UM
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31 DE DEZEMBRO DE 2008
📍Em algum lugar entre Barcelona e Paris.
15 HORAS PARA O ANO NOVO
Nada como um romance.
Mas um romance que, certamente, não acabaria bem. Foi o que Alanis pensou ao passar mais uma página de Orgulho e Preconceito.
Certa vez, lhe disseram que ela estava com atraso literário por nunca ter lido a clássica obra de Jane Austen. Que coisa patética, ela pensou, discordando silenciosamente enquanto se controlava para não revirar os olhos quando ouviu tal alegação.
Para ela, não havia tempo certo para ler um livro. Nunca era cedo demais e, também, nunca era tarde demais.
Assim como o romance de Elizabeth com o Sr. Darcy, que não foi planejado com o tempo. Eles não esperavam se apaixonar, mas aconteceu. E, agora, as circunstâncias que o cercam estão fazendo de tudo para que não fiquem juntos.
É um clichê, mas é um clássico do clichê, um precursor. Ela prefere livros de aventura e fantasia, mas deu o braço a torcer porque estava se sentindo mais sentimental que o comum. E por razões que a psicologia talvez explique, os seres humanos tendem a consumir aquilo que sentem.
Mas quem poderia julgá-la? É véspera de ano novo. É a única época do ano em que Alanis se permite ser absorvida pela melancolia. Chega até ser deprimente, de certo modo. Aquele momento de parar para pensar no que foi e no que poderia ter sido.
Esse, definitivamente, poderia ter sido um ano melhor. Mas foi o pior de todos. E a culpa era unicamente dela.
Alanis suspira, tentando reler a mesma página pela terceira vez, ou quarta, ou quinta. Ela não sabe, pois sua atenção está sendo rompida por um casal sentado nos assentos da fileira ao lado. Uma mulher de cabelos curtos e castanhos, acompanhada por um homem pálido com indícios de calvície. Ambos aparentam ter em torno de 50 anos.
É uma viagem longa de trem de Barcelona à Paris. O trajeto estava tranquilo e silencioso, já que haviam partido antes do amanhecer, e as pessoas pegaram no sono. Até agora.
A movimentação começou cerca de uma hora atrás. Alguns passageiros trocaram de assento após a última parada, onde muitos desembarcaram, enquanto outros poucos embarcaram rumo ao destino final. Restam aproximadamente três horas para chegarem.
O vagão em que Alanis se encontra está parcialmente preenchido. Uma mulher com seu filho pequeno a cinco assentos à sua frente. Um homem de meia-idade dormindo em uma poltrona duas fileiras atrás. Duas mulheres loiras e muito parecidas estavam nos primeiros assentos do vagão. Alanis ficou se perguntando se elas eram gêmeas, ou primas, ou apenas irmãs de diferentes idades, mas que dividiam um gene muito semelhante. E, por fim, um rapaz de boné e fones de ouvido, concentrado em seu livro na poltrona à sua diagonal, sentado sozinho na fileira à frente do casal que estava discutindo alto. Muito alto.
Ela não conseguiu entender bem o diálogo. Estavam berrando em espanhol.
Sim, berrando. A esse ponto, eles já ultrapassaram o nível de volume considerado alto.
Alanis sabia falar o mínimo em espanhol, podia compreender algumas palavras e amava escutar músicas no idioma. Era uma fã da cultura espanhola e, por isso, incluiu Madrid e Barcelona no roteiro de sua viagem de dois meses pela Europa. Mas dominar a língua, era outra história. Ela colocou em suas metas do ano seguinte aprender a falar bem o idioma, até pesquisou algumas escolas para se matricular em Paris.
Paris. Sua nova casa.
É lá o seu destino final. Um novo país, uma nova cidade, um novo emprego, um novo começo.
É véspera de ano novo e ela espera que, de fato, tudo seja novo. Precisa disso.
Como, igualmente, precisa que o casal fale mais baixo para que ela possa voltar a se concentrar na leitura.
Vira o rosto e os observa rapidamente. Eles parecem estar discutindo algo relacionado ao papel na mão da mulher. Não consegue distinguir se é uma carta, o boleto de uma fatura, uma intimação, mas deve ser algo grave para tamanho escândalo.
