C A P Í T U L O 64
Penetrando o desconhecido
Pouco a pouco os meus olhos se abriram caindo no mais fundo oceano de águas límpidas, coberto por um véu reluzente que, nem se guardasse o brilho de todas as estrelas do universo, seria tão intenso e me deixaria tão hipnotizada. Anton sorriu, acentuando aquele ar de maravilhamento, meio perplexo, que servia apenas para deixá-lo ainda mais magnífico.
― Você gostou.
Não havia sido uma pergunta, mas uma constatação diante da facilidade com que eu havia me entregado a outro orgasmo. Eu não tinha como negar, e também nem pretendia. Ainda deitado sobre mim com seu sexo encaixado no meu, ele se apoiou nos cotovelos e curvou a cabeça para frente até os nossos lábios se tocarem.
― Isso é um problema? ― indaguei sentindo-o sugar o meu lábio e então descer beijos pela minha garganta.
― Só se for para a minha sanidade.
― Que sanidade? ― Parando repentinamente, ele levantou a cabeça devagar, uma sobrancelha alçada realçando aquele olhar que me desafiava a continuar, e o qual sustentei com um sorriso atrevido. ― Se você possui alguma, eu desconheço.
― É mesmo, fada? ― Ainda muito rígido, Anton movera os quadris saindo quase todo de dentro de mim, mas só para voltar em seguida com uma impulsão que me deixara sem fôlego. ― Se eu não tenho sanidade, então onde está o seu juízo, hum? Me provocando assim ― a sua voz diminuíra um tom, acompanhando o movimentar preguiçoso dos quadris ―, comigo ainda dentro de você e sabendo que posso te castigar, que posso foder você por horas, dias, sem te deixar gozar.
― Não, amor ― neguei manhosa, lhe envolvendo a nuca com os braços ―, você não faria isso comigo.
― Vai se comportar? ― Enfatizei um "sim" com um meneio, despejando uma sequência de beijos rápidos em seus lábios, tão logo, para o meu atordoamento, sentindo-o se afastar e se retirar de dentro de mim num movimento tão inesperado que o vazio me fizera soluçar. ― Então levante-se, quero que fique de joelhos no sofá, de costas pra mim.
Não o questionei. Ansiosa pelo que estava por vir, apenas fiz o que me pediu, puxando o meu cabelo para o lado e virando o meu rosto para o outro a fim de acompanhar os seus movimentos às minhas costas. Por vários segundos Anton se manteve imóvel e eu me virei um pouco mais, encontrando aquele olhar safado fixo à minha bunda, mas não foram nem dois segundos, e ele se aproximou apoiando um joelho entre os meus, e a outra perna esticada até chão.
O seu corpo quente e teso se encaixou no meu ao mesmo tempo que suas mãos deslizaram pela minha cintura e a sua cabeça se apoiara na lateral da minha. Suspirei, o meu corpo assimilando aquele contato e se entregando às pequenas contrações que despontavam em meu íntimo, e aos arrepios na minha pele que se aguçava ao seu toque. Entretanto, foi quando virei meu rosto para frente, que o meu coração saltou ao ver tão nítido quanto a claridade que entrava pelas portas, permitia ver, o objeto que de repente roubara a sua atenção.
À poucos passos do sofá, próximo à parede de pedra e adornado por uma ostentosa moldura dourada, estava o espelho alongado, refletindo uma imagem que se não fosse a sensação tão palpável e intensa daquele corpo abraçado ao meu, eu poderia acreditar ser um sonho ou algum delírio. Mas a nossa nudez era real, os nossos cabelos bagunçados, o assombro em meio às minhas faces coradas, a contemplação silenciosa na dele, o seu toque em meu ventre e a sua solidez à minha bunda; tão viva quanto a seu inspirar ardente sobre a minha pele, quanto aos abismos em êxtase refletindo tudo o que eu não conhecia, mas fluindo direto para o meu coração, submetendo-o à batidas cada vez mais fortes.
― Gosta do que vê? ― indagou ele, o seu hálito soprando e me estremecendo.
