C A P Í T U L O 60
As trevas
Anton apertou o botão e o vidro desceu abrindo passagem para a rajada de vento frio e silvestre que rapidamente invadiu o carro. Ignorando os protestos do meu corpo, me afastei dele aproximando-me da janela. Uma espiada lá fora e o salto do meu coração viera com um pulo para trás e um grito.
― Por Aine! ― Segurei nas laterais do banco, a tensão apoderando-se dos meus músculos e levando-me a enterrar minhas costas e cabeça contra o encosto, o meu peito subindo e descendo frenético e os meus olhos apertados ainda revivendo a imagem do precipício sem fim coberto de sombras, que se estendia à beira da ponte em que estávamos. ― Anton, que lugar é esse? ― indaguei, a voz aguda, quase chorosa.
― Calma, está tudo sob controle. ― Ouvi a janela ao meu lado se fechando, e então senti quando ele acomodou a mão sobre a minha coxa. Será que era uma boa ideia ele não estar com as duas ao volante? De qualquer forma, o gesto simples em meio a uma declaração tão tranquila e ao mesmo tempo consistente, me trouxe segurança. A tensão que pesava sobre os meus ombros aos poucos atenuou, e eu consegui abrir os olhos encaixando a minha mão sobre a dele. ― Pelo que me lembro, esse é o trecho mais crítico da estrada, depois fica menos ruim.
Menos ruim não queria dizer que seria bom. Como eu não havia percebido aquela paisagem até o momento? Atravessávamos uma ponte estreita que parecia interminável, e nem estava mais tão escuro assim para não ter sido notada. O negrume do céu começava a ceder lugar a um azul acinzentado, e mesmo que uma camada opaca de nuvens o cobrisse, os últimos raios da lua escapavam pelas suas bordas iluminando o horizonte e dando ao fim daquela madrugada, uma beleza tão soturna quanto a própria caligem da noite e os aspectos estranhos da região.
Ao final da ponte avançamos por uma estrada, em igual, estreita, sem sinalizadores ou divisas de tráfego, e que se tornava cada vez mais íngreme, sinuosa, seguindo os limites de um paredão rochoso que parecia mais e mais próximo como se quisesse se fechar sobre nós. Já ao meu lado, o abismo continuava se aprofundando em um vale coberto pelas sombras de uma floresta de pinheiros, a qual se estendiam por toda superfície acidentada como um tapete, alternando entre as depressões e as montanhas clivosas que se erguiam nos contornos. Vez ou outra, nessas mesmas montanhas, o tapete verdejante era rompido, ora pela tortuosa curva de uma estrada, ora por alguns penhascos pontiagudos que se indefiniam na distância.
Apesar do perigo iminente à cada zigue-zague, cada vértice rochoso, à cada metro que subíamos e do ar sombrio da bruma nevoenta que pairava por entre as pontas das árvores, eu tinha que admitir, a paisagem era linda e instigante. Mais do que fascínio ou do típico frio no estômago incitado por regiões desconhecidas, aquele lugar conseguia fazer o meu peito vibrar mais forte ante a singular sensação de reminiscência, como se eu já estivesse estado ali em outra época. O que era completamente imaginário, mas que não deixava de inflamar a minha curiosidade.
― Por acaso você está me levando para algum hotel tenebroso no alto de um penhasco? ― brinquei voltando meus olhos para ele, assistindo quando um sorriso triste foi lento e milimetricamente desenhado em seus lábios, outra ínfima demonstração da sua exaustão, e que foi desfeito quando sua boca se abriu e a sua rouquidão reverberou sem pressa.
― Prometi que te levaria para conhecer as trevas.
E fora nesse exato segundo que fomos cobertos pela escuridão ao adentrarmos o túnel que penetrava a montanha rochosa. O seu fim, marcado pelo clarão da aurora, não demorou para ser alcançado, e foi definido por uma curva fechada para esquerda que nos afastava do despenhadeiro e nos abrigava entre alguns pinheiros que margeavam as altas muralhas de rocha lúrida. Quanto mais subíamos, mais baixas elas se tornavam e mais presente era o bosque de coníferas.
Por muitas vezes tive a sensação de ir e vir, conforme a estrada serpenteava sinuosamente pela floresta formando um labirinto, um que, como Anton havia dito, nos levou para o que se podia definir como trevas pela sua excentricidade fúnebre, mas também como um sonho pelo quão irreal era a sua grandiosidade e beleza.
O primeiro vislumbre veio assim que ultrapassamos um significativo portão de ferro, e havia sido as pontas das torres extremamente altas, para além dos cimos dos pinheiros, cortando o céu agora de um cinza mais sereno. Então viera as rebuscadas molduras arqueadas, a exorbitância de detalhes esculpidos nas gigantes paredes de pedra e as elaboradas armações que de longe davam forma a flores e arabescos cobrindo as janelas.
