II • Respire.
"Ele nada lhe dará, o momento presente. Deixe que ele respire, como uma coisa viva. Respire você também, como essa coisa viva que você é."
— Caio Fernando Abreu.
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Assim que atravessei o que julguei ser um portal, a dor pareceu passar, mas ainda sentia o fantasma dela em meus membros, os tornando cansados e dormentes. Porém havia algo estranho, tudo estava leve demais e ao mesmo tempo pesado demais.
Abri os olhos, sentindo um leve incômodo neles quando percebi que estava debaixo d'água. Meu corpo tensionou assim que olhei para baixo, não conseguindo ver o fundo e ao mesmo tempo sendo puxada para ele. Comecei a nadar para cima, onde podia ver alguns raios de sol lutando para chegar até mim, considerando a profundidade, porém meus movimentos se tornaram sem jeito e desesperados quando percebi que precisaria respirar em alguns segundos.
Tentei lutar contra a água, percebendo que a cada esforço que eu fazia, mais ela me puxava para baixo. Meus pulmões já começavam a doer com a falta de oxigênio, e eu me perguntava por quê aquilo estava acontecendo. Após algumas tentativas, senti meu corpo cada vez mais dormente, a esperança de que conseguiria nadar até o topo foi se dissipando.
Toda aquela luta para nada.
Então fechei os olhos, deixando que a água me levasse. Por algum motivo aquela sensação parecia familiar, como se eu já tivesse afundado naquele mesmo lugar um milhão de vezes antes, sem nunca ter lutado para ir até a superfície. A sensação me deu uma memória de volta: a de que eu voltaria direto para o Vazio assim que chegasse ao fundo.
Franzi o cenho, indignada pelo fato de que passei por tudo aquilo para voltar daquele jeito. Enquanto isso, meus pulmões doíam ainda mais, e podia sentir minha consciência se esvaindo aos poucos. Assim que ficasse desacordada voltaria para a imensidão vazia em que eu estava antes, e, pelo que parecia a primeira vez, eu não quis isso.
Num impulso que tinha certeza que não tive antes na última vez que estive ali, respirei fundo, pronta para sentir a água entrando em meu corpo. Mas, para minha surpresa, ar puro entrou, me fazendo arregalar os olhos. Eu podia respirar ali. A água já não parecia me puxar mais tão forte como antes.
Após alguns momentos respirando, comecei a nadar calmamente, percebendo a superfície ficando mais perto e tudo ficando cada vez mais claro. Estava quase lá, já quase podia sentir o calor do sol. Algo no fundo da água grunhiu, parecendo descontente com o fato que eu tinha escapado, e meu corpo inteiro tremeu ao imaginar o que poderia estar ali.
Assim que cheguei à superfície, puxei mais ar para dentro dos meus pulmões, sentindo o sol bater gentilmente na minha pele molhada e me aquecendo. Algo em mim sabia que era a primeira vez que havia conseguido nadar até a superfície. Olhei em volta, a procura de um lugar em que eu pudesse sair da água, e notei uma pequena ilha no meio do oceano em que eu me encontrava. Para minha sorte, ela não estava longe.
Nadei até chegar na areia, deitando nela e olhando para o céu azul, ainda sentindo meu corpo levemente dormente. Não esperava que a dormência fosse sumir por algum tempo. Algumas nuvens passavam tranquilamente no céu com o vendo as levando para longe, e as observei enquanto esperava que meu corpo se recuperasse um pouco mais antes que eu pudesse levantar novamente.
Quando me sentei na areia da praia, me virei para olhar para a ilha atrás de mim. Árvores e palmeiras dividiam o cenário verde, juntamente com arbustos e algumas flores. Um pequeno paraíso em meio a um oceano aterrorizante. Fiquei de pé, limpando a areia de minhas roupas e começando a andar para explorar a pequena ilha.
Parei assim que notei uma movimentação nos arbustos, dando um passo para trás, hesitante em continuar minha caminhada, quando logo uma criança saiu de meio dos arbustos, pulando em cima de mim. Era uma garota, vestida com roupas formais demais para uma ilha, que não parecia ter mais de oito anos de idade.
Ela subiu em cima de mim, me encarando enquanto eu apenas a olhava sem entender o que acontecia.
— Não é ela! — a garotinha falou, parecendo desapontada. — Parecia ser ela, mas não é.
Frustrada, ela saiu de cima de meu corpo, andando a passos largos para se enfiar no meio da ilha novamente, me fazendo levantar num pulo e a seguir.