― Sim ― sussurrei, forçando-me a manter os olhos abertos ―, acho que ficamos bem juntos. ― "Bem" não era exatamente a palavra que eu desejava usar, porque "perfeitos" era a melhor definição para o que eu via, mas o excesso de precaução sempre me silenciava. ― Você não acha?
Anton afastou os braços abrindo espaço em meu ventre conforme as pontas dos seus dedos, com uma lentidão cuidadosa, começavam a rastrear as minhas curvas em direção aos meus seios, como se estivessem me desenhando ou tentando memorizá-las através do toque. A cada pequena parte minha percorrida, a sua cabeça ia se inclinando ligeiramente enquanto os seus olhos, sob o lânguido cerrar dos cílios, seguiam o movimento pelo nosso reflexo, absorvendo tudo.
Era confusa aquela devoção que às vezes ele se permitia demonstrar pelo meu corpo, quase como se eu fosse uma apoteose, alguma idealização imaginária e intangível que lhe exigia uma comprovação através do contato das nossas peles. Contato esse que em mim, transcendia, que conseguia ser muito mais profundo do que qualquer palavra que pudesse dizer, dando-me a falsa ilusão de que existia algo mais, algum sentimento intenso submerso em algum lugar ali, dentro dele.
Apenas um devaneio, eu sabia, também incitado pelo conflito refletido no cintilar turbulento de suas profundezas, o mesmo que trazia todos os meus próprios sentimentos à flor da pele, e que me fazia ter vontade de derramá-los sobre ele, sem volta, sem arrependimentos, mas os mesmos que a sua placidez circunspecta, a falta de uma resposta imediata e a angústia da espera, me fizera perder a coragem.
― Você não gosta do que vê? ― insisti, e ainda em silêncio, Anton voltou a acomodar a sua cabeça na lateral da minha, o olhar procurando o meu através do espelho.
― Eu diria que se existe alguma perfeição neste mundo, essa imagem seria a definição dela. ― O impacto havia sido preciso, me atingira tão agudamente que parei de respirar no meio do caminho, sentindo o poder da sua convicção ecoando dentro de mim e sumindo com tudo que não a nossa imagem emoldurada. ― Dois completos opostos se definindo e coexistindo, como tem que ser.
Sem saber ao certo o que pensar, muito menos o que dizer, apenas observei quando suas pálpebras se fecharam no que pareceu um piscar propositalmente longo. Ao subir delas, fui surpreendida pelas íris cobertas de vermelho sangue, expondo abertamente a sua verdade em substância, aquela que guardava o seu lado mais sombrio e intimidador, o qual me fazia tremer, mas que também me despertava um desejo tão mais ou igual violento.
― Assim como o bem que só existe pela definição do mal ― continuou, descendo a boca até a curvatura do meu pescoço ―, como a luz que se personifica nos limites da escuridão ou a inocência que é fundamentada pela designação da malícia ―, entreabrindo os lábios, ele deslizou a língua lentamente pela minha pele, provocando, e eu me segurando para não ofegar ―, ou a virtude idealizada pela manifestação do que é sórdido.
Num movimento tão remansado quanto a sua entonação, Anton escorregou uma das mãos pela minha cintura em direção à minha barriga, acariciando-a, e eu tentando inutilmente associar as suas analogias à medida que absorvia a sensação deliciosa, sentindo-o incitar e expandir aos poucos, aquela tensão que parecia se condensar naquela região e irradiar ao nosso redor como uma névoa quente.
― Então sim, fada, eu gosto do que vejo.
A mão que descia parou no alto da minha pélvis e como sempre, o instinto emergido pela sua influência me levou para além de qualquer consciência imediata, o meu corpo apenas correspondeu ao seu domínio quando, ao levar seu membro para entre as minhas coxas, me fizera arquear a bunda para ele.
― Gosto muito ― sussurrou, e eu me mantive parada de olhos fechados sentindo o deslizar da sua ereção por toda a minha intimidade, me preparando, e então buscando minha abertura secreta. ― Só não mais do que vê-la se entregar.
