Capítulo 2 - Prelúdio ao Caos
4 anos depois…
Todo dia há 4 anos, eu tinha o mesmo sonho e via o mesmo cara, mas dessa vez foi diferente. Eu lembro que estávamos num lugar sereno e de paz, apenas eu e ele, mas eu não conseguia mais ver seu rosto, tudo estava embaçado e translúcido. Neste último sonho, o misterioso homem pedia para que eu saísse de seu caminho, pois ele tinha um plano para executar e seria capaz de qualquer coisa para conseguir.
Não sei quanto à veracidade dos sonhos, mas a minha mãe costumava dizer que eles tinham um teor de verdade. Ultimamente, eu quero mais é que se foda qualquer cara gostoso que venha encher meu saco fora da minha cama, sem sonhos e conversinhas, pelo menos o sonho chato tinha enigmático tinha acabado e eu poderia parar de tentar resolvê-los como se fossem a porra de um quebra-cabeça.
E é neste momento, que eu inicio mais um dia sendo a Verônica Montenegro que todos esperam. Coloco minha playlist "badgirl fodona" para tocar no Spotify e começa a tocar Bad Guy da Billie Eilish enquanto eu entro numa banheira, a água não estava mais tão aquecida quanto antes, mas na minha vida, eu não tinha tempo para aproveitar todos os prazeres que o dinheiro esbanjava, pelo contrário, quanto mais dinheiro eu tinha, mais problemas surgiam. Desde que assumi a presidência da Major Temple, meu pai não parava de infernizar a minha vida em seus detalhes mais sórdidos, o único momento de paz que eu tinha era quando estava num bar, dançando com mulheres e homens embriagados com as cervejas mais baratas da cidade.
Não sei quanto tempo passa, mas o meu banho com certeza dura menos tempo do que as músicas da Rihanna que começam a tocar na playlist. Limpo o espelho manchado de vapor e vejo as olheiras marcantes no meu rosto pálido, o cabelo preto, longo e liso, parece opaco. Preciso de um banho de loja, um corte novo, sapatos e uma reviravolta nessa minha vida de cervejas e bares. Estou cansada de viver todos os dias como se ainda fossem os mesmos.
De toalha, desço as escadas e saio do banheiro do meu quarto, seguindo até a cozinha, pego uma taça e sirvo uma generosa quantidade de champanhe na pequena adega, o sabor agridoce se mistura a um leve amargor na minha boca, somente após a segunda taça, sinto que estou pronta e leve para iniciar mais um dia. Era como uma dose inebriante de coragem percorrendo as minhas veias.
Seco o cabelo, pego um vestido bem-passado na cor azul petróleo e passo maquiagem nas olheiras que sempre denunciam os dias péssimos que venho tendo. Estou exausta, de mim, e da solidão que parece preencher todas as lacunas do meu coração e do meu apartamento. Ainda estou passando batom quando escuto a buzina estridente lá fora, Amaro Montenegro veio me buscar para a reunião tão esperada entre os sócios da construtora, que agora estava arregaçando as mangas para conseguir a licitação municipal para a construção de um grande hospital na cidade em uma parceria público-privada.
Quando enfim me sinto pronta, pego o celular, a carteira, a bolsa, dou uma olhada no espelho da sala ornada com os melhores móveis e ainda sinto um vazio imenso ao passar pela porta. Sinto falta dos melhores momentos que vivi com Lynna nesta casa, a minha casa, que sempre foi tão minha quanto dela…
— Bom dia, senhorita Verônica — Alex fala educadamente, abrindo a porta do carro. Não percebi que já tinha saído de casa, o piloto automático me guiou até o veículo sport blindado.
— Bom dia. — Adentro na parte traseira e vejo meu pai, alheio no celular, mexendo em qualquer coisa que valha mais do que me dar um simples bom dia pela manhã.
Os olhos escuros e a barba por fazer, junto ao cabelo que se mistura entre grisalho e preto, o fazem um homem elegante e bonito no terno caro. Uma pena que ele seja tão vazio por dentro, assim como eu estou me tornando agora. Talvez seja hereditário.
— Bom dia, Verônica — papai desvia os olhos do celular por alguns segundos, analisa minha postura e as vestes, tão rapidamente e inconclusivo que eu me assustaria se não o conhecesse bem. — Hoje é um novo dia na empresa, um novo começo e você vai precisar de ajuda, por isso eu contratei um…
Neste momento, é a minha vez de desligar-se das palavras que parecem tão desconexas na minha audição. Como Amaro Montenegro tinha meia dúzia de palavras a dizer antes das oito da manhã? Trabalho, trabalho, trabalho… Eu jamais entenderia tamanho tesão pelos negócios, mas honestamente, estava indisposta demais para descobrir o que caralho mudaria a partir de agora. Eu ainda não sabia que tudo que eu conhecia, em breve se tornaria apenas resquícios de quem sou.
