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Ao dar play na multimídia, você ouvirá: Etude No. 2 - Philip Glass
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— Tem certeza de que não quer nem uma água, moça?
— Não, obrigada. — Amélia acenou para o homem, que tinha uma grande caixa de isopor perto dos pés, apoiada na calçada.
Ele deu de ombros e voltou a gritar detalhes sobre as bebidas que vendia, no intuito de atrair a atenção de quem passava.
Amélia parou de repente, mordendo os lábios. Foi ultrapassada rapidamente por dois homens que estavam atrás. Deu a volta e abordou o vendedor novamente.
— Na verdade, acho que vou querer sim — disse ela, procurando notas de dinheiro no bolso da calça vermelha.
O vendedor se abaixou para remexer a caixa cheia de gelo. Colocou alguns refrigerantes e sucos para o lado direito do objeto, alcançando uma pequena garrafa de água.
— Que calor, não é, moça? Parece que estamos dentro de uma frigideira — disse, levantando-se.
Em resposta, Amélia deu um sorriso tímido. Pegou a garrafa que lhe foi estendida e pagou.
— Obrigada — agradeceu pela segunda vez.
Voltou a andar junto aos passantes, esforçando-se para não cair enquanto tentava abrir a tampa. Nem estava com sede, para ser franca. O primeiro gole foi até forçado. No entanto, o líquido gelado diminuiu um pouco as cambalhotas em seu estômago, o que era a intenção desde o início.
Cada passo que dava era um sacrifício. Quando entrou na rua da livraria, Amélia jurou que podia ouvir as batidas de seu coração, mesmo com a música alta das lojas ao redor e o falatório das pessoas. Inspirou pelo nariz e expirou pela boca. Duas vezes. Olhou para o chão enquanto andava. As rachaduras no cimento ficaram um pouco desfocadas. Amélia apertou a garrafa de água.
Então aquilo era ser corajosa.
Não estava gostando da sensação.
Algumas pessoas a encaravam, mas estava alheia. Conseguiu avistar a porta estreita, cada vez mais próxima. As mãos tremiam de verdade agora. Estava apertando tanto a garrafa que os dedos ficaram brancos.
De súbito, suas pernas travaram. O que diabos estava fazendo?
Girou nos calcanhares com pressa e esbarrou em uma mulher desconhecida. Piscou forte.
A estranha reclamou, mas Amélia não conseguiu ouvir; na verdade, não conseguia nem enxergá-la com nitidez. Apenas assentiu, de forma vaga e desorientada. Virou para a frente, de novo, forçando as pernas pesadas a não retornaram pelo mesmo lugar que tinham vindo. Já tinha ido muito longe, não é? Havia chegado até ali. Preparou-se no dia anterior.
Continuou caminhando. A entrada estreita era evidente agora. Tudo bem, Amélia estava pronta. Estava...
Almas de escritores perdidos, era o que dizia a inscrição na porta, que, por sua vez, estava encostada na parede de dentro.
Amélia parou, encarando os primeiros CD's que apareciam no início do corredor. Todos os que passavam por ela desviavam, com uma expressão desconfiada.
Uma vez, tinha aprendido uma técnica de ajuda para não procrastinar. Só era preciso iniciar uma contagem regressiva. Quando chegasse no zero, começaria a fazer imediatamente o que precisava. Amélia adorava utilizar isso nos deveres de física.
Cinco, quatro. Estreitou os olhos. Três. Engoliu em seco. Dois. Coçou a bochecha com força. Um.
Zero.
Seus pés estavam dentro da livraria de novo.
Todos os rostos dos CD's e DVD's distribuídos nas estantes pareceram encará-la. O cheiro de mofo invadiu suas narinas. Como num filme clichê, Amélia esperou ouvir o estrondo da porta se fechando atrás de si. Conforme avançava, porém, isso não aconteceu. Os ruídos externos se distanciavam e ela só ouvia o barulho de seus próprios passos e de sua respiração acelerada.
Estava no fim do corredor, agora. Olhou para trás, certificando-se de que ainda existia uma saída. Sim, existia. Avançou. A primeira coisa que viu foi a parte traseira de um computador em cima de uma mesa, como da última vez. Parecia intacto.