E eu me entreguei.
Com as mãos oscilantes acompanhando a flexão dos músculos de suas coxas, e um grito retido na garganta quando ele me penetrou. "Respire. Sinta o que eu faço com você". Eu não apenas senti, mas assisti o poder daquela sensação transfigurando nossas faces, vi o embalo rítmico levando nossos corpos e o êxtase em sua plena e fascinante concepção, enquanto, mais uma vez, caíamos naquela conexão muda, que dispensava explicações e assumia os nossos gestos através de uma única linguagem, a do desejo.
Os meus olhos pesavam quando tentei abri-los pela primeira vez. Entre um longo piscar e outro, observei com um certo prazer lânguido, a parca claridade que se infiltrava pelo voal flutuante, desenhando formas abstratas no chão. A brisa que escapava por entre as frestas das portas arqueadas trazia o cheiro de mar, misturando-o ao delicado cheiro floral, aos perfumes de pele e de Anton que se desprendiam dos lençóis.
O cenário parecia mágico, distante, o meu corpo nu também pesava parecendo consumido pela seda que o envolvia. Inspirei, virando-me preguiçosamente para o outro lado, ainda sonolenta, o tecido macio escorregando pela minha pele sensível e um sorriso ascendendo em meus lábios à cada lembrança que a sensação me provia, o mesmo sorriso que se desfez ao perceber que eu me encontrava sozinha na cama.
― Anton? ― Sentei-me coçando os olhos, dissipando qualquer resquício de sono ou langor que confundia meus sentidos.
Não havia nenhum sinal da energia dele no quarto.
Sem um retorno ao meu chamado, enrolei-me no lençol e me levantei indo a cada um dos cômodos adjacentes à sua procura, mas sem sucesso. O sol já estava quase se pondo, e essa era a primeira vez que Anton e eu nos separávamos ou que um de nós saía do quarto desde a manhã do dia anterior, quando havíamos chegado. Durante os dois dias, ele assegurara que todas as nossas refeições fossem feitas ali dentro, enquanto nos mantínhamos completamente ausentes e esquecidos do mundo exterior, dividindo momentos íntimos entre a cama, o terraço e o banheiro.
Não que eu estivesse completamente aborrecida com a sua ausência, eu tinha consciência de que não passaríamos toda a viagem dentro daquele quarto, e se com ele por perto se tornava impossível nos mantermos vestidos e com as bocas longe um do outro, recebi o momento como uma oportunidade de finalmente sair e conhecer o restante do castelo, aproveitando-o para ir à procura de algo para comer e claro, saber o paradeiro do meu marido.
Após um banho, entrei em uma calça jeans, camiseta básica e sapatilhas, e saí do quarto sendo surpreendida pela Rose parada logo à porta. A minha primeira reação foi perguntar sobre o Anton, e após ouvi-la dizer que ele estava resolvendo alguns assuntos, indaguei se havia acontecido algo para ela estar ali, e até preferiria que tivesse, pois a sua negativa seguida de uma resposta superficial só servira para despertar a minha indignação.
― Não acredito que ele ordenou que ficasse aqui me vigiando.
― Não vigiando, apenas fazendo companhia para caso a senhora precisasse de algo e...
― Companhia? Parada aqui na porta como um soldado enquanto eu estava dormindo? ― Eu não sabia o que mais me exasperava, se era a atitude do Anton ou a de Rose ao pensar que eu realmente acreditaria naquela desculpa ridícula. ― Por todos os Deuses, não sou uma criança! Eu só queria saber qual a verdadeira razão por trás disso, é pedir muito?
Eu havia me exaltado e começava a me arrepender ao ver Rose, sempre tão centrada e altiva, desviando o olhar, claramente desconfortável. A minha compaixão falara mais alto, e eu já abria a boca para dizer que sentia muito e que compreendia não ser sua culpa, quando ela fora mais rápida.
― Desculpe-me, Sra. Skarsgard. Insisto em dizer que não é para vigiá-la, ele só quer protegê-la.
