C A P Í T U L O 71
As entrelinhas da confiança
Eu podia dizer com toda a convicção que os meus olhos viam, que o Vemphur ganhava outros ares perto da cozinha, longe da soturnidade e estagnação dos seus longos corredores, quartos solitários e salões suntuosos. Havia luz, alma, como um organismo vivo que reage ao sol, e essa impressão se reforçava ainda mais com os funcionários transitando pelos corredores e fugindo para outras direções ao nos ver.
Anton e eu havíamos acabado de almoçar numa espécie de sala de jantar íntima, e agora seguíamos para o tal lugar misterioso que ele queria me levar. A única pista que eu tinha era o vestido leve e fresco ele me pedira para vestir, e se não fosse alguma de suas táticas para confundir, significava que nesse local ficaríamos ao ar livre ou algo do tipo.
Acabávamos de dobrar o último corredor em direção ao saguão de entrada quando Kranz nos alcançou, fazendo-nos parar e Anton firmar a mão nos meus quadris. Fiquei feliz em ver que continuava vivo depois do acerto de contas que o meu marido afirmara que teria com ele. Se havia sido algo sério, o vampiro não demonstrava, pelo contrário, ele parecia mais tranquilo do que na noite anterior.
Ele começou dizendo que tinha novas informações, mas ao continuar, seu inglês bem articulado migrou para outro idioma irreconhecível que se assemelhava ao que Anton havia usado com Edgar naquela manhã. Eles estavam fazendo isso de propósito e eu até poderia me ofender e pensar que o problema era comigo, se não fosse pelas duas funcionárias que naquele exato momento cruzavam o corredor à frente.
Apenas alguns passos atrás delas estava Lucila, com o perfil erguido adiante e as passadas cada vez mais aceleradas, que imaginei ser por ter nos notado ali, embora sequer tivesse nos direcionado um olhar. Com uma ordem colocou as outras duas para praticamente correr, e seguia no mesmo ritmo quando me apressei até ela.
― Lucila! ― chamei, fazendo-a parar e se virar.
Unindo as mãos à frente, ela curvou a cabeça em reverência e da mesma forma que no gesto os seus olhos desceram para o chão, ficaram quando se endireitou.
― Senhora.
De fato, Lucila nunca se mostrara uma pessoa muito carismática, o que atribuí à sua constante formalidade, mas sempre havia sido gentil comigo, por isso estranhei o tom seco.
Ou não, talvez fosse apenas uma impressão.
― A Francesca, como ela está?
A vampira virou o rosto para o lado, mas reparei quando seus olhos se fecharam por um segundo a mais e o seu peito se moveu em um espasmo ao ouvir o nome da mais jovem.
― Ela está bem, a senhora não tem se preocupar.
Lá estava aquele tom seco outra vez, meio rude, comprovando que não havia sido mera impressão, mas não me ofendi. Era compreensível as suas razões para usá-lo comigo, eu merecia, pois Francesca era a sua protegida e por minha causa quase havia morrido, mesmo depois de toda a história que a própria Lucila tinha me contado sobre a garota.
― Lucila, eu...
― Vamos. ― A voz poderosa ecoou no instante em que uma mão possessiva se encaixou à base das minhas costas, e antes que eu pudesse expressar meus sentimentos à vampira.
Não tive outra opção senão me deixar levar pelo meu marido, restringindo-me a um último olhar e um breve aceno para ela. Eu terminaria aquela conversa numa outra ocasião, na verdade, a minha vontade mesmo era de ajudar Francesca. O que havia acontecido naquela manhã não tinha saído da minha cabeça, e eu não conseguia parar de pensar no quão injusta era a situação dela. Era algo que, pelo pouco que eu conhecia de Eleonora, sabia que ela não permitiria acontecer sem alguma razão maior, e era justamente essa razão que eu precisava descobrir.
Podia parecer obsessão ou maluquice da minha parte, tanto interesse e preocupação com uma garota que eu mal conhecia, mas algo nos conectava, uma espécie de identificação. Assim como eu com o meu destino, Francesca não teve poder de escolha ante às fatalidades da vida, mas ao contrário de mim que havia redescoberto a felicidade ao lado da pessoa mais improvável, ela parecia infeliz e perdida naquele mundo distante. No fundo, talvez eu só estivesse querendo dar a ela a escolha da liberdade sem consequências, que não tive.