— Quem é você?
— Claramente não é ela, já que nem sabe quem eu sou! — a garotinha exclamou, parecendo ainda mais desapontada em eu não ser quem quer que ela procurava.
— Meu nome Helena. Você pode por favor me ajudar? Eu não sei onde estou...
A criança parou, virando para mim com uma expressão beirando o escárnio, antes de caminhar até mim e me cutucar no estômago com o dedo, parecendo querer me ameaçar.
— Você não é Helena.
Franzi o cenho, levemente ofendida com a garota e pus as mãos na cintura, vendo-a levantar uma sobrancelha.
— E quem é você para dizer quem eu sou ou não? — respirei fundo, decidindo que não queria brigar com uma criança, e a olhei com um pouco de desespero. — Olha, por favor, eu preciso de ajuda. Eu não sei o que estou fazendo aqui nem o que fazer. Por favor, me ajude.
A garota hesitou, me olhando por uns segundos antes de bufar e segurar minha mão, me guiando para algum lugar. Sem muita escolha, apenas a segui, tirando um momento para olhar tudo ao meu redor. Mesmo com o véu que ainda estava em meus olhos, tudo parecia muito colorido e iluminado. Me perguntei como deveria ser aquele lugar sem o véu para impedir meus olhos. Algo dentro de mim disse que eu sabia como era, apenas não recordava. Senti lágrimas em meus olhos.
Saudade.
Algo em meu peito doeu ao perceber que sentia saudade daquele lugar, mesmo sem lembrar direito de como ele era agora. Parecia apenas uma lembrança distante. Pareciam fazer anos que eu não o via de novo. Passei a mão em meu rosto para enxugar as lágrimas, sentindo o tecido áspero do véu arranhar levemente minha pele, e desejei que pudesse tirá-lo de uma vez, mas, mesmo assim, ele ainda estava preso a mim por algum motivo.
Após alguns momentos caminhando, percebi uma pequena casa estranha em meio à mata. Franzi o cenho assim que o sentimento de saudade me bateu novamente e engoli em seco, o sentindo incomodar agora. A garota pareceu perceber minha inquietação e se virou para mim, parando de andar e me olhando com certa preocupação.
— Respire fundo, — a voz dela parecia mais forte agora, como se não fosse mais uma criança e sua forma pareceu mudar levemente, parecendo crescer um pouco. — inspire por quatro segundos, segure por mais quatro, e solte por mais quatro. Você está bem.
Fiz como ela disse, vendo-a me observar enquanto a respiração me acalmava e fechei os olhos, me concentrando apenas no ar que entrava e saía de meus pulmões. Assim que me senti mais calma novamente, abri os olhos, vendo a garotinha de novo na minha frente.
— Tente conter suas emoções aqui... Não é divertido quando ele aparece aqui também.
Senti um calafrio, sabendo exatamente de quem ela falava, e engoli em seco antes de assentir. Assim que julgou que eu estava bem, a garotinha me guiou para dentro da casa e tudo pareceu familiar demais. Olhei em volta para a sala de estar que ficava logo atrás da porta de entrada, vendo a mesa de jantar próxima à porta. Mais a frente um sofá e uma estante com fotos borradas e a tv. Notei algo estranho quando virei o rosto para olhar para o corredor, vendo que as coisas ficavam embaçadas quando eu as olhava com o canto do olho.
Apesar de familiar, também era confuso. A sala não parecia ser sempre a mesma quando eu a olhava, como se os móveis mudassem de lugar levemente. Olhei para a garota, que agora estava do meu lado, vendo-a com uma expressão tristonha, e franzi o cenho.
— Você está esquecendo... — ela murmurou.
— Esquecendo de quê?
— Foi aqui que crescemos juntas. Faz tanto tempo...
Olhei em volta novamente, o sentimento de familiaridade nunca me deixando, mesmo que o cenário continuasse a se modificar como se não se decidisse que forma tomaria. Outra pequena lembrança me voltou à mente: uma criança brincando no chão daquela sala, assistindo tv, ou apenas estando ali.
Era minha casa.
— É uma memória antiga. — a garotinha falou, indo até um dos cantos da sala onde agora uma grande caixa de brinquedos estava, pegando uma boneca com o rosto completamente riscado do topo da pilha. Pude ver a garota sorrir tristemente. — Eu ainda estava com você quando você vivia nesse lugar.
— Quem é você?
— Infância. — ela disse, seus olhos se virando para mim, me fazendo engolir em seco. — Não nos vemos faz um tempo.
