Capítulo 04
Os dias que se seguiram após a morte de Walter Badell foram incrivelmente frios e cinzas, e para Marie, que sabia que nunca mais veria o seu pai, eles pareceram ainda mais sombrios. Contudo, quando chegou o momento de partirem rumo a Luxor, o céu pareceu demonstrar toda tempestade que habitava na garota, desabando em forma de uma chuva torrencial.
O caminho até a capital de Eudora se tornou ainda mais tortuoso, pois as estradas sem pavimentação ficaram enlameadas e escorregadias, todavia, Eugene não queria ficar mais nem um dia em Vila Valence, então partiram mesmo embaixo de chuva.
Enquanto as gotas de chuva batiam no teto da carruagem da família Badell, Marie embalou sua gata Cherry em seus braços e se pôs a olhar para o nada, enquanto tentava fingir que toda aquela mudança não lhe afetava.
— Marie, eu espero que não esteja magoada, mas era impossível que você morasse sozinha em sua casa... — Eugene disse, tentando capturar a atenção da sobrinha. — Tenho certeza que vai se acostumar com a vida na capital, pois logo o Natal chegará e juntamente com a neve, a cidade ficará toda iluminada.
A moça de cabelos cor de mel apenas sinalizou que sim com a face, pois era fato que não via mais luz em sua vida, mas não queria parecer ingrata, então resolveu ficar calada.
— Você e a sua prima Susan poderão ir fazer compras na cidade, e tudo ficará bem no final... Você não acha, Marie? — Eugene perguntou, enquanto abria para a sobrinha um sorriso cheio de dentes.
— Eu não me importo com compras, tio Eugene... a não ser que eu possa ir a algum lugar que me venda livros... — Ela olhou para ele com esperança, direcionando-lhe seus grandes olhos dourados. — Isso seria possível, tio?
— Livros? — ele questionou, muito espantado. — Não gosta de vestidos e perfumes, Marie? Acho importante que realce ainda mais a sua beleza, para que possa encontrar um bom marido.
A garota torceu o nariz em desagrado, pois não gostava daquele tipo de pensamento, que a fazia acreditar que era apenas uma reles mercadoria em uma estante.
— Quem gostar de mim, vai ter que se interessar por mim da maneira como eu sou, então não, eu não me importo com os vestidos apertados que vem de Paris, e não tenho nenhuma opinião sobre as fragrâncias mais procuradas em Luxor. — Ela sorriu, mostrando ao tio que não haveria negociação. — Eu gosto mesmo são dos livros, que me permitem viajar para outros mundos, sem nem precisar sair do lugar.
Eugene olhou para a frente, pensando por um momento e antes de se virar novamente para a sobrinha, murmurou:
— Gosto estranho... — Logo em seguida ele olhou para Marie, tentando agir normalmente. — Se é de livros que gosta, você pode comprá-los na Biblioteca do Senhor Joseph.
— Obrigada. — Marie sorriu levemente, pois ao menos teria com o que ocupar sua mente. Todavia, ela logo lembrou que não sabia muito sobre a vida do tio, e que se iria viver com Eugene, aquele era o momento mais apropriado para descobrir tudo. — Tio Eugene, o meu pai nunca me disse com o que o senhor trabalha, apenas disse que tem uma boa vida em Luxor...
Eugene encarou a sobrinha com seriedade, mas logo sorriu, tentando quebrar o clima estranho do momento.
— Eu trabalho no mercado de investimentos, Marie... — ele respondeu sucintamente, pois não acreditava que devia maiores satisfações a ela. — Mas acho que isso não é importante agora, pois o que importa mesmo é que nunca estará desamparada.
— Até porque o meu pai não me deixou desamparada, não é mesmo? — ela questionou e sorriu, mas no fundo queria mesmo entender mais sobre a vida de Eugene Badell.
— Não deixou, querida — ele respondeu, sorrindo forçosamente logo após. — Agora descanse um pouco, Marie, pois o caminho até Luxor se prolongará com toda essa chuva.
Marie ainda sentia que faltava muito para poder entender toda a ocupação e distância do tio ao longo dos anos, mas sem querer demonstrar sua ansiedade, resolveu que não poderia arrancar toda a verdade de Eugene de uma só vez, então resolveu acatar o conselho do tio e cochilar o restante da viagem.
A moça então fechou os olhos e começou a imaginar que era a personagem de um livro de aventura, e desse modo, não demorou a pegar no sono.