Absorvida em meus pensamentos, mal notei que já havíamos atravessado o saguão de entrada e acabávamos de passar pela porta. Do lado de fora, sob o sol quente e agradável do início da tarde, estavam estacionados dois SUV pretos, os mesmos que nos seguiram no dia em que chegamos ali. Gianni e mais três vampiros fardados estavam ao redor de um deles, já o segundo se encontrava mais próximo, ao fim dos poucos degraus que compunham a soleira do castelo e onde James nos aguardava com a porta do passageiro aberta.
Anton me ajudou a subir no veículo, e após trocar algumas palavras com seu fiel funcionário, deu a volta e assumiu seu lugar no banco do motorista. Coloquei o cinto de segurança, e em poucos segundos já estávamos em movimento, sendo seguidos pelo outro carro.
― O que é injusto? ― Olhei para o meu marido sem entender a pergunta, a sua expressão era de curiosidade genuína e nem de longe tão perturbada quanto devia estar a minha. ― No saguão você murmurou sobre algo ser injusto.
Essa não. Meus pensamentos haviam escapulido pela minha boca e eu nem tinha percebido. Não que fossem algum segredo, mas dado a intolerância que Anton havia demonstrado sobre as minhas intenções de amizade com Francesca, eu não tinha certeza se era uma boa ideia mencionar o nome dela novamente.
― Não era nada, eu só estava pensando alto ― respondi desviando minha atenção para as árvores que margeavam a estrada.
― Sobre?
A insinuação melindrosa em sua voz me fez descer os olhos para o moderno painel antes que, discretamente, eu os voltasse para ele. Anton podia ter o poder de manipular pessoas ou o dom de antever as minhas vontades e detectar minhas mentiras, mas eu também estava ficando boa em lê-lo através dos seus gestos, tom e expressões, o que só havia contribuído para a nossa sintonia e reciprocidade quando as palavras eram evitadas. Os seus olhos não cintilavam atoa e a sua sobrancelha não era suspensa sem que algum tipo de radar fosse acionado na sua mente, e foram esses detalhes que me confirmaram, aquela não era só uma pergunta, era um teste. A minha sinceridade estava sendo colocada à prova e eu não estava disposta a falhar.
― Eu estava pensando sobre a situação da Francesca, e o quanto acho injusta ― admiti, e se a verdade o agradou ou não, eu não saberia dizer, pois Anton não disse nada, nem ao menos manifestou qualquer reprovação ou alusão dela, limitando-se a retornar os olhos para a estrada com uma indiferença que, naquele contexto, me tranquilizou. Vi nela um terreno seguro, a esperança de que o assunto não corria o risco de explodir entre nós outra vez. ― Você tem ideia do porquê os seus pais ainda não concederam o dom de andar ao sol a ela?
Sim, eu tinha acabado de mergulhar num lago proibido e como se não bastasse, ainda testei a minha sorte jogando pedra na cara do crocodilo. Mas não podia perder a oportunidade, havia sido mais forte que eu.
― Não tenho o menor interesse nessa garota, tampouco nas decisões que Eleonora ou Vincent tomaram em relação a ela. ― Eu não precisava de uma objecção mais férrea e clara para entender o recado, e já levantava a minha bandeira branca quando ele prosseguiu: ― Mas tenho uma sugestão. ― Anton me lançou um olhar breve, mas tão ardiloso quanto a sombra do sorriso que pensei ter visto em seus lábios. ― Eles precisam de mim, e já há algum tempo deixei de cooperar.
― Você fala do dom? Eles precisam de você, é isso? ― Anton anuiu e o gesto imperativo foi mais que suficiente para que a minha curiosidade atropelasse meus pensamentos. ― E qual é o segredo, como vocês fazem isso?
O silêncio caiu como se estivéssemos submersos em uma imensa bolha de água enquanto eu o assistia num gesto intencionalmente arrastado, virar o rosto para mim e aquelas íris de aço me encontrarem, intensas, mesmerizantes, tal qual o som profundo que ecoou pela sua garganta:
― Segredos são segredos por uma razão, fada.