×××
Após alguns minutos eu já havia explorado a casa toda novamente, recobrando quase todas as memórias. O quarto de meus pais foi um dos mais confusos, uma vez que, em alguns momentos, uma cama infantil aparecia ao lado da cama de casal que existia ali. Em outros momentos era apenas a cama de casal. Esbarrei nas duas sem querer. O banheiro da casa as vezes desaparecia, se tornando um canto sem saída e escuro, quase como que saído de um pesadelo. Meu antigo quarto parecia ter sido o único que fui capaz de recordar com precisão, encontrando até um pedaço do assoalho que estava solto, com o qual eu brincava quando pequena. O sentimento de saudade ainda estava lá, juntamente com uma certa angústia pelas memórias do lugar.
Assim que terminei de explorar o que queria, voltei à sala, encontrando Infância sentada à mesa com a boneca em mãos, a encarando como se estivesse cansada. Me aproximei calmamente e sentei à mesa com ela, hesitando em falar alguma coisa. Mas não precisei falar nada, uma vez que a garota falou por mim.
— Você teve uma boa infância. — sua voz soava longe, como se ela estivesse apenas externando seus pensamentos. — Coisas ruins aconteceram que a fez crescer mais rápido, mas foi uma boa infância... Não entendo por quê foi parar no Vazio...
Franzi o cenho, pensando em suas palavras e baixando meus olhos para a madeira clara da mesa. Algumas poucas memórias pareciam voltar ali, mas eram dolorosas, e o sentimento de falta que havia sentido ao acordar parecia ficar mais latente a cada momento em que eu me lembrava delas.
Meus pensamentos foram interrompidos ao ouvir batidas na porta de madeira, Infância e eu olhando curiosas para a fonte do barulho. Me levantei com cuidado, abrindo uma brecha na porta para ver quem estava ali e respirei aliviada assim que vi o sorriso de Esperança em minha direção. Abri a porta, dando espaço para que ela entrasse, e logo a mulher notou a presença de Infância.
— Você a trouxe segura para cá!
Infância apenas deu de ombros, não parecendo nem um pouco surpresa com a chegada de Esperança.
— Não podia deixar ela sozinha no meio do mato. Deixar que ele entre aqui por ela estar confusa não era uma opção. Foi o único lugar que que ele ainda não estragou...
Esperança franziu o cenho, desconfiada, bufando.
— Infância, você sabe bem que foi aqui que ele–
— Não.
Senti um calafrio ao ouvir a dureza na voz de infância. Seu corpo pareceu tensionar e o ambiente à minha volta escureceu como se fosse noite, me fazendo engolir em seco. Esperança ainda brilhava em meio àquela escuridão, parecendo olhar para a garota com pena.
— Não foi aqui. Não foi comigo. — suas mãos apertaram a boneca com força, seu corpo de pano sendo amassado por suas pequenas mãos. — Eu fui boa para ela. Ela teve tudo–
— E ainda assim ela sofreu.
A escuridão pareceu crescer e meu coração agora batia mais rápido, a casa – antes aconchegante – agora lembrava um pesadelo, e eu só queria acordar dele. Esperança percebeu minha inquietude, vindo até mim e pondo a mão em meu rosto gentilmente, me fazendo me acalmar um pouco, antes de virar o rosto para Infância novamente.
— Está assustando ela...
Infância pareceu tensionar mais uma vez antes de relaxar completamente o corpo, voltando ao normal e trazendo de volta a luz que havia deixado o cômodo. Esperança caminhou até a garota calmamente, passando as mãos em seus ombros como se a estivesse tentando acalmar.
— Precisamos tirá-la daqui... — a voz de Esperança agora era quase um sussurro para a garota. — Ela não pode ficar aqui para sempre.
— Ela vai me esquecer...
— Não... — Esperança virou para mim, sorrindo gentilmente. — Não vai. Ela só precisa de uma ajuda para tirar o véu. Ela só precisa ver.
Infância pareceu hesitar antes de assentir e levantar da cadeira, olhando para mim e respirando fundo, agora podendo ver que ela tinha lágrimas nos seus olhos, me fazendo sentir pena.
— Então vamos tirar o véu.
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• E aqui estamos no fim do segundo capítulo. Esse foi mais demorado para escrever mas valeu a pena. Espero que tenham gostado do capítulo e peço que por favor deixem algum comentário para eu saber se gostaram ou não! Escritores são mais encorajados se tiverem respostas dos leitores, e eu não sou diferente.
Obrigada por lerem, até o próximo capítulo.
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