Ela coloca o marca páginas onde parou e fecha o livro. Depois fecha os olhos. Talvez até faça uma oração para que o casal cale a boca.
Respira fundo e escuta a mulher esbravejar um "¡Coño!". Uma das limitadas palavras que conhece do vocabulário espanhol. É um ótimo xingamento usado no contexto certo.
Ainda com os olhos fechados, Alanis escuta pisadas fortes, raivosas e apressadas começando a se distanciar. Eles foram embora? Deus ouviu suas preces? Ela abre os olhos e confirma que sim, foi abençoada por uma paz momentânea.
Seus olhos percorrem até o fundo do vagão e o casal barulhento passa pela porta, seguindo para o próximo.
Amém.
O pensamento foi tão alto que ela se questiona se não o verbalizou. As chances de isso ter acontecido aumentam quando volta a olhar para frente e flagra o rapaz – aquele que estava concentrado na leitura, sabe-se lá como com aquela barulheira toda – tentando conter o riso. Ele a encara com uma mão cobrindo o canto da boca.
Alanis estreita o olhar.
— Você está rindo de mim?
Ele abre a boca para se defender, mas logo a fecha, ainda tentando conter o riso. Retira os fones de ouvido e os guarda na mochila ao lado. Alanis se questiona se ele a entendeu, se fala o mesmo idioma que o dela.
— A situação toda é um tanto cômica, eu diria.
Ah, fala, sim. O sotaque entregando que é estadunidense, assim como ela. Pelo menos, é o que aparenta ser.
E ele tem uma voz bonita, ela pensa, mas em seguida já ordena suas próprias vozes da cabeça se calarem.
— Ou, talvez, seja só a previsível maldição do matrimônio. — Continua ele, sorrindo.
Um sorriso bonito, ela pensa outra vez. As vozes não se calaram, fazendo-a prestar mais atenção no rapaz.
Provavelmente, ele foi um dos passageiros que mudou de assento na última parada – ou embarcou, ela não sabe. Mas ele não estava ali quando ela entrou no trem em Barcelona.
Apesar de estar sentado, aparenta ser alto, a julgar pelo porte físico. Ele está vestindo uma camiseta preta com uma estampa do Radiohead, uma das bandas favoritos de Alanis. Que coincidência.
Está com um boné cinza escuro um tanto surrado – mas levando em consideração todo o resto, tem um certo charme – com as pontas do cabelo escuro escapando por debaixo. A claridade da janela em que está encostado ajuda a refletir seu par de olhos azuis, que ainda estão encarando Alanis com curiosidade.
Como não prestei atenção nesse homem antes? Se questiona. Talvez Orgulho e Preconceito tenha tomado toda a sua atenção durante a viagem, mesmo ela torcendo o nariz vez ou outra para certas coisas que o Sr. Darcy falava.
Esse rapaz é do tipo que chama atenção mesmo de longe. Daqueles que se nota com facilidade quando está andando na rua e cruza com alguém bonito, ou está no ônibus ou metrô e um rosto marcante se destaca no meio das expressões cansadas e apáticas do dia a dia. Uma analogia meio peculiar, talvez, mas pertinente, considerando que estavam em um trem, mesmo sendo de uma viagem de longa distância.
— Você está me analisando? — Agora é ele quem arqueia as sobrancelhas.
A voz grave do rapaz faz Alanis sair de sua análise hipnótica. Estava mesmo hipnotizada? Talvez seja o sono da noite mal dormida.
Limpa a garganta, mas sente as bochechas corarem. Parabéns pelo mico desnecessário na frente de um estranho.
— Você estava rindo de mim primeiro, então, estou no direito de julgar.
— Eu não estava rindo de você. — Responde ele, rindo.
Ela tentou, mas não conseguiu vencer a vontade de revirar os olhos. Não com desdém, mas por ter notado que ele também a analisava. Pensa em devolver a pergunta, mas ele fala mais rápido:
— Já passamos da metade do caminho e agora que eles perceberam que pegaram o trem errado.
Então ele fala em espanhol. Talvez a suposição inicial sobre sua origem estava errada. Ela entendeu poucas das incontáveis palavras que o casal gritou, mas conseguiu compreender algo como "caminho errado" e "a culpa é sua".
Alanis comprime os lábios. Agora, é ela quem quer rir.