Não havia sarcasmo em seu tom, nem qualquer advertência, era pura provocação e eu me senti instigada.
― Eu sei. Segredos não podem ser revelados a qualquer pessoa, mas àquelas confiáveis como eu, podem ― argumentei, e me recusando a interromper o contato visual, arrisquei: ― Você não confia em mim?
Um sorriso sorrateiro ganhou forma em sua boca como se ele já aguardasse por essa contestação, ou melhor, como se a desejasse.
― A pergunta certa é ― começou ele, projetando uma olhadela pelo retrovisor antes de buscar meus olhos outra vez ―, eu posso confiar em você?
Se fosse a uma ou duas semanas atrás, talvez eu me ressentisse por ter o meu caráter questionado por ele, mas se tratando do Anton e seus problemas de confiança, os quais comprovei naquela viagem serem sérios, parecia idiotice levar isso para o lado pessoal. No entanto, até quando? O que eu teria que fazer para provar o meu valor e merecer esse privilégio?
― Você sabe que pode ― respondi sustentando o fundo de seus olhos com toda a confiança e convicção que tinha. ― Se é algo tão importante pra você, eu levaria para o túmulo comigo.
Um movimentar mais acentuado me levou a olhar para estrada, acabávamos de entrar em uma curva sinuosa, um tanto perigosa.
― A rainha das fadas sendo leal a um vampiro?
Não me contive e tornei a fitá-lo, recebendo a sua perícia maliciosa de volta, da qual eu não conseguia definir se ele continuava tentando me provocar ou se apenas queria fugir do assunto. De qualquer maneira, era sempre tão frustrante! Não havia um assunto mais sério sem que Anton não usasse a provocação ou a manipulação para escapar das respostas. Era uma batalha, com ele e comigo mesma, sempre buscando contornar as bombas do campo minado para conseguir chegar a algum lugar.
― Eu falei sério no dia do nosso casamento quando afirmei que esta aliança ― elevando a minha mão esquerda, girei o sofisticado aro de diamantes que cintilava em meu anelar ―, é uma prova de que o passado foi esquecido e perdoado. Mas você está enganado, não sou leal a um vampiro, sou leal ao meu marido, é diferente.
Foi discreto e pareceu vir lá do âmago, o sorriso vaidoso que refulgiu em seu rosto quando ele se voltou para frente; quase como se estivesse se segurando para não o dar, quase como se quisesse que eu não percebesse a sua satisfação em ouvir o que eu acabava de dizer. Ali eu soube que havia atendido as suas expectativas, talvez superado, e me senti ousada o bastante para persistir:
― Tudo bem que não queira me revelar o segredo, mas só me diz se tem alguma magia de Avigayil envolvida.
Esperei uma evasiva, uma réplica irônica e até mesmo a própria confirmação, mas nada, nem de longe, algo como a rouquidão profunda e sonora que preencheu o carro e os meus ouvidos com aquele arrebatamento que me fazia perder o ar. Eu nunca iria me acostumar com essas risadas. Era sempre como se o meu coração levasse um tempo para se habituar ao calor intenso despertado, e entre o assimilar e aquele torpor de fascinação, levei alguns segundos para conseguir reagir.
― Para! ― Cruzando meus braços, cerrei as pálpebras para ele. Naturalmente o seu riso cessou, resistindo apenas o vestígio de humor nos olhos contraídos, nas maçãs realçadas e lábios curvos. ― Não sei onde está a graça, nem é uma suposição tão absurda assim, porque mesmo que eu não saiba se algum dia você e seus pais já foram sensíveis ao sol, sei que foi Avigayil quem ajudou vocês no início.
― Não é absurda, pelo contrário. De maneira muito oportuna é a mais óbvia e o que todos acreditam, mas não poderia estar mais errada. Avigayil não se rebelaria contra os deuses arriscando uma solução para o que eles determinaram que deveria ser uma fraqueza, e também porque tanto eu quanto Eleonora ou Vincent, nunca a tivemos. ― O encarei, a minha testa franzida com o peso de uma mente que trabalhava em várias considerações, e a qual Anton reagiu elevando os ombros. ― Uma cortesia do nosso criador.
― Dracaos?