Quando os olhos dourados de Marie se abriram, ela percebeu que haviam se passado várias horas e que já estavam nos entornos da grandiosa Luxor. O ar da cidade grande era mais pesado, com a chegada dos automóveis e também por causa da presença de algumas fábricas que ali se instalaram, todavia, não era só isso que carregava o ambiente; o vaivém das pessoas e todo o seu falatório também transformavam a capital em um lugar caótico, e ela não estava acostumada com nada disso.
Logo eles ganharam as ruas da cidade e as construções modernas ganharam os olhos de Marie, que até então não tinha visto beleza naquele lugar. As grandes construções com jardins imponentes em suas entradas trouxeram um pouco de calmaria para o coração da moça, que até então só conseguia enxergar as cores escuras da cidade.
Não tardou e logo chegaram na imponente residência de Eugene Badell. Tudo ali naquele lugar era impecável e moderno, e Marie logo entendeu o motivo pelo qual o tio não gostava de sua casa em Vila Valence; mas mesmo assim ela preferia a simplicidade e aconchego de seu antigo lar.
— Seja bem-vinda à sua nova casa, Marie! — Eugene disse com entusiasmo, enquanto ele apontava para a porta de madeira entalhada de sua residência. — Espero que goste de seu novo lar, querida sobrinha .
A garota olhou para todo o entorno daquela grande construção, admirando as flores bem cuidadas do jardim. Ela olhou para um banco de madeira que havia embaixo de uma macieira, e acreditou que seria bom ler um livro sentada ali. Todavia, quando ela retornava com o seu olhar para o tio, Marie notou um casarão antigo que ficava do outro lado da rua, na esquina, há apenas alguns metros dali. A construção parecia destoar de todas as outras casas modernas que havia naquele bairro, então ficou curiosa para saber um pouco mais sobre aquele lugar.
— Por que aquela casa é tão diferente das outras, tio Eugene? — Ela continuou olhando para o casarão, chegando à conclusão de que ele não parecia estar abandonado. — É algum tipo de construção histórica?
O semblante antes amigável de Eugene, logo se endureceu. Ele não escondeu que sentia desgosto por aquela conversa, todavia, tentou ser cordial com a sobrinha.
— Aquela casa é a escória de Luxor, Marie... Ali vivem algumas famílias, que interagem entre si como se aquele casarão fosse um cortiço, então devo lhe avisar que não deve ter contato com nenhuma das pessoas que residem ali, pois são pessoas de má índole e que vivem de maneira totalmente perniciosa e vulgar. — Eugene estalou a língua, demonstrando um ódio fervoroso através de suas orbes castanhas. — Eu e os outros vizinhos lutamos muito para remover aquela gente infame deste bairro, mas ainda não tivemos sucesso... Então fique longe deles!
Marie não pôde desviar os olhos do casarão, pois sua curiosidade foi ainda mais aguçada pelo tio, afinal, ela queria muito saber que tipo de atitudes tinha aquela gente, para que o tio os odiasse por completo.
— Vamos entrar agora, Marie, pois o vento está muito gelado!
Eugene então virou as costas e entrou dentro de sua casa, não restando outra alternativa para Marie, a não ser segui-lo. E ao adentrar na casa do tio, a garota notou que todos os móveis eram feitos de madeiras nobres e que não havia um sequer objeto fora de lugar ali dentro. Na saleta de entrada havia grandes cortinas de cor creme cobrindo as janelas e sobre os móveis e também sobre as paredes, haviam obras de arte que deveriam ter custado uma grande fortuna. Contudo, ao olhar para frente encontrou o olhar debochado de duas mulheres — uma mais velha e outra mais moça — que julgavam as suas roupas como se elas cheirassem mal.
— Michelle e Susan, deem as boas-vindas para a Marie, pois agora ela viverá conosco sob este teto. — Eugene sorriu de maneira teatral, mas as mulheres não esboçaram nenhuma reação.
Um tempo de silêncio pareceu decorrer, trazendo uma eletricidade estranha para aquele ambiente. Marie se encolheu mais ainda dentro de sua roupa, enquanto envolvia a gata Cherry com os seus braços magros.
— O que é esse monstrengo nos braços dela? — Michelle perguntou, demonstrando total desprezo pelo bichano de Marie. — Essa praga deve ser o vetor de alguma doença!