― Rose ― dei um passo à frente parando bem próximo a ela e, diminuindo o meu tom, perguntei ―, me proteger do que especificamente? Por que não estou segura aqui?
― Não é que a senhora não esteja segura. ― Rose suspirou, sua fisionomia levemente contraída, revelando o conflito de seus pensamentos. ― A questão é que o Sr. Skarsgard não confia em quem não serve a ele, e apesar do castelo pertencer à família Skarsgard, são os funcionários do rei e da rainha que o administram, e ele... apenas não confia.
Por que tive a impressão de que ela quase ia soltando alguma informação relevante, mas que era proibida?
De qualquer forma, eu acabava de confirmar, os problemas de confiança do Anton eram muito mais sérios do que eu havia imaginado. A minha curiosidade ficara ainda mais aflorada para descobrir de onde surgira toda aquela aversão que ele nutria pelos pais, porém, era um fato que eu não conseguiria essas informações através do túmulo impenetrável que era a Rose, sendo assim, o melhor era ignorar o assunto por ora.
― Tudo bem ― concordei, dando um passo para trás. ― Mas é bom que o seu chefe não pense que eu vá ficar presa nesse quarto, porque pretendo sair por aí para explorar o castelo.
― Certamente a senhora não é nenhuma prisioneira.
Será mesmo? Eu quis provocar, mas me contentei com um sutil restringir de olhos murmurando um "Ótimo" antes de me virar e seguir pelo corredor. Após alguns passos, ouvi os saltos de Rose retumbando contra o chão num ritmo mais lento que o meu, parei para aguardá-la, mas os seus passos também cessaram. Estranhei, mas retomei o meu caminho, logo voltando a escutá-la atrás de mim.
― Você não está me fazendo companhia, Rose? Até onde eu sei, companhias andam uma ao lado da outra.
De novo parei e esperei que ela me alcançasse, vendo-a abrir um sorriso sem graça que me arrancara uma risada. Apesar das circunstâncias, eu gostava dela, e sentia através dos seus olhares carinhosos que o sentimento era recíproco. O seu comportamento às vezes excêntrico, eu atribuía ao Anton, mas no final, eu sabia que ela era alguém a quem eu podia confiar a minha vida.
Havíamos descido o primeiro lance de escada e andado por alguns saguões monumentais, eu já me sentia um pouco perdida ainda que vez ou outra, Rose me situasse. Uma das primeiras portas que atravessamos, nos levou a um salão desguarnecido de móveis e objetos, exceto por um piano de cauda lapidado em madeira negra e muito bem-polida, posicionado solitariamente próximo a um trio suntuoso de janelas.
Conforme explorávamos, aproveitei para fazer algumas perguntas sobre o castelo, e para a minha grata surpresa, Rose não se recusara a responder nenhuma. Acabei descobrindo que a idealização e fundação do castelo foram concebidas logo que Katerina fora transformada, e que a intenção de Eleonora e Vincent era construir uma fortaleza, um recôndito para a família o qual suas crias pudessem chamar de lar. O que só ocorreu quinhentos anos depois, quando o Vemphur começou a tomar forma. Desde então, foram centenas de reformas entre alterações, ampliação e melhorias durante os mil e quinhentos anos que se passaram, para finalmente chegar àquela estrutura.
Já no ambiente seguinte nos deparamos com uma sala que, ao contrário da anterior, era inteira preenchida por móveis e artefatos luxuosos, tapetes de couro e uma lareira gigante talhada em pedra e cortinada por uma camada de correntes, as quais duas humanas quase que provincianamente uniformizadas, espanavam, enquanto outras duas afofavam as almofadas e limpavam os pequenos ornatos das mesinhas.
Antes mesmo que me notassem, a voz imperativa de Lucila reverberou com alguma instrução em seu idioma nativo, fazendo com que as quatro interrompessem os seus afazeres e se curvassem para mim em reverência. A vampira, cristalizada no meio da sala com seus olhos profundos e postura impecável, repercutiu o gesto, e eu, desconcertada com aquele tipo de tratamento ainda tão extravagante para mim, apenas sorri, mas ao perceber que recolhiam seus utensílios para se retirarem, achei melhor intervir.