Atrás da tela, surgiram olhos castanhos. Amélia prendeu a respiração. A troca de olhares pareceu durar tanto que a moça teve certeza de que havia dado tempo de o Apocalipse acontecer do lado de fora.
— Posso ajudar? — A velha levantou, finalmente, apoiando as mãos na mesa. O timbre de sua voz era rouco.
Amélia lembrava nitidamente daquelas mesmas mãos lhe empurrando para fora. Não conseguiu dizer nada. Ouviu um estalo e teve um sobressalto, mas percebeu que era apenas o aperto em volta da garrafa de água.
— Você lembra — falou a senhora, por fim, ajeitando os cabelos pretos (possuidores de um corte considerado masculino) atrás da orelha.
— O que... — A voz da moça estava fraca e inaudível. Pigarreou. — O que aconteceu?
Continuou sendo encarada, mas não obteve resposta nenhuma.
— Quem é ele? — prosseguiu. — O que é aquele livro? Ele está aqui?
A velha deu a volta na mesa, caminhando em direção à Amélia. Parou a poucos metros de distância da visitante. Seus olhos eram como o fundo de um poço vazio e Amélia estava debruçada, com medo de cair.
— Isso vai muito além do que você entende — disse a idosa. — Deveria ficar longe.
Amélia abriu a boca, incrédula. A visão ardeu.
— Mas não posso fingir que não aconteceu — protestou, hesitante.
A intenção não era parecer tão vulnerável, mas não conseguiu controlar; nem conseguia controlar suas pernas eretas.
As pálpebras de Amélia estavam inquietas, e aquilo só provava para a velha que era impossível ignorar o medo e a indignação presentes no ar.
— E eu não posso fazer nada por você.
— Por que não?! — Aumentou o tom de voz e a garrafa estralou ainda mais em suas mãos.
— Suas dúvidas não serão respondidas por mim — esclareceu a senhora, pausadamente.
Como se algo tivesse sido invocado com aquelas palavras, o ar tornou a ficar gélido. A corrente fria que havia atravessado a cabeça de Amélia, dias atrás, apareceu novamente, confundindo seus sentidos.
Dessa vez, alguma coisa parecida com um leve sopro na nuca foi acrescentada às suas sensações. Amélia manteve um grito sufocado na garganta. A garrafa de água caiu no chão com um baque. Ela fechou os olhos, apertando as pálpebras com força enquanto clarões brancos iam para lá e para cá no meio do preto de sua visão.
— Vai me machucar de novo? — murmurou, ainda sem coragem de abrir os olhos e sem saber exatamente com quem falava.
De modo inexplicável, após Amélia proferir a frase, a temperatura voltou a subir. A corrente fria sumiu. A sensação estranha na nuca também havia desaparecido.
Relutante, abriu os olhos. Luzes coloridas flutuaram à sua frente por alguns segundos, resultado da intensidade com que havia fechado os olhos.
Não havia absolutamente nada no cômodo, apenas a mesma vendedora.
— Você pode seguir em frente com isso, mas é um caminho sem volta — disse a idosa, contornando a mesa e voltando a sentar, como se retornasse ao seu papel de funcionária e obrigasse Amélia a encerrar a questão.
Sem responder nada, a moça deu as costas e refez os passos da entrada, dessa vez para ir embora. Tudo ao redor era um borrão enquanto era engolida pela paranoia de que estava sendo seguida ou observada. Seus pés estavam rápidos e, em menos de cinco segundos, já conseguia ouvir os ruídos da multidão do lado de fora e ver a claridade que vinha da porta aberta.
Então, foi barrada por alguém de camisa preta e braços negros musculosos.
— Ei!
Amélia gritou.
— Calma aí, calma. — Seus ombros foram segurados com força e ela finalmente conseguiu olhou para cima, dando de cara com Natã.
Natã, dentro do corredor da livraria.
Aquilo não. Ele não.
Ela o empurrou para trás com pressa, ignorando os resmungos confusos do rapaz. Logo, estavam misturados à multidão. A moça puxou Natã pela mão, tendo a casa de Ivana como destino.