***
Chegamos na empresa e o letreiro em contrapartida as vidraças sempre chamam minha atenção. Um prédio imponente de quinze andares, divididos por setores de hierarquia, a família Montenegro sempre almejou que a cidade inteira estivesse aos seus céus, e hoje, seria um dia decisivo para isso. Nós iremos fechar um contrato de construção com a prefeitura de Missy Turn, um grande passo para nós.
— Te vejo daqui a pouco, Verônica. Seja cordial com o rapaz, ele vai ser o seu braço direito agora — Amaro pediu de modo quase educado, saindo às pressas para sua sala. Eu mal tive tempo de perguntar sobre o que diabos ele estava falando, mas teria que fingir que prestei atenção no que ele disse.
Agora eu terei a porra de um funcionário dele no meu pé? Um braço-direito? Tomara que ao menos seja gostoso e interessante, para que possamos falar de outras coisas além do trabalho. Tento não pensar em sexo quando adentro no elevador, subindo ao 10° andar, com os saltos de bico fino estalando de forma irritante no porcelanato. Estou me odiando hoje, na verdade, tudo parece incômodo demais, talvez seja a ansiedade remexendo as entranhas do meu âmago… Papai esqueceu, mas eu não… Hoje faz 4 anos que minha irmã partiu e aquela dor ainda estava ali, se esgueirando no meu peito… Tento respirar fundo e não correr até a minha sala, mas os funcionários estão por toda parte, distribuindo sorrisos e simpatia, mas sei que eles nos odeiam. Os seres humanos odeiam jogos de poder e hierarquias, exceto quando eles estão no topo.
Quando finalmente chego ao fim do corredor e entro na minha sala, solto um suspiro fundo e pausado, recobrando as minhas forças e energias. Apesar do caos matinal, minha sala ainda parece ser minha identidade. Vejo os livros na biblioteca, com títulos de fantasia, romances, aventuras, desta vez eu fiz diferente, não enchi minha biblioteca com renomados títulos sobre negócios e carreiras, apenas trouxe os livros que já li durante a adolescência, talvez como um tipo de conforto, um lar para voltar quando as coisas estão difíceis. Suspiro fundo, indo à estante e passando a mão na madeira do móvel, segurando um exemplar de Percy Jackson, meu melhor amigo literário na escola. Sinto um aperto no peito ao lembrar dos amigos e coisas que deixei para trás depois que virei adulta, eu tinha esquecido o poder que as palavras e os livros têm, de sempre nos fazer voltar ao passado.
— Bom dia, senhorita Verônica. — A voz grossa e desconhecida inunda a sala de modo que sou surpreendida e quando olho para a direção da porta, o livro rapidamente cai das minhas mãos. — Meu nome é Rafael Pontes, serei o seu assessor.
O homem me soa tão familiar que um arrepio toma conta do meu corpo, da cabeça aos pés, como se ele tivesse uma energia única. Ele é muito alto, forte, tem o cabelo raspado no formato de corte militar, está elegante nas roupas formais, tem olhos negros e escuros e a pele, apesar de branca é bronzeada, como se praticasse atividades ao sol, eu suponho.
— Desculpe, eu não queria assustá-la. — Ele me tira do transe patético que estou e pega os livros, chegando tão rápido onde permaneço de pé que parece até um fantasma se projetando sob meus olhos. — Percy Jackson… Interessante.
— Bom dia, Rafael. — Levo apenas um segundo para me recompor, pois percebo que deixei escapar parte de quem sou. Um livro, algumas páginas, mas que carrega uma trajetória imensurável, minha e do Percy. — Seja bem-vindo ao Major Temple. Eu não acho que esteja precisando de um assessor ou algo do tipo, mas se designaram você para esta função, espero que saiba a responsabilidade que tem em mãos. Eu não sou apenas a filha do chefe, eu sou o braço-direito do meu pai nesta empresa, que isso esteja dito desde o início.