— Então você estava bisbilhotando a conversa alheia — ela provoca o estranho.
Ele dá de ombros.
— Eles não estavam se esforçando para serem discretos.
— Justo. — Uma pontada de curiosidade surge em seus lábios antes que pudesse contê-la: — E para onde eles iriam, será?
— Milão. — Ele responde no mesmo instante.
Ouch. Longe.
Alanis franze a expressão.
— Eu consideraria como um sinal do destino e abraçaria as consequências da desatenção para resolver os problemas de casal, bem na véspera de ano novo e justo na cidade do amor. — Nem ela acredita nas palavras que acabou dizer, mas gesticula como se tivesse propriedade no assunto. — Não tem sinal maior que esse.
Se o rapaz já estava se divertindo com a cara dela antes, agora encontrou o entretenimento completo.
E para o azar de Alanis, ele engaja no assunto.
— Claro, porque nada como uma das cidades mais superestimadas da Europa para fazer isso. Nada como ver as ferragens da torre Eiffel brilhando com os fogos de artifício, o aroma parisiense inconfundível de urina, e não podemos esquecer de suas lindas criaturas naturais: os ratos. — Ele dá um sorriso maior que antes. — O romance no seu mais alto nível. Imperdível.
Alanis não consegue segurar a risada e nota que uma das gêmeas loiras olha para trás. Talvez, agora, eles que estejam chamando a atenção. O rapaz também percebe.
Ele se endireita na poltrona.
— Posso? — Pergunta, apontando para o assento livre à frente de Alanis.
O que ela poderia dizer?
Ainda faltam quase três horas entediantes de viagem nesse trem. Ele é um rapaz bonito, simpático, parece educado. Já disse bonito? É, definitivamente, um dos homens mais atraentes que Alanis já viu em seus 23 anos de idade.
Mas, também, ele pode ser um psicopata maluco. Ela analisa rapidamente o vagão. Não está sozinha, conseguiria pedir ajuda se ele a atacasse. Que pensamento horrível, ela franze o cenho rapidamente pela passagem do pensamento macabro. Só porque as pessoas esperam o pior dela, não quer dizer que ela precise fazer o mesmo.
Ela dá de ombros.
O rapaz pega a mochila ao seu lado e, no próximo segundo, senta-se na poltrona em frente a ela.
— O que você está lendo? — Ele aponta para o livro sobre as pernas de Alanis.
Ela o levanta, mostrando a capa.
— Um clássico. — Ele sorri. — Agora entendi o papo de sinais, cidade do amor...
— Por acaso você já leu esse livro? — Ela o interrompe. — Duvido que consiga entender a complexidade dos sentimentos da Elizabeth Bennet pelo Sr. Darcy.
— Já li, sim. — A resposta é imediata. — Só ficarei livre desse segredo, quando ele tiver perdido todo o valor.
Ele cita o trecho como se tivesse decorado cada página do livro. Ela havia passado um marca-texto nessa parte mais cedo. Alanis tenta conter a surpresa no rosto, mas é difícil quando o rapaz a olha com um olhar de convencido por trás das írises azuis.
Ela levanta uma das mãos, se rendendo.
— E o que você está lendo? — Aponta para o livro na mão dele. — Iria perguntar qual é o segredo para se manter concentrado em meio a uma gritaria, mas descobri que você só estava fingindo para ouvir a briga alheia.
O rapaz solta uma risada.
Ele também tem uma ótima risada, diz mais uma das vozes na sua cabeça. Definitivamente, elas não se calaram.
— Não é como se eu pudesse evitar, você viu o drama.
— Eu conheço isso por outro nome e se chama fofoqueiro.
Os ombros cedem e ele se recosta na poltrona.
— Pode ser.
Ele vira a capa do livro na direção de Alanis.
— Nós, do Zamiátin. — Ela anuncia. — É um dos meus preferidos.
Já não bastava estar usando a camiseta de uma das bandas favoritas dela. Agora, está lendo um dos livros que a fez se apaixonar pela literatura.
Que coincidência, ela pensa mais uma vez.
— O que foi? — Alanis pergunta ao perceber que ele a encarava esperando por algo.
— Estou aguardando você citar seu trecho favorito do livro.