Nem se preocupou em perguntar como ele a havia achado, o que estava fazendo lá, o quanto sua presença era estranha, se tinha saído mais cedo da loja. Não conseguia nem disfarçar que estava perturbada. Só conseguia pensar nas palavras da velha: não tinha volta. Não tinha volta? O que deveria fazer com isso?
Natã percebeu o aperto forte e tenso da amiga em seus dedos. Sabiamente, decidiu não falar nada até que estivessem longe do barulho e da confusão das ruas.
Amélia caminhava rápido e sua respiração acelerada combinava com seus pensamentos. Quando chegaram em frente à casa de Ivana, ela foi parada por Natã e obrigada a encostar no portão cinza. Por sorte, ninguém circulava por ali, o que deu a privacidade que ele precisava.
— Você não viu minhas mensagens — começou o rapaz. — Não atendeu minhas ligações. Saiu no horário de almoço sem avisar para a minha mãe, que por acaso me ligou desesperada no trabalho porque você não voltava. Você não é impedida de sair, mas sabe que ela se preocupa. — Natã apoiou o braço no portão atrás de Amélia quando ela desviou os olhos.
— Desculpa. — Tinha dito isso mesmo? Não era certeza; estava com um zumbido estranho nos ouvidos, relembrando como era estar de volta ao que era real.
— Então — continuou ele, como se não tivesse escutado. — Tive que ir atrás de você e imaginei que tivesse perdido a noção do tempo em alguma livraria, porque você parece ter vento na cabeça às vezes. E você realmente estava lá, mas assustada e agindo estranho, como se precisasse fugir de uma assombração ridícula, exatamente como aconteceu quando fomos na boate.
Depois de soltar tudo, ele respirou fundo. Amélia franziu os lábios.
— Qual é, Amélia? O que está rolando nessas últimas semanas? Fizeram... Alguma coisa com você? À força? — O retrato do rosto de Natã era raivoso e até angustiado.
— Não! Não — negou com convicção. Não exatamente, pensou, sem verbalizar, no entanto.
Sentia-se mais segura com a presença do melhor amigo, mas não a ponto de se concentrar em dar uma explicação plausível. Suas pernas bambas lhe lembravam o quanto estava apavorada.
— Desculpa. — Suspirou. Inútil. Não era aquilo que queria dizer. — Você já sentiu tanto medo a ponto de querer sofrer amnésia para não lembrar de como é sentir medo?
— Já.
— E parece que o mundo não é mais o mesmo e que você precisa fazer alguma coisa ou vai enlouquecer? Mas, ao mesmo tempo, sabe que não consegue porque não tem coragem e isso é muito mais complexo e assustador do que tudo o que já viu em toda a sua mísera existência?
Amélia inspirou. E expirou. Natã aproximou-se da amiga, perto o suficiente para que ela sentisse o cheiro de sua colônia masculina e relaxasse mais.
— É, acho que já senti algo perto disso. — Ele bufou, confuso com a conversa. — Mas as melhores coisas da vida acontecem quando você decide fazer algo. As piores também, é claro. — Natã franziu a testa. — Só que você só vai saber se não ficar parada. E vou estar aqui para lidarmos com as suas piores escolhas, mesmo que não queira me contar quais são e fale em entrelinhas.
Amélia assentiu. Apesar das boas intenções, é claro que não era tão simples. Porém não queria colocá-lo nisso. Não queria prejudicá-lo. E essa era a única escolha que sabia ser certa no momento.
A moça abraçou o rapaz, enterrando o rosto em sua camisa confortável. Os braços de Natã também a envolveram com força. Era quente. Aconchegante. Uma dose cheia de normalidade.
Quando Amélia o soltou, ficou confusa ao perceber que ele não fez o mesmo; os braços do amigo continuavam em sua cintura e ele continuava perto. Desnecessariamente perto.
Ao ter uma mínima noção do que estava acontecendo, já era tarde demais, porque seus olhos fecharam em reflexo quando Natã a beijou.
Amélia só conseguiu pensar em como as coisas tinham acabado de ficar mais anormais.
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