E ali está, a Verônica de sempre, tão impenetrável quanto um diamante bruto. Ele não parece assustado, na verdade, parece curioso a meu respeito. O que é algo que eu não aprecio, todos os homens nesta empresa têm medo de mim, mas este, parece que vai me trazer problemas, principalmente por estarmos estranhamente próximos demais da minha estante, do meu universo particular. Uma situação que eu contorno, o chamando para sentar. Rafael não demora seu olhar nos tons dourado rosé e branco do meu escritório, nos meus quadros. Seus olhos estão focados em mim, de modo que quase me deixam desconfortável, mas eu não vou baixar a guarda, serei firme na minha posição. Agora, sentados, percebo que ele parece familiar, mas nunca nos vimos antes, eu acredito… Espero que não tenhamos nos conhecido em algum bar dessa cidade fodida.
— Eu compreendo, senhorita, Verônica. Sei bem o tipo de situação hierárquica que estamos lidando. Principalmente em função do meu currículo impecável, acredito que iremos trabalhar bem juntos. Veja, já fui assessor do prefeito Washington, sempre remediava os escândalos dele, fotos vazadas, etc… — Rafael sorri, de um modo que toda a postura séria evacua de seu semblante em um breve momento, enquanto ele me mostra um tablet com as principais atribuições de seu currículo.
— Então, você está aqui para cobrir os meus rastros? — presumo, ganhando a atenção dele de forma diferente agora, o humor sumiu, deu lugar para a tensão. — Eu não preciso da porra de um espião do meu pai no meu encalço. Eu nunca deixei rastros, não tenho vestígios do meu comportamento — cruzo as pernas por baixo da mesa, tentando não elevar o tom, Rafael permanece em silêncio e eu não sei até que ponto isso é bom.
— Eu não sou o espião do seu pai, eu quero ser o seu homem de confiança — ele diz, com um olhar concentrado e um pouco desconcertante, mas neste jogo de olhares, eu não sou amadora.
— Eu não confio em nenhum homem, Rafael. Nem mesmo os que ficam por baixo de mim — devolvo a prerrogativa, arqueando levemente a sobrancelha esquerda.
— Isso seria um prazer indescritível — ele fecha o tablet e assume uma posição mais descontraída, deixando um leve sorriso no canto dos lábios se projetar, sensual e sugestivo na medida certa — … ganhar a sua confiança, quero dizer.
— Bom dia, senhorita Verônica, a reunião vai começar — Kimberly adentra na sala como um carro desgovernado, esqueci completamente de fechar a porta, mas não tínhamos dito nada de comprometedor, mas de algum modo, parecia que estávamos tirando a roupa um do outro somente com o olhar e habilidades na fala.
— Podemos ir, senhorita Verônica? — Rafael levanta da cadeira, ajustando o terno preto e a gravata, agora reparei, ele era bem mais bonito do que os homens dessa empresa costumam ser. Kimberly, também percebeu isso e não se intimidou ao falar baixo no meu ouvido quando saímos da sala, caminhando na frente dele.
— Minha nossa, dona Verônica, esse homem vai passar no RH todo dia por causa da inveja dos homens feios do prédio — rimos baixo, enquanto seguimos pelo corredor em direção a sala. Rafael nos segue e finge não se importar com os olhares nada discretos da assistente do meu pai, com traços sul-asiáticos e cabelo ruivo. Ela era baixinha, mas ainda assim, bonita, espero que esses dois não me deem trabalho juntos.
Quando enfim chegamos na sala da diretoria, sou informada pelo secretário de comunicação do atual prefeito que a reunião é de portas fechadas e meu pai tinha concordado com isso. Sou assim, deixada de lado após tanta dedicação, enquanto os homens tomam a decisão na sala. Não esperneio, não forço a porta, não adentro irrompendo como um foguete ou fazendo escândalo. Apenas dou uma olhada no meu próprio reflexo em um espelho no corredor, enquanto Kimberly e Rafael tentam não se solidarizar com a raiva ou até com a angústia que estou sentindo. Raiva, eu sentia apenas raiva, mas estava controlando tudo da melhor forma que consigo e a vida inteira aprendi a lidar: sufocando os meus sentimentos.
— Bom, Rafael, acho que está na hora de voltarmos para o nosso assunto inicial do seu primeiro dia de trabalho. Todos os eventos que irei participar este ano e todos os eventos que poderei evitar também — me dirijo ao homem que agora parece ajustar os pequenos fios pretos que se projetam em sua cabeça, o cabelo, apesar de curto é bastante espesso… Preciso parar de olhar para este homem com tanta curiosidade. — Kimberly, vamos rever algumas propostas que estão em atraso, rever alguns contratos em análise. Está na hora de trabalharmos e colocarmos a casa em ordem.
[...]