— Não seja hipocondríaca, Michelle! É apenas um gato! — Eugene suspirou com impaciência, enquanto encarava esposa e filha, como se as pudesse fuzilar com os olhos. — Agora deem as boas-vindas para a minha sobrinha, pois não admito que a tratem mal dentro da minha casa.
Michelle se aproximou com desgosto de Marie e então a cumprimentou à distância, parecendo ter nojo de encostar em suas vestes simplórias. Susan, no entanto, foi mais ousada, pois cruzou os braços na frente dos seios e encarou a prima de forma mortal, recusando-se a recebê-la em sua casa.
— Você deve me odiar muito mesmo, não é, papai? — Susan disse de maneira histérica, enquanto lágrimas desciam de seus olhos escuros. — Por que trouxe essa garota para cá justamente na semana em que vou ser apresentada aos meus pretendentes? Você quer que eu morra encalhada, não é? Se algum deles se interessar por essa roceira, eu juro que não te perdoo, papai!
Em seguida, a garota saiu correndo da sala, balançando os seus cabelos extremamente lisos e negros. Marie se encolheu ainda mais dentro de si, pois esperou por algo ruim ao se mudar para Luxor, mas aquela cena era ainda pior do que tudo que havia imaginado.
— Não ligue para a Susan, Marie querida... ela está ansiosa por causa do seu baile de apresentação, mas logo irá se desculpar por causa desse deslize. — Eugene disse, tentando amenizar todo aquela cena. — Agora, meu amor, peça a senhora Edwiges que prepare um quarto para a Marie, pois tenho certeza que ela deve querer se trocar antes do almoço.
— Tudo bem, Eugene, mas já vou avisando que este gato não poderá ficar aqui dentro! — Michelle falou sem olhar para Marie, enquanto demonstrava que estava bastante insatisfeita.
— Tio, eu não ficarei em nenhum lugar em que a Cherry não possa estar! — Marie falou pela primeira vez, apertando ainda mais a gata contra o corpo.
— Não se preocupe, Marie, pois a sua gata ficará com você. — Em seguida, Eugene encarou a esposa com dureza, como se lhe passasse alguma mensagem pelo olhar.
A mulher pareceu prontamente entender o recado, pois saiu pisando duro, deixando apenas Marie e Eugene naquele lugar. Todavia, não demorou muito para que uma senhora na casa dos sessenta anos surgisse no recinto com o seu uniforme de governanta e seus cabelos muito presos em um coque. Ela logo chamou a nova moradora da casa, para que pudesse segui-la.
— Marie, eu sou a senhora Edwiges e vou te levar até o seu novo quarto. — A senhora sorriu meio sem jeito, enquanto direcionava a mocinha por uma escadaria larga. O piso era de madeira lustrosa. — Eu ainda não tive tempo de organizá-lo da melhor maneira, pois o senhor Eugene chegou de surpresa, mas saiba que irei deixá-lo do seu gosto.
Não demorou e logo estavam diante da porta de um singelo aposento — que era um dos vários quartos de visita que havia ali na casa de Eugene —, e então Edwiges o abriu para que Marie pudessem se instalar nele.
A garota entrou e percebeu que havia uma cama com dossel alto de madeira, onde repousava uma suave colcha azul. Em cima do colchão também havia alguns travesseiros e almofadas, o que lhe remetia um ar de conforto. Ali dentro também havia um roupeiro de madeira nobre, uma mesa de estudos, duas mesas de cabeceira, um abajur de flor e uma cômoda. Haviam alguns enfeites em cima da cômoda que pareciam ser caros, então Marie resolveu não se aproximar muito deles.
— Fique à vontade, senhorita Marie. Em breve eu volto com os seus pertences.
A governanta sorriu e depois saiu, fechando a porta atrás de si. Marie suspirou profundamente, respirando o ar, que estava um pouco menos carregado do que o da sala de entrada, todavia, ao se jogar na cama e ouvir o barulho de alguns objetos sendo quebrados, ela percebeu que a sua vida estava bem longe de voltar a ser normal e agradável novamente. Ela fechou os olhos e tentou se desligar dos gritos de Susan, mas parecia impossível para a garota conseguir relaxar, pois de algum modo ela sabia que jamais seria totalmente bem-vinda naquela residência, então só lhe restava descobrir como fugir de conflitos, até que pudesse arrumar uma maneira de se mudar dali.
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