C A P Í T U L O 33
Um longo e solitário tempo
Houve um momento em minha vida que a solidão parecia ser a condição mais confortável para se estar. Eu não precisava lidar com a vergonha, não precisava lidar com os olhares condolentes e preocupados, e era sempre mais fácil enfrentar a dor quando eu não precisava vê-la nas expressões das pessoas que amava.
Só que isso fazia parte de um passado distante.
Eu não era mais aquela garotinha de doze anos que precisava suportar o que a minha mente infantil mal compreendia. O tempo e os anos de terapia me fizeram acreditar que tudo havia sido resolvido, e talvez a maior prova disso, era o quanto a solidão me incomodava agora. Ela começava a me despertar um sentimento que há meses eu não sentia com tanta intensidade.
O medo.
Eu não queria ficar sozinha, não depois do que acontecera. Não havia nada de reconfortante no vazio silencioso do meu quarto. As paredes, as quais deveriam me passar a sensação de segurança, pareciam aterrorizantes e me sufocavam com uma melancolia pungente, que ia me suscitando o desespero conforme as lembranças das últimas horas ressurgiam.
Não era só o quarto ou a minha cama fria, era a casa, era a minha mente, era a ausência dele. Parecia loucura, mas eu queria estar com ele. Com o ser que me proporcionara uma das cenas mais chocantes da minha vida, mas também o que me fazia esquecer de todas elas.
Anton não só havia me ignorado durante o caminho de volta para casa, ele havia subido as escadas da garagem e ido direto para o seu escritório sem me dirigir uma única palavra ou um único olhar sequer. Ainda que eu não o compreendesse na maioria das vezes, entendi seu gesto como um aviso de que queria ficar sozinho, e eu tentei respeitar.
No entanto, já havia se passado pouco mais de duas horas, e estava ficando insuportável tentar lidar com as emoções. O pânico se tornara crescente assim como o meu choro, e sono parecia algo impossível naquela noite. Eu iria enlouquecer ali dentro se continuasse sozinha, inspirando o ar frio condensado pela escuridão e pela solidão da casa.
Em frente à porta do escritório dele, tentei mudar de ideia enquanto me livrava das lágrimas, contudo, eu nunca estivera tão resoluta do que queria como naquele momento. Dei três batidas suaves na porta e esperei. Segundos se passaram e provavelmente até minutos, entretanto, não houve nenhum sinal dele, mas Anton estava lá dentro, eu podia senti-lo. Descartei a possibilidade de que ele não tivesse ouvido, talvez ainda quisesse ficar sozinho ou apenas tivesse pegado no sono.
Bati outras três vezes.
― Anton, posso entrar? ― Aguardei por mais algum tempo, e nada. Espalmei a mão na porta e encostei a minha testa sobre a madeira fria. ― Por favor...
― Vai dormir, fada. ― A sua ordem ressonara numa voz pesada e muito mais enrouquecida do que o habitual, tal como estava na noite anterior.
Será que ele estava... Não, não era possível, ele havia dito que não era viciado.
― Ainda estou assustada e não consigo dormir. ― O silêncio continuou sendo a sua resposta, e foram mais alguns longos minutos que esperei por ela. ― Anton...
Ele estava me ignorando de novo, só que desta vez, o meu estado mental sensível e volúvel não estava em condições de aceitar isso ou de respeitar o seu momento. Em vez de bater, girei a maçaneta e abri a porta devagar. O ar que soprou lá de dentro era ainda mais frio e trazia o cheiro dele misturado ao odor salgado de sangue. Terminei de empurrar a madeira, dei um passo para dentro e só então o vi.
― Saia daqui agora.
Sua ordem austera não me fizera recuar, porque meus olhos estavam fixos ao corpo dele seminu tentando entender o que se passava. Anton andava de um lado a outro no meio do escritório usando apenas uma de suas cuecas boxer pretas. A luz era fraca e se concentrava em pontos distantes, mas eu o conseguia ver entremeio a escuridão parcial.
Ele tinha um copo de bebida entre os lábios, os seus passos eram dados com certa dificuldade, e foi ao descer meus olhos pelas suas pernas, que percebi haver uma placa metálica de pouca espessura presa à circunferência da sua coxa direita, e outra presa à sua panturrilha esquerda. A partir delas, a pele branca estava manchada com rastros vermelhos que escorriam e formavam poças no chão que iam sendo arrastadas, espalhadas, à cada passo dele.
