de começar a analisar desenhos no pijama, então. Perfeito.
A moça se levantou de novo, desistindo, e abriu a janela do quarto. Fechou os olhos em desconforto por alguns segundos. Quando abriu, pôde ver, com mais nitidez, a luz do sol despontando ao longe. Tinha ficado acordada tanto tempo assim?
O despertador de seu celular começou a tocar o típico Minueto de Bach. A luz do sol começava a colorir o céu cinza com mais vigor. Amélia deixou as mãos caírem ao lado do corpo. A visão era diferente de quando o sol se despedia; não anunciava um fim, mas um começo.
Como não tinha reparado no quão fascinante e poético era o contraste do azul e do laranja antes?
Inclusive, nunca tinha prestado atenção na expressividade do toque bobo do despertador antes. Era um daqueles momentos em que a dimensão que habitava anteriormente tinha mudado por completo, sem sua permissão.
Amélia apoiou os braços no peitoril da janela. O calor a atingiu com certa suavidade, como um afago de conforto. Uma das sutilezas da vida – na verdade, uma das consequências de se estar viva, afinal.
A moça escancarou a janela um pouco mais e foi procurar sua camiseta florida favorita no armário. Iria trabalhar com ela. E, antes que sua consciência tivesse processado por completo, também já havia decidido colocar a caneta preta de Ícaro no bolso da calça jeans.
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