Quando o conjunto tomou forma e o reconhecimento veio, fui imobilizada pela surpresa de um modo que parei de sentir a minha respiração.
― O... o Castelo de Vemphur...
Minhas palavras mal saíram compreensíveis, meu coração se debatendo em desequilíbrio no apertado espaço entre os meus pulmões, e a minha pele se eriçando para espantar o calafrio que o impacto daquela visão sombria me provocara. Como Anton havia me prometido, estávamos no castelo que por inúmeras vezes havia me levado a buscar com tanto fascínio as mesmas páginas dos livros de história.
A sensação nostálgica não poderia estar mais presente, e junto dela a inquietação, o medo e a insensata atração pelo mistério que sempre me seduzia. Eu não conseguia olhar para aquela edificação sem reconhecê-la no vampiro ao meu lado, muito menos olhar para o homem que havia me completado a vida, sem admitir que eu não poderia esperar menos do seu mundo e da sua história encantada pelas trevas, que também se tornara a minha.
Quando Anton parou entre o círculo gramado rodeado por estátuas e a entrada do castelo, os outros carros já haviam estacionado e todos, descido. A porta ao meu lado foi aberta pela Rose, e eu pouco contive a minha ansiedade em sair, o meu olhar flutuando até o poderoso paredão à frente, ainda lutando para me trazer a certeza de que realmente estávamos ali. A riqueza de detalhes daquela entrada era impressionante, e era provável que nem se eu passasse os quinze dias olhando um a um, conseguiria definir todos os pequenos entalhes da pedra ou os refinados arabescos de metal cravejados na madeira da porta.
Girei o corpo apertando meu casaco contra ele. Num êxtase langoroso deixei minhas pálpebras caírem, ouvindo ao longe o sibilar sussurrante do vento por entre as folhas dos pinheiros, e inspirando lentamente o cheiro de verde em meio ao frescor do orvalho. Mas tão breve a voz do Anton rompeu com a ordem para que Rose me levasse para dentro, e ainda mais rápido abri os olhos vendo-o se afastar em direção ao gramado, onde um expressivo número de vampiros fardados estava a postos, agrupados em filas.
Achei curioso o fato de os primeiros de cada fila se colocarem de joelhos assim que Anton chegara até eles, e o inevitável "O que está acontecendo?" saiu da minha boca enquanto eu deixava Rose me guiar para dentro do castelo. Ela foi breve e sucinta ao revelar que os que se ajoelharam eram vampiros iniciantes, e que estavam vendo o Anton pela primeira vez. Quando insisti em saber o que seriam esses iniciantes, ela dissera que eram vampiros que haviam passado por um período de cem anos de testes, e que por se mostrarem merecedores, estavam prontos para concluir a iniciação a fim de entrar de vez para a Ordem de Akron.
Nada mais foi dito, e eu também havia me perdido em algum momento totalmente maravilhada com o esplendor bruto e exótico do saguão de entrada, com as suas grandes colunas que se arqueavam no teto, as suas tétricas estátuas espalhadas por todos os lados e o granito negro que sustentavam nossos pés.
A parca luz do fim da madrugada que conseguia atravessar os vitrais rebuscados das janelas que o circundavam, acrescentava uma solenidade ao silêncio melancólico, quase sacro, e ao ar vazio dele, que na verdade nem estava tão vazio assim. Além dos vários vampiros que transitavam com a nossa bagagem, havia cinco figuras com rostos marcantes e particularidades pitorescas que se encaixavam perfeitamente no cenário.
Os dois primeiros vampiros eram uma senhora e um senhor de cabelos grisalhos, semblantes austeros e vestes que pareciam pertencer a algum século passado, e que se apresentaram como Horea e Serban Razvn em um sotaque tão carregado, que o inglês pronunciado quase fora incompreensível. Já a vampira seguinte falava fluentemente, dona de um rosto marcante e soturno, mas de sorriso simpático e cabelos escuros, que aparentava ter sido transformada por volta dos trinta anos e se apresentara como Lucila, filha biológica do casal de idosos e esposa do vampiro de olhar apagado posto ao seu lado, Dacian.
Por último e não menos intrigante, estava uma garota de cabelo castanho-claro com seus aparente quinze anos em um vestido fúnebre de mangas bufantes. Achei divertido o olhar nada comedido dela, havia uma curiosidade na forma como seus tristes, mas persistentes olhos cinzas observavam o meu cabelo, as minhas roupas. Francesca era o seu nome que, segundo Rose, junto dos outros quatro, ajudava a cuidar da manutenção e administração do castelo.