Ele confirmou, justificando a um fato que poucos tinham conhecimento, o primeiro vampiro existente podia andar ao sol sem ser afetado, e foi numa tentativa de associação, que automaticamente algumas das informações lidas no livro de Avigayil voltaram à minha mente.
― E essa foi uma das fraquezas escolhida por Chraos pra que os deuses permitissem que vocês criassem outros vampiros que pudessem viver tanto quanto vocês ― analisei.
― Não por Chraos, mas uma condição específica exigida pelos outros.
― Específica? ― A pergunta havia sido mais para mim mesma do que para ele, o que não o impediu de me afirmar com um meneio. ― Então há uma razão?
― Sempre há uma razão, fada.
― Qual? ― insisti, minhas dúvidas acompanhando o seu raciocínio.
― Eles usaram a lógica pura e simples. Somos predadores naturais e vocês são raças predominantemente diurnas, exceto os pulguentos, mas que ainda assim, também são adaptados ao dia. Portanto, ao nos tornar sensíveis ao sol, nos condicionaria à noite.
― E isso manteria vocês longe de nós, diminuindo o risco de algum ataque ou coisa assim ― completei e novamente ele anuiu. ― Mas vocês deram um jeito de burlar essas condições.
Muito lento, tal qual a sua astúcia sobressaía, Anton repuxou um sorriso, o movimento predatório acrescentando uma engenhosidade sensual à suas feições, do jeito que fazia partes do meu corpo formigarem contra a minha vontade e o frio do ar-condicionado desaparecer.
― Não sem razão, Chraos é considerado o deus dos enigmas ― observou revezando olhares entre mim e a estrada. ― Ele esconde o que precisa e só mostra o que quer que vejam com maestria o suficiente para que os outros deuses acreditem que o que revela, é muito mais do que desejam saber.
Certo, estávamos falando de Chraos ou dele? Porque considerando que fomos idealizados à imagem e semelhança de nossos deuses, Anton tinha muitas chances de ser quase um Dracaos, criado pelo deus dos vampiros e não pelo dos humanos. Se ele não fosse a mistura de características físicas fidedigna dos pais, eu até levantaria essa hipótese.
― Que engraçado, o meu marido é exatamente assim. ― A provocação foi intencional e os seus efeitos instantâneos. Anton mais uma vez riu, de um jeito involuntário como se seus reflexos fossem maiores do que podia controlar, e eu aproveitei para completar: ― Um manipulador nato que me enrola com gargalhadas sexy e assuntos que eu nem tinha consciência que desejava saber, só para não responder a minha pergunta.
Arqueei uma sobrancelha em desafio, mas na verdade, por dentro eu tinha o meu coração transbordando e uma vontade quase incontrolável de beijá-lo tão intensamente quanto as minhas forças permitiam, mas as circunstâncias não eram propícias. Em algum momento o seu riso se desfez, transformando-se em um sorriso largo sob uma ligeira mordida no lábio inferior, e foi nesse instante que precisei respirar fundo e me concentrar em qualquer coisa que não fosse ele.
Fixei-me na paisagem correndo pela janela, sua película protetora deixava as imagens escurecidas, mas pelo pouco que eu havia visto antes de entrar no carro, sabia que o dia estava encantadoramente claro, que o verde brilhava sob um céu azul vivo salpicado por algodões densos e cintilantes. Ainda não havíamos chegado à parte dos vales e despenhadeiros, então era provável que ainda não estávamos muito longe do castelo ou talvez estivéssemos indo em outra direção.
― O segredo é a tríade.
A aterrissagem foi brusca e eu senti o impacto do peito. Se havia sido um delírio ou se realmente havia ouvido aquela voz grave, eu não tinha certeza. Apenas me virei para ele, atordoada demais para conseguir formular algo mais além de um débil "Tríade?".
⭐ + 💬 = 💓
Queridas leitoras,
Não, não abandonei vocês! Jamais. Sigo tentando escrever quando posso, entre percalços e dramas. Confirmo mais uma vez, não tenho a menor intenção de abandonar a história, fiquem tranquilas.
Esta é a primeira parte deste capítulo (1/3), a próxima já está escrita, no entanto, preciso terminar de revisar, mas prometo que sai ainda essa semana.
Beijos!😘
Kass Colim
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