― Por favor, não precisa ― pedi dirigindo-me a Lucila, ciente de que era ela quem comandava as ações das outras. ― Não quero atrapalhar. Só estou de passagem e não me importo que permaneçam aqui.
A vampira ordenou algo para as quatro humanas, fazendo-as retomarem o trabalho, e então voltou-se para mim com a expressão suavizada por um sorriso.
― Há algo que posso fazer pela senhora?
― Não, está tudo bem, obrigada ― agradeci, tão breve retornando minha atenção para a beleza exuberante do cômodo.
Corri os dedos pela seda dos estofados, e então pelas molduras de madeira maciça. Em seguida, deixei-me levar até uma das janelas, dedilhando a superfície rochosa do umbral e admirando a paisagem que se definia do lado de fora. Estávamos a uns dois andares do chão, à esquerda, um gramado pontilhado por algumas estátuas se estendia até o início da floresta de coníferas, já à direita, desdobrava-se outra parte do castelo, e foi nesse cenário que vi a vampira que me fora apresentada como Francesca, estática, com a bochecha e os braços abertos colados à parede como se estivesse tentando abraçá-la.
― O que ela está fazendo?
Redirecionei meu olhar para Lucila, observando-a se aproximar da janela ao lado e espiar lá fora. A princípio não pareceu nada demais quando ela uniu as mãos e abaixou a cabeça ligeiramente, mas foi quando ela me olhou com um sorriso triste, que quase não se formou, que percebi ter algo errado.
― Todos os dias, assim que o sol se põe, Francesca gosta de tocar as superfícies em que ele refletiu pela última vez. Segundo ela, é uma forma de senti-lo. Na verdade, é a única, já que ela não suportaria a luz direta.
Tristeza, foi esse o sentimento que me veio e agora eu entendia a razão daquele sorriso frouxo. Eu nunca conseguiria ter uma noção real da angústia que deveria ser viver desejando sentir aquilo que se tornara sua fraqueza mortal, mas eu podia imaginar. Tornei a analisar a vampira ainda abraçada à parede, um pesar no peito se sobressaindo, pena talvez. A garota parecia tão nova e tinha tudo para ser cheia de vida, mas era obrigada a carregar o fardo daquela condição.
― Nenhum de vocês podem andar ao sol? ― perguntei, embora suspeitasse de que a própria Lucila pudesse, o que não deixava de ser uma incerteza.
― Apenas Francesca não pode.
― E por que só ela?
Parecia tão injusto. A vampira retornou sua atenção ao que acontecia lá fora, e então viera alguns segundos reflexivos antes que um exalar pesaroso a trouxesse de volta.
― Francesca é muito jovem, ela tem pouco mais de cento e noventa anos e foi transformada em uma situação um tanto inadequada. Acredito serem esses os motivos pelos quais o rei e a rainha ainda não a considerem digna de receber o dom.
Não houve surpresa da minha parte além do fato de que continuava sendo um mistério a forma com que Anton, Eleonora e Vincent concediam o dom de andar ao sol, bem como também me eram desconhecidos todos os critérios utilizados para escolherem os privilegiados. Ainda assim, apesar de não ter nenhum direito de questionar o regimento deles, ver a garota daquele jeito havia mexido comigo, e fora ao procurar saber mais sobre ela, que acabei descobrindo através de uma Lucila muito hesitante que, bem como Katerina, Francesca havia sido transformada aos dezesseis anos.
― Dezesseis? ― Rose repetira a afirmação da vampira, a expressão de quem estava mais desconfiada do que surpresa. ― É proibida a transformação antes dos dezoito, por que o rei e a rainha compactuariam com essa transformação?
― Eles não compactuaram...
― No entanto ― interrompera Rose ―, ela está vivendo aqui enquanto deveria estar morta.