Balança a cabeça, incrédula pelo atrevimento do rapaz. Sem hesitar, ela responde:
— Tenho esperança de que venceremos. Mais: tenho certeza de que venceremos. Porque a razão deve vencer. — Alanis abre um sorriso sincero. — É o último trecho do livro, na 40ª Anotação.
— Por que isso me parece um spoiler?
— Você que pediu o meu trecho favorito.
Ele faz um biquinho em um apelo dramático, e Alanis se pega pensando que esse homem deve ser um verdadeiro profissional no que está fazendo agora: jogando conversa fora, cheio de charme, com uma simpatia tão natural que parece ter nascido sabendo flertar.
Ou será que isso nem é um flerte? Será que ela só quer que seja? E se ele estiver indo encontrar a namorada e for apenas genuinamente simpático? Ela repreende as vozes da sua cabeça mais uma vez.
— Meu nome é Dick — ele estende a mão. — Na verdade, é Richard, mas ninguém me chama assim.
É difícil saber uma resposta certa para as perguntas anteriores.
— Alanis — ela devolve o cumprimento. — Alguns amigos me chamam de Lanis, mas nunca entendi o porquê de cortar a letra A, então aceito qualquer um dos dois.
O aperto se prolonga por um segundo a mais que o necessário, até que ambos encaram para as mãos unidas e as soltam.
Um toque macio, combina com a voz dela, Dick pensou.
Ele a analisa com cautela, enquanto ela guarda o livro na mochila. Os cachos castanhos caem sobre o rosto quando se vira para fechar o zíper, ela tira uma mecha dali, colocando-a atrás da orelha, revelando os lábios carnudos.
Talvez não devesse encarar a boca de uma mulher que acabou de conhecer, e que nem sabe o seu paradeiro. Então se concentra nos braços, arrumando a mochila marrom no assento vazio.
O cardigã verde musgo combinava perfeitamente com o tom amarronzado dos olhos dela, que era o mesmo das mechas onduladas do cabelo. Ela veste uma calça jeans preta, assim como a bota de couro nos pés.
Parece ser uma daquelas mulheres que não faz ideia do efeito que sua beleza causa nas pessoas. No efeito que causou nele.
Quando a viu pela primeira vez no vagão, precisou olhar de novo para confirmar se aquela beleza era real. Parece exagero, pensou num primeiro momento. Mas, quanto mais a observava – lendo o livro, encarando a paisagem turva que passava rápido pela janela do trem, ou fechando os olhos por alguns instantes – mais tinha certeza: ela era uma das mulheres mais bonitas que já tinha visto.
— Então, o que você vai fazer em Paris em plena véspera de ano novo? — A voz de Alanis o desperta de seus pensamentos. — Além de passear com as lindas criaturas naturais, os ratos, claro, porque é por eles que Paris é conhecida.
Havia sarcasmo em sua voz. Uma provocação. Certamente, uma provocação.
— Além de adotar um rato, após o meu passeio com eles, pretendo ver a queima de fogos no Rio Sena. — Ele sorri, devolvendo a alfinetada. — Quem sabe dar um mergulho... Ouvi dizer que a água é cristalina.
Alanis tenta conter o riso cobrindo a boca com a mão, e então volta a falar:
— Se odeia tanto Paris, por que está indo para lá?
Dick cruza os braços.
Os olhos dela seguem o movimento, mas rapidamente os força a voltar a encarar seu rosto. Foi inevitável não olhar a musculatura do rapaz lutando com a manga da camiseta, uma observação que seu cérebro não conseguiu desviar.
— Eu não odeio, só é legal rir dos estereótipos. Sei que a cidade é muito mais que isso, apesar de não ser a minha favorita da França. Mas estou indo à Paris meio que por uma obrigação, eu diria.
— Por quê?
Ela se endireita na poltrona e sua bota encosta no tênis de Dick sem querer. Rapidamente, encolhe os pés para debaixo do assento.
— Meu voo para Gotham foi cancelado em Barcelona e o mais próximo que consegui, foi saindo de Paris. Também não consegui um voo e, por isso, vim de trem.
Alanis faz uma careta no mesmo instante em que escuta a palavra Gotham. Soa azeda em seus ouvidos. Dick percebe e não consegue conter a risada.
— Pois é, eu sei. A minha reação é a mesma.