― Anton, você... você está sangrando!
Puro instinto me fizera ir em sua direção. Ele não me olhava, e não havia me dirigido um único olhar desde que eu entrara lá.
― Eu já falei para sair daqui, porra! ― Detive meus passos. Não havia chegado a ser um grito, mas a sua voz tinha subido alguns tons, o que me assustou porque ele nunca a alterava desse modo.
Por alguns segundos continuei amortecida tentando processar aquela reação, dividida entre o seu aviso e a minha vontade de ir até ele. Foi então que ouvi o barulho do copo se espatifando contra a parede, me trazendo de volta ao que acontecia. Anton se aproximou rapidamente, segurou o meu braço e me arrastou para fora do escritório, fechando a porta em seguida.
Fiquei um bom tempo ouvindo o ecoar do barulho da madeira se batendo com força junto do batimento acelerado do meu coração. As lágrimas voltaram a descer, e foi ali que percebi que não havia mais nenhum motivo que me prendia àquela casa, pelo menos naquela noite.
A verdade que eu já sabia, acabava de ser exposta e esfregada na minha cara. Quando comecei a esperar alguma coisa dele? As circunstâncias exigiam demais de nós dois, ele não parecia bem, eu também não estava, e não tínhamos como nos ajudar. Só havia uma certeza, Anton nunca me deixaria aproximar e os meus sentimentos me enlouqueceriam antes que eu tentasse suportar aquela situação.
Retornei ao meu quarto só para colocar um casaco por cima da camisola, calçar uma sapatilha e pegar a minha bolsa. Já em frente à sala de segurança, fui recebida por um Mike desconfiado, olhando para todos os lados além de mim, mas quando seus olhos se fixaram no meu rosto, a sua expressão se suavizou e fora tomada pela compaixão. O meu choro tinha cessado, mas eu sabia que os meus olhos ainda estavam vermelhos sob a umidade inevitável.
― Mike, preciso da chave de um dos carros. ― Houve um lapso de surpresa em seu rosto, e eu apertei a minha bolsa, implorando mentalmente para que não se opusesse ao meu pedido ou que não me fizesse perguntas.
― O Sr. Skarsgard sabe que a senhora pretende pegar um dos carros dele?
― Ele... ele não precisa saber. Vocês roubaram o meu carro, lembra? ― Mike desviou o olhar expressamente constrangido, mas logo se recompôs e então capturou o celular de dentro do bolso.
― Sinto muito, Sra. Skarsgard, mas preciso da permissão dele antes de te entregar uma das chaves.
― Não! ― Levei a minha mão até a dele para impedi-lo, e apressadamente Mike se afastou, olhando desesperado para as câmeras. ― Escuta, Anton deixou o James à minha disposição, mas ele já se retirou e não quero incomodá-lo à essa hora, mas talvez você, Gianni ou Edgar pudesse me levar até a casa da minha amiga. ― Desconfiança e confusão haviam voltado ao seu olhar, e eu não tinha certeza se ele estava pensando a respeito ou se estava ponderando a melhor forma de me dizer "não". ― Por favor, Mike...
Um inalar profundo e um meneio sutil.
― Sinto muito, mas realmente preciso da autorização dele para qualquer uma dessas opções ― ultimou dando um passo para trás, antes de se virar e levar o telefone ao ouvido.
Droga, eu não sabia como ainda insistia com ele. Só me restou encostar na parede e esperar. Se eu tivesse chamado um táxi, me pouparia tempo, mas havia o medo de entrar em um, com um desconhecido no meio da madrugada, mas se não houvesse outro jeito, seria isso que eu iria fazer. De qualquer forma, eu tinha certeza que o Anton não iria se opor a deixar um dos seus seguranças me levar, ele mesmo não me queria por perto.
― Boa noite, Sr. Skarsgard. ― A voz firme acentuada pela formalidade, me fizera olhar para o chefe de segurança, seu corpo parecia mais teso do que a segundos atrás. ― Desculpe-me... ― Ele fora interrompido. ― Bem, é que a Sra. Skarsgard está aqui pedindo que eu a leve... ― Novamente ele parou de falar para ouvir. ― Sim, senhor, como quiser.