Morta? Céus! Virei-me para a vampira mais velha, os meus olhos arregalados não só pela sua confissão insensível, mas pela frieza com que ela fitava Lucila.
― Estou aqui apenas para cumprir ordens, Sra. Tate, e não para questionar as decisões dos meus soberanos.
Deuses, era impressão minha ou clima de repente havia ficado pesado? Ficara evidente Lucila não havia gostado do tom acusatório de Rose, e se esta última se afetara com a animosidade da outra, não deixou transparecer. Rose piscou algumas vezes, mas fora isso, nenhum músculo de sua face se moveu, e com a mesma desafetação sóbria que normalmente se portava, levou as mãos para detrás do torso resguardado por um elegante blazer preto.
― Se você não os questiona ou o que você faz pouco me importa até o momento em que essas decisões possam interessar ao meu soberano. Você disse que a garota foi transformada em uma situação inadequada, que situação seria essa? ― insistira ela.
― Não cabe a mim falar sobre isso ― Lucila replicou, a resposta rápida me trazendo a sensação de que havia algo maior, talvez uma rixa por trás daquele comportamento defensivo. ― Se deseja saber, aconselho que pergunte diretamente ao rei ou à rainha.
Por um breve instante, quase vi uma voando sobre a outra tamanha era a ferocidade presente no olhar trocado entre as duas. E quando Rose deu o primeiro passo em direção à mais nova, engoli seco com todos os meus nervos sentindo a tensão do momento, assistindo-a passo após passo, até parar em frente a Lucila. Ambas de queixo elevado, quase da mesma altura, encarando uma à outra.
― Você sabe que ele irá desenterrar essa informação de você de qualquer maneira, não sabe? ― Pela primeira vez, a mais nova vacilou, os seus olhos escuros tremularam na tentativa de se manterem firmes, mas acabaram se desviando para o chão. ― Ele não será gentil, Razvn, mas talvez seja esta a cura para essa sua hostilidade desnecessária.
― Estou faminta! ― praticamente gritei a primeira coisa que me veio à mente, para o meu alívio, conseguindo atrair a atenção das duas. Aquela conversa já tinha ido longe demais, e eu me senti na obrigação encerrá-la antes que as circunstâncias terminassem com alguém perdendo a vida. ― Acho melhor procurarmos a cozinha, Rose. Vamos?
Desarmando a postura intimidadora, ela anuiu e imediatamente deu alguns passos para trás abrindo caminho. Com as bochechas quentes e um sorriso trêmulo, passei entre as duas, o meu olhar vagando para Lucila tomado por apreensão e culpa. Droga, por que as coisas sempre tinham que ser assim? Todas as vezes que surgia a chance de me aprofundar naquele mundo ou a tudo que se referia ao Anton, eu era obrigada a escolher entre permanecer na ignorância ou obter as minhas respostas condenando alguém à morte.
Não demoramos para alcançar a porta e já estávamos prestes a deixar a sala, quando a voz de Lucila me fizera parar.
― Sra. Skarsgard.
Virei-me devagar, e com igual cautela a vampira se aproximou. Ao atingir uma determinada distância, fizera um gesto pedindo permissão para chegar mais perto, e após a minha aprovação, se postou à minha frente, o olhar melancólico buscando o meu enquanto seus lábios se afastavam algumas vezes até a sua voz finalmente sair.
― Quero que saiba que não precisa se preocupar conosco, muito menos com Francesca. Ela é só uma menina que pouco conhece do mundo além deste castelo, por isso às vezes pode ser um tanto curiosa, mas é muito dócil e confiável. Posso garantir, por todos esses anos que a tenho sob meus cuidados, que ela não oferece nenhum perigo à ninguém, tampouco à senhora.
Havia tanta emoção naquelas palavras que foi impossível duvidar da sua sinceridade. Como que por instinto segurei a sua mão observando-a quase recuar ao gesto revezando olhares perturbados entre Rose e eu, comprovando mais uma vez que toques gentis e menos formais ou demonstrações de afeto em público não era comuns entre vampiros.