— Você mora lá? — Ela pergunta, ainda com a testa franzida.
Ele assente com um sorriso fechado.
— Meus pêsames.
— Vou aceitar as condolências. Mas onde você mora para julgar a minha cidade assim?
Ela segura uma risada, mas logo em seguida, uma dúvida brota em sua cabeça. Alanis morava em Boston – que não é muito longe de Gotham, então realmente não poderia julgar –, mas a cidade era menor e bem menos caótica. Foi onde passou os últimos cinco anos, sendo quatro deles estudando Fotografia. Havia se formado há um ano e era onde ela imaginava continuar por mais um bom tempo, mas isso foi antes de tudo desmoronar, e Paris surgir como um refúgio.
— Paris — responde, por fim.
Dick a olha com surpresa, e também, um misto de receio por ter dito palavras não muito acolhedoras minutos atrás.
— Você está falando isso só para que eu me sinta mal por ter detonado a cidade, não é?
— Adoraria — os lábios dela se curvam. — Mas não. Na verdade, acabei de me mudar. Quer dizer, faz uns dois meses, mas estive viajando por algumas cidades durante esse tempo, tirei umas férias atrasadas e prolongadas por conta própria, então só larguei o apartamento cheio de caixas e embarquei no primeiro voo que consegui de Paris para Lisboa. Também fui para a Itália e, por último, para a Espanha. Também não consegui um voo de volta.
Alanis encara as próprias mãos se entrelaçando repousadas sobre as pernas. Ela passou dois meses tentando viver o mais longe de seus pensamentos, e o mais longe possível de sua realidade.
Ela já havia ido a Paris antes, mas foi há muitos anos, ainda era uma adolescente. No último ano que passou, conseguiu fazer uma boa economia graças ao trabalho na Luminous Gallery, uma das galerias mais famosas de Boston. Um dia, seu chefe viu as fotos que ela costumava tirar das pessoas no cotidiano da cidade e ficou encantado com a intensidade que seu olhar capturava por trás das lentes. Ele a convenceu a expor as imagens na galeria, o que acabou rendendo a venda de algumas de suas fotografias. Sorte de principiante? Talvez. Mas não era isso que seu chefe ou quem a conhecia dizia.
Alanis tinha um talento raro: conseguia transpor as emoções com intensidade em cada registro. Ela nasceu para isso. E com o dinheiro das vendas, conseguiu o suficiente para dar entrada em um apartamento em Boston – algo que ela planejava há um tempo. Mas, como a vida não é um filme, e não segue nenhum roteiro, certas circunstâncias a levaram a largar tudo e começar de novo em outro lugar.
— E por que Paris? — Dick questiona.
— Pelos ratos — ela brinca. — Com certeza, pelos ratos.
Ele ri. Alanis estava gostando de ouvir a risada desse estranho recém-conhecido. Tinha um som reconfortante, como um abraço. Pensa em falar mais bobagens só para ouvir de novo.
— Mas de verdade — volta a dizer —, eu consegui um emprego em um estúdio de fotografia. Sou fotógrafa.
É o que se limita a dizer, mesmo sendo uma verdade. Ela conseguiu um novo emprego, mas os motivos para ter aceitado possuem mais camadas.
— Não quero julgar pelo sotaque, mas você não é europeia — ele inclina a cabeça ligeiramente na direção dela. — Acertei?
Ela assente, confirmando a suposição de Dick.
— Nasci e cresci em San Diego, e quase toda a minha família mora lá.
— E por que escolheu ser fotógrafa?
Essa pergunta era fácil, ela tinha a resposta na ponta da língua.
— Acredito que a fotografia é capaz de eternizar os bons momentos. Acho que são essas boas lembranças que fazem a vida valer a pena.
— É uma resposta e tanto. Você sempre quis fazer isso?
Alanis assente, mas logo estreita o olhar.
— Por que isso está me parecendo um interrogatório?
Dick dá de ombros.
— Ainda temos mais de duas horas de viagem e confesso que já estava cansando de ler — ele ergue o livro na mão. — É um ótimo livro, e entendo por você ter dito ser um dos seus favoritos, mas comecei a ler quando saímos de Barcelona, e me faltam apenas oito capítulos para terminar. São quarenta.