Os passos lamacentos se tornam pesados, enquanto o líquido quente na garrafa é o único som audível em meio aos meus pés que se movem em direção ao túmulo de Lynna. Estou chorando, a maquiagem está borrada, coço os olhos, grito xingamentos e me encontro ali, perdida em meio ao jazigo com flores, os amigos ainda a visitavam… Uma sorte que nossa mãe jamais teve, ela foi enterrada em sua terra Natal e não pudemos dar o último adeus, nunca visitamos o túmulo dela por mera superstição com cemitérios, mas cá estava eu, conversando com o túmulo da minha irmã como se ela pudesse me ouvir. Eu sentia falta de conversar com ela, de me sentir amada, acolhida, como se eu pudesse ser eu com alguém, sem as amarras, sem os bloqueios emocionais, como se pudesse tirar minha armadura e ver um filme bobo de comédia romântica, sem ser a porcaria cult que papai sempre nos enfiava goela abaixo, estratégias de guerra, negócios, assistíamos filmes de princesas e romances quando ele dormia, e eu sentia em cada gota do meu ser o quanto meu pai odiava ter tido filhas mulheres, menos a Lynna, ela era o tesouro da coroa dele, e eu, era apenas eu…
— Você não deveria ficar aqui sozinha… — a voz familiar causa um arrepio na minha nuca, me viro e vejo Rafael próximo a mim. A roupa dele está encharcada, colada ao corpo, exibindo inúmeras tatuagens que não consigo decifrar sobre o tecido.
— Não estamos sozinhos, na verdade, há muitos deles por aqui… — rio de forma nasal com a piada infame, alheia às liberdades oferecidas pelo álcool. — Você está me seguindo? O meu assessor é meu guarda-costas?
— Eu só quero proteger você, nem que seja de si mesma, Verônica. Eu não vou te machucar, acredite, não estou na empresa somente pelo dinheiro, eu tenho uma missão, mas você está bêbada demais para acreditar em mim — ele confessa, me tomando em seus braços de uma forma que me assusta, eu poderia me debater ou chutar o saco dele, mas estou cansada e seu colo me conforta.
— Você não vai conseguir me proteger, Rafael. Todo mundo que se aproxima de mim… — um aperto no peito me assola rapidamente, meus olhos parecem pesados demais para se manterem abertos. Rafael me carrega como se eu fosse um passarinho que acabara de quebrar a asa ao cair do ninho.
— É isso que você diz para afastar as pessoas, mas eu não vou embora, Verônica. Nós temos um assunto pendente, sua família e eu… Eu só vou embora quando tiver terminado, ainda está cedo para deixá-la — Rafael diz, sem se parecer se importar com mais nada, o mundo parece estar em câmera lenta neste momento.
— E o que acontece comigo depois que você for embora? — minha voz parece sair embargada, incompreensível, ininteligível, estou me sentindo em apuros nos braços que parecem tão acolhedores e quentes, mas agora parecem frios e cruéis, como um presságio, o abraço mortal de um inimigo.
— Aí será tarde para nós dois, o destino me prometeu você, mas eu ainda não sei qual é o propósito dele para nós dois. Eu também sou seu prometido, mas ainda não sei se estarei vivo ou morto quando tudo acabar — ele ri e seus olhos negros me encaram, descendo levemente para minha boca. — Você foi o único vestígio que eu não consegui me livrar, a única prova do que eu fiz, Verônica. Você é o único fio que me prende a este mundo. Eu pertenço a você do mesmo modo que você pertence a mim. Mas, não há um final feliz para nós. Eu sinto muito por isso.
E quando Rafael se inclina para me beijar, escuto 6 disparos vindo atrás de nós e ele cai de joelhos, me derrubando de seus braços, as balas não me atingiram, eu as vi sair do corpo dele, que agora está imóvel sob a poça de seu próprio sangue, eu grito, um grito sofrível de quem perdeu a metade si, mas antes que pudesse enxergar o autor dos disparos, também sou alvejada, desta vez, sinto o cano frio na nuca antes de proferir qualquer palavra, meu corpo inerte se junta ao de Rafael e uma voz sobrenatural nos diz, quando o mundo parece perder sua tonalidade aos poucos:
— Não há destino para aqueles que se apaixonam em meio ao caos de uma vingança, apenas sofrimento, dor e lástima. Agora, o ciclo está encerrado.
E de repente, um trovão ressoa lá fora e eu acordo com um suspiro fundo, aspirando todo o ar que consigo, sentindo uma dor na nuca. Eu tinha sonhado, aquilo foi a porra de um sonho ou talvez uma premonição. Eu tinha que ficar longe de Rafael, ou nós dois poderíamos correr risco de vida. Mas isso parecia uma coisa estúpida e supersticiosa, não me impressionarei com um sonho idiota, foi apenas isso. A porra de um sonho.
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