― Não estou preocupada, e também não quero que se perturbe, ninguém fará mal a vocês.
Se eu tinha convicção do que estava dizendo? Nenhuma. Os Deuses eram prova de que podíamos esperar qualquer coisa do Anton, mas da mesma forma que senti a necessidade de tranquilizá-la, eu faria o que tivesse ao meu alcance para que a nossa estadia naquele castelo não acabasse numa tragédia por causa de algum capricho do meu marido.
Nem me atrevi a olhar para Rose, limitando-me a recolher minha mão e oferecer um sorriso educado à vampira. Lucila analisou ao redor, verificando as quatro funcionárias que continuavam limpando a sala, e então gesticulou na direção em que eu pretendia seguir.
― Posso? ― Concordei passando a caminhar ao lado dela e de Rose. ― Francesca sofria de uma doença terminal quando humana. Dos quatorze aos dezesseis, passou lutando pela vida, e foi a metade desse tempo que o pai dela levou trabalhando para o clã Arzt até conseguir permissão para se transformar. O erro do clã foi tê-la concedido sem buscar saber a fundo sobre a vida e o passado de Mihail para confirmar a sua verdadeira motivação por trás da transformação.
Percebi que Rose ficara inquieta ao meu lado, e já estava prestes a abrir a boca quando discretamente segurei a sua mão relanceando uma olhadela de censura. Por sorte Lucila nem percebera, pois ainda falava, vez ou outra se interrompendo com um curto silêncio em que me elevava os olhos para então continuar.
― Após um ano transformado, quando o estado mais crítico de perturbação e inconsciência do processo passou, Mihail voltou pra casa e, sem sabermos ao certo como, dado estado debilitado dela e a inexperiência e falta de controle dele, conseguiu transformar Francesca.
― A motivação dele... era salvar a filha ― analisei, tão logo vendo-a afirmar com um aceno, mas o que eu ainda não compreendia era por que ela parecia tão pesarosa. ― Eu não entendo, que pecado há nisso?
― A ordem em meio a nossa espécie é mantida através de normas rígidas, Sra. Skarsgard. ― Rose fora mais rápida tomando a palavra. ― Só pelo que ouvi dessa história até agora foram quebradas quatro das mais graves, uma vez que é proibida a transformação não consensual que provavelmente deve ter acontecido com a garota, também é proibida a transformação com idade inferior a dezoito anos, e transformações feitas por vampiros com idade inferior a duzentos anos. E imagino que no processo deve ter havido a morte de inocentes. ― Rose voltou-se para a mais nova com um ar indagador. ― A mãe, irmãos?
Lucila apenas assentiu, e nesse momento eu já sentia o meu coração dolorido de tanto encolher.
― Eles morreram?
A vampira novamente anuiu, revelando que o pai de Francesca, em sua sede descontrolada, acabou matando a esposa e os dois filhos mais novos, e que talvez por isso tenha conseguido transformar a filha sem dar a ela o mesmo fim. Segundo Lucila, o azar do clã Arzt foi que o acontecido acabou sendo descoberto primeiramente pelo seu esposo, Dacian, e reportado diretamente a Eleonora e Vincent antes que pudessem sumir com as evidências da irresponsabilidade deles. No final, do clã foi abdicado qualquer direito de criação por um período de quinhentos anos, enquanto ao criador de Mihail, ao próprio Mihail e à sua filha, fora imposto a sentença de morte. Entretanto, foi durante a cerimônia de decapitação que Eleonora resolvera exonerar Francesca daquele fim, com a condição de que ela permanecesse no castelo aos cuidados dos Razvn, e que a sua existência fosse mantida em segredo.
Já no salão seguinte, Lucila se despediu colocando-se à disposição e eu, agradecendo-a pelo voto de confiança em me contar a história. Rose, que segundos antes havia se afastado para atender o celular, retornara com a notícia de que Anton me esperaria no salão de jantar principal dali a pouco mais de uma hora, e dado o brilho no olhar da vampira mais nova, até parecia um acontecimento.
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