— Como você conseguiu pausar nessa parte da história?
— Você viu e ouviu a gritaria minutos atrás. Foi assim que consegui parar. — Dick repousa o livro no assento livre ao seu lado e volta a encarar Alanis. — O que estou querendo dizer é que talvez precisássemos de outra distração até chegarmos em Paris.
— Você está me chamando de distração? — Alanis cruza os braços, fingindo uma raiva que não existe.
— Não, não é isso — ele ergue as mãos rapidamente, na defensiva. — Vou tentar de novo: o que quis dizer é que nós dois estávamos concentrados, cada um na sua leitura, ou tentando se concentrar. Até que um casal de desastrados perceberam que estavam no trem errado e começaram a culpar um ao outro. Eles gritaram, brigaram e saíram do vagão. Você exclamou um Amém para todo mundo ouvir. Eu dei risada, você percebeu. E então, você começou a me analisar...
— Eu não estava te analisando. — Alanis o interrompe no mesmo segundo.
Dick volta a erguer uma das mãos, pedindo permissão para continuar a explicação.
— E então, você começou a me analisar — ele repete. — Você afirma que sim, estava me julgando. Mas eu não estava rindo de você, então pedi para sentar aqui e tirarmos essa história a limpo. — Dick sorri, um sorriso como se precisasse convencer Alanis de sua justificativa. — É uma ótima maneira de passar o tempo e ainda podemos conhecer uma pessoa nova com bom gosto para livros.
É, ele definitivamente sabe o que está fazendo: convencendo uma estranha a jogar papo fora enquanto flerta discretamente nas entrelinhas. Mas, de novo, seria mesmo um flerte? Ou ele só parece ser um cara legal? Alanis está começando a realmente querer saber a resposta.
— Tudo bem — ela concorda, se endireitando na poltrona. — Já falei muito sobre mim, agora é a minha vez de fazer as perguntas.
Dick também se endireita no assento, pronto para ser interrogado.
— Estou à ouvidos — ele ergue as mãos, gesticulando, para que ela prossiga. — Sou um livro aberto.
Mais uma vez, ela não consegue evitar revirar os olhos.
— Quem fala isso é, automaticamente, a pessoa mais mentirosa do mundo.
Ele solta mais uma de suas risadas reconfortantes e Alanis fica grata por isso.
— Tudo bem, prometo responder só verdades.
Ela arqueia uma das sobrancelhas em descrença, mas parte para o interrogatório:
— Certo... Então, você nasceu em Gotham? Ou escolheu morar lá? O que você faz da vida? E, pelo que disse antes, você não planejava passar a virada de ano em Paris, então o que vai fazer quando chegarmos?
Dick franze o cenho, mas ainda há simpatia em seu olhar.
— São trinta perguntas em uma só.
Alanis dá de ombros, sem se importar.
— Ok, me deixe raciocinar... — Ele passa a mão pelo queixo, parece estar com a barba prestes a nascer, apesar de não ter quase nenhum pelo visível ali, mas há uma fraca e quase imperceptível marca de uma, caso já tenha deixado crescer algum dia. — Primeiro: sim, nasci em Gotham. Segundo: eu não chamaria de escolha, porque foi como minha vida foi acontecendo, eu diria. E, hoje, moro lá por conta do meu trabalho, mas também estou pensando em me mudar. Sou formado em Direito e trabalhava como detetive no departamento de polícia da cidade. E por último: não faço ideia. Era para eu estar chegando lá em algumas horas, mas só consegui um voo para amanhã de manhã. Iria passar a virada de ano com a minha família. Faz tempo que não os vejo, estou viajando há quase sete meses.
Há uma certa surpresa no rosto do Alanis. Ela não esperava que ele fosse tão direto.
— Estava viajando a trabalho? — Questiona, continuado o interrogatório. — E quais lugares esteve?
— Você não sabe fazer uma pergunta só?
Ela nega com um sorriso fechado.
— Estava viajando por conta própria, assim como você. Precisava de um tempo desconectado de tudo. Ano passado foi... difícil. Parece mesquinho de se dizer, mas tirei esses meses como um período sabático.
Tinha um tom profundo na voz dele que Alanis não conseguiu decifrar totalmente, mas ela entendia mesmo assim. Também havia passado por um ano difícil. Ela não o julga, apenas o encara nos olhos esperando que ele continue a falar.