Por um momento pensei que esperaríamos pelo Anton, mas James apareceu avisando que ele precisava se alimentar e que Rose deveria me acompanhar até o quarto. Eu estava tão curiosa para desbravar o castelo que não me importei muito, segui Rose e Lucila para o salão seguinte, e então por uma gigantesca escada de pedra, espiralada, mal tendo tempo de absorver a beleza trevosa e desabitada dos ambientes em que passávamos. Dois andares acima, antes de virarmos para o corredor da direita, Lucila parou e Rose apoiou a mão nas minhas costas de maneira protetora.
― Francesca, nós já conversamos sobre isso ― advertiu a vampira levantando o pulso para olhar o relógio. Eu que havia pensado que a garota tinha ficado no primeiro saguão, olhei ao redor e a vi sair timidamente de trás de uma das altas pilastras que ficara para trás. ― O sol nasce em sessenta minutos, você precisa se retirar agora.
Com a palavra final e sem nem mesmo se virar para olhá-la, Lucila voltou a andar, e a garota somente abaixou a cabeça e se retirou em silêncio. A tristeza evidente em seus gestos fizera o meu coração se encolher, pensei em falar alguma coisa, mas não sabia o que, e logo o toque de Rose me lembrou que devíamos prosseguir.
Já havíamos subido por outra escada e caminhado entre tantos corredores vazios e saguões monumentais com suas paredes de pedra, tetos arqueados e belíssimos vitrais, que eu não tinha a mínima ideia de como voltar e começava a me sentir incomodada com a sensação de estar perdida quando, por fim, informando que aquela era a ala norte, Lucila abrira a única porta que ficava no fim do corredor em que estávamos.
Um quarto gigantesco se revelou à nossa frente, o qual fui escoltada para dentro, e céus... se antes eu tinha a impressão de estar visitando um museu de arte gótica, naquele momento eu me sentia como se tivesse sido transportada para algum século passado. Lucila começou a falar algo sobre a lareira que tinha seu fogo quase apagado enquanto abria com facilidade as cortinas de veludo preto que cobriam as cinco portas envidraçadas existentes ali, mas não prestei muita atenção no que dizia, pois toda ela estava voltada para suntuosidade do cômodo.
No completo oposto do estilo clean, moderno e minimalista da nossa casa, não tinha um móvel ou um item de decoração daquele quarto que não fosse praticamente uma obra de arte, muito rebuscada, muito escura e ostentosa. Desde a moldura da lareira, os quadros, os sofás, a penteadeira, o espelho emoldurado, os candelabros nos cantos, as luminárias na parede e o lustre no teto, os tapetes de pele, as cortinas e a enorme cama.
E que cama... de longe era a particularidade mais excêntrica do quarto, com uma cabeceira alta e larga esculpida em madeira escura e ornada com veludo; apoiava um dossel coberto por um voal negro atado nas hastes de sustentação.
Tudo muito bonito, refinado e ao mesmo tempo denso, com tantas fechaduras e detalhes curiosos que pareciam guardar os segredos de uma vida. Contudo, era perceptível o quão bem cuidado era o lugar, o cheiro fresco e delicado de lírios-do-vale comprovava que era mantido limpo, mas ainda assim, das velas, dos metais, dos tapetes e das inúmeras almofadas, de cada compartimento secreto, de cada dobra de tecido ou de cada fresta das gavetas, escapava o inevitável perfume do tempo.
― O banheiro é por aqui ― disse Lucila apontando em direção a uma abertura na parede situada no lado esquerdo. ― O quarto de vestir fica ao lado, mais tarde virá um grupo de criadas para desfazerem as malas.
Criadas? Não restava dúvida, eu realmente tinha ido parar em outra realidade. Lucila continuou falando sobre toalhas limpas e sobre a água quente do chuveiro que havia chegado junto da eletricidade há algumas décadas, e que por isso eu não precisava me preocupar. Em uma única frase, acabei descobrindo que Eleonora e Vincent, de tempos em tempos, reformavam o Castelo para mantê-lo atualizado com os confortos e benefícios da modernidade.
― O café da manhã será servido às sete, mas se desejar, posso providenciá-lo antes. ― Lucila finalmente havia parado de falar e, passando as mãos pela saia preta de linho, abriu um sorriso gentil. ― A senhora tem alguma dúvida? Deseja alguma coisa?
― Não, está tudo bem, Lucila. Agradeço a apresentação, e por agora não preciso de nada.
A vampira fez uma reverência e saiu, mas não sem antes garantir que estaria à minha disposição. Rose ia aproveitando a oportunidade para se retirar também, mas se deteve quando perguntei se sabia quanto tempo o Anton iria demorar. Sem uma resposta precisa, ela garantiu que ficaria do lado de fora o esperando aparecer e que eu deveria tomar um banho e me deitar para descansar um pouco, ou seja, provavelmente ele iria demorar.
Lucila Razvn
Dacian Razvn
Francesca Razvn
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