— Fui para muitos lugares. Três continentes e onze países. As cidades eu parei de contar em um determinado momento.
Ele faz uma pausa, olhando rapidamente para janela ao lado e logo volta a encontrar os olhos castanhos de Alanis. Que lindos olhos, ele pensa, se permitindo se distrair no reflexo que a luz do dia faz na íris marrom da mulher, deixando-a cristalina quando um raio de sol atinge.
— Enfim — ele pisca, se recompondo —, passei os três primeiros meses pela Ásia, a maior parte do tempo na Indonésia e na Tailândia. Depois fui para a África do Sul, passei algumas semanas em Johanesburgo. Depois fui para Argentina e passei quase um mês por lá, metade desse tempo foi pela Patagônia subindo montanhas.
— Tenho muita vontade de conhecer. Sei que lá tem a cidade que é conhecida por ser o "fim do mundo", já que é o ponto de civilização mais extremo ao sul.
— Sim, Ushuaia — complementa. — Também conheci, é linda. É gelada, neva bastante, mas linda.
— E você foi sozinho para todos esses lugares?
A esse ponto, Dick se pega pensando que ela já fez muito mais perguntas a ele do que o contrário, mas não reclama. Está gostando de ser interrogado por ela.
Ele assente à pergunta de Alanis, confirmando, mas gesticula com as mãos um "mais ou menos".
— Consegui tirar um tempo para mim mesmo no começo, mas durante meus últimos dias em Johanesburgo, conheci um grupo de pessoas voluntárias que viajam pelo mundo ensinando crianças e adolescentes a ler e escrever. Eles também têm um projeto de arrecadar a maior quantidade de livros que conseguem pelas cidades em que passam, para distribuírem para esses jovens. Acabei me juntando a eles nos últimos meses. Foi incrível. A viagem que fiz para América do Sul foi com eles, voltamos para passar por alguns países do leste europeu, e nos despedimos quando fui para Espanha.
Alanis estava tentando manter a postura, mas a partir do momento em que o rapaz revelou ser um voluntário que ajuda crianças e adolescentes ao redor do mundo, ela começou a divagar demais pelos próprios pensamentos, querendo conhecê-lo mais. Muito mais.
Parecia o golpe perfeito: lindo, inteligente, engraçado, com um bom coração... Certamente, esse rapaz é um golpe.
Não deveria ser um problema. Afinal, romance não estava em seus planos. Na verdade, nem poderia estar. Ela havia prometido a si mesma que este seria o ano de mudanças: um ano para se redescobrir, para se entender sem depender de ninguém. E, para isso, precisava estar sozinha.
Mas isso não a impedia de conhecer alguém sem compromisso, certo?
E, de novo, por que ela estava pensando nisso? Alanis não queria admitir, mas se sentiu instantaneamente atraída por esse rapaz. Eles estavam apenas conversando, como ele mesmo disse, para passar o tempo. Mas a sua cabeça fantasiosa já estava achando que isso poderia ser um flerte. E realmente poderia ser.
A dúvida começa a tomar conta de seu rosto, mas ela logo se recompõe para dizer algo.
— Interessante... — Mas foi essa a palavra que saiu da boca dela.
Dick sorri, pegando-a no flagra enquanto ela o analisava mais uma vez. Ele pensa em provocá-la de novo, mas opta por trocar o holofote das perguntas para ela.
— Agora, acho que eu já falei demais — seus olhos azuis fixam nos castanhos de Alanis. — O que você vai fazer na noite de ano novo?
Ela pisca uma vez, sentindo-se puxada de volta para realidade.
— Nada — desvia o olhar para a janela, observando a paisagem afora passar como um borrão. — Sinceramente, eu só quero chegar em casa e dormir até amanhã.
— Me parece uma grande de uma chatice.
Alanis volta a encará-lo com um divertimento surgindo no rosto. Ela não faz ideia de quem é esse rapaz, mas já conseguiu arrancar mais sorrisos seus do que qualquer outra pessoa nos últimos meses.
Uma certa estranheza cruza a mente ao pensar nisso, mas ela não se assusta, já que sua vida não estava lá essas coisas. Talvez seja só uma carência batendo a porta.
— Mais chato do que para você que odeia Paris e ter que passar o último dia do ano nela? — Alanis devolve a alfinetada.
— Eu já disse que não odeio Paris. Só a acho superestimada.
— E por quê, exatamente? Ah, não. Deixe-me adivinhar: porque Paris é conhecida como a Cidade do Amor, e você não acredita nisso, já que disse antes que aquele casal estava fadado à maldição do matrimônio.
Dick ergue as sobrancelhas, surpreso pelo sarcasmo afiado de Alanis. Mas ele não tinha por onde fugir, realmente havia dito aquelas palavras.
— E eu estava errado? — Questiona, com um sorriso surgindo no canto da boca.
Alanis semicerra o olhar. Não parece que ele está falando sério, não há firmeza nas palavras, só parece uma provocação para irritá-la nesse jogo de semi-flerte que estão fazendo. Ela nem sabe se isso existe, mas aceita o conceito que acabou de inventar.
— Só para que eu possa concluir um raciocínio — ela cruza os braços —, qual nota você dá para Orgulho e Preconceito? Já que é um descrente do amor. Vale de zero a cinco estrelas.
Ele não consegue conter a gargalhada pela pressuposição equivocada de Alanis.
— Você julga muito, sabia?
— E você não, senhor correto?
Dick balança a cabeça, ainda sorrindo.
— Tento não fazer isso. Ainda mais com estranhos em um trem.
— Não mude de assunto.
Os ombros cedem e ele ergue as mãos em desculpa.
— Dou cinco estrelas para Orgulho e Preconceito. Amo o livro, é um clássico, é bonito e faz a gente acreditar no amor. O que não é um problema para mim, porque eu acredito no amor. O que eu quis dizer sobre o casal que estava gritando é que eles estão presos nas estatísticas do casamento. É um fato que a maioria dos casais são infelizes após longos anos de matrimônio.
Com um olhar convencido, Alanis se inclina ligeiramente na direção rapaz. Ela acabou de pegá-lo no pulo do gato.
— Você disse que sou eu quem julga muito, mas acabou de fazer isso baseado apenas numa discussão do casal por uma razão super válida. Afinal, eles entraram no trem errado e agora vão ter que correr contra o tempo para chegarem em Milão. Não dá para saber que a relação deles é péssima com um recorte tão curto assim.
Dick permanece com a mesma expressão, o semblante tranquilo ouvindo Alanis despejar mais uma suposição na cara dele.
— Sou muito bom em ler as pessoas — explica. — Principalmente a linguagem corporal, o tom da voz, os gestos em determinada situação. Tudo neles indicava um desgaste de anos.
— Ah, então julgar agora virou uma ferramenta. — Ela volta a se encostar na poltrona, ainda com os braços cruzados.
Ele a observa por alguns segundos, sem falar nada, e os olhos fixos nos dela.
— Você não quer fazer nada na noite de ano novo porque está querendo fugir o mais rápido possível do ano que passou. Paris não é só a cidade do seu novo emprego, você quer recomeçar sua vida. E, talvez, quando acorde amanhã, sinta a falsa sensação de que pode ser uma nova pessoa, mas sabe que o passado ainda vai pesar sobre seus ombros dia sim, dia não. Mas, pelo menos, você estará longe da vida que deixou para trás.
Incrédula.
Sim, Alanis está incrédula.
Surpresa.
Assustada, talvez?
Ela não sabe. Não tem nem respostas para o que acabou de ouvir. Ele acertou em tudo, mesmo sabendo nada sobre ela.
Leva uma mão a boca, tentando não transparecer o choque em seu rosto. Depois balança a cabeça, desviando olhar para a janela mais uma vez. Quando volta a encará-lo, o par de olhos azuis sorriem para ela.
— Quem é você mesmo?
Ele dá de ombros, descontraído.
Convencido.
— Sou só um cara qualquer tentando achar meu lugar no mundo. — O sorriso dele se alarga. — Assim como você.
E, naquele instante, Alanis desejou que Paris estivesse do outro lado do mundo. Talvez assim ela tivesse mais tempo para desvendar os segredos desse estranho – quem ele realmente era e por que o destino o colocou em seu caminho, justo agora, quando ela seguia em direção a uma nova vida, sozinha.
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