Então Mike voltou-se para mim com uma cara nada boa, devolvendo o celular para o bolso do paletó.
― O Sr. Skarsgard pediu para que a senhora suba imediatamente.
Qual era o maldito problema dele? Não consegui evitar, os meus olhos voltaram ficar úmidos antes mesmo que eu pudesse sair correndo daquela droga de sala.
― Eu... sinto muito.... ― As últimas palavras de Mike soaram tão baixas quanto um murmúrio, porque eu já estava nas escadas quando as ouvi.
À cada degrau, era uma tentativa frustrada de tentar reter minhas emoções, e eu só me indagava quando fora que eu havia me permitido perder o controle da minha vida daquela forma. Logo eu, que sempre fui independente, que sempre corria atrás do que queria, que sempre me resguardava de problemas.
Meus passos diminuíram após o último degrau, até o meu corpo estagnar a vários metros da silhueta imperiosa parada na penumbra do meio da sala. O repentino acelerar do meu ritmo cardíaco me impediu de respirar, pelo simples motivo de que eu era o centro da sua atenção agora. Enxuguei minhas lágrimas com o dorso das mãos tentando me recompor como podia, enquanto o observava. Anton continuava descalço, mas havia voltado para dentro da calça social e da camisa preta aberta.
― Aonde você vai? ― inquiriu autoritário cruzando os braços.
Meus lábios se separaram algumas vezes, mas nada se organizava na insegurança da minha mente.
― Só... só não quero ficar sozinha esta noite ― sussurrei, e o arrependimento foi instantâneo. Eu não precisava falar isso, não precisava me mostrar tão frágil, e muito menos que a minha voz tremesse fazendo as palavras ficarem engasgadas. ― Eu... eu vou para a casa da Sophia. ― Abri a minha bolsa para pegar o celular, a visão turva quase não me permitia ver o que havia dentro dela, mas era a desculpa perfeita para que ele não percebe o desespero em meus olhos. ― Vou chamar um táxi.
Mal percebi quando Anton se aproximou, porque eu continuava de cabeça baixa usando todas as minhas forças para não ceder a mais lágrimas, mas só foi preciso sentir o calor do corpo dele ao redor do meu, e a pele do seu tórax contra a minha bochecha, para eu me permitir chorar. Em parte, pela vulnerabilidade do momento, em parte pela imprevisibilidade dele, e ainda havia a leve compunção por expor minha fraqueza tão facilmente.
Deixei minha bolsa de lado e me agarrei a ele fechando os olhos e afundando o meu rosto sobre o seu coração. A pele cálida, a sutil vibração do seu peito, a essência transcendente, me confirmavam que era ele quem eu precisava no momento, só ele. Um inspirar profundo, uma descida no abismo que era aquele contato, e a minha carne trêmula não demorou para começar a se acalmar até os toques alentadores absolverem a angústia e me compensar com sentimentos que aqueciam o meu coração e o meu corpo.
Anton exalou profundamente, então entrelaçou os dedos nos meus cabelos e afastou a minha cabeça para que eu lhe fitasse os olhos. O brilho da lua que adentrava pela parede de vidro realçava o negro das pupilas ampliadas envoltas do fino círculo límpido. Era o indício físico do que ele estava fazendo, e o meu peito se contraiu um pouco mais com essa percepção.
― Me peça para te deixar ir ― exigiu, o olhar intenso externava um certo conflito como se estivesse tentando evitar algo.
― Se eu pedisse, você me deixaria ir? ― indaguei, e a dúvida que vi em suas profundezas me intuiu a pensar que talvez ele não me quisesse longe, e isso era o suficiente. ― Não quero que me deixe ir, Anton... ― Encostei a cabeça em seu peito.
O aperto dos seus dedos entre meus fios se intensificou, e novamente ele suspirou pesado, como se estivesse em uma árdua luta interna.
― Merda, fada. Você deveria querer manter distância de mim. Eu realmente tentei...
― Não quero distância de você ― o interrompi chorosa. ― Eu não quero... Não quero pensar no que aconteceu ou no que vai acontecer depois, eu não me importo ― ofeguei, o ar pesava com emoção. ― Eu preciso viver isso aqui...
Soltando uma imprecação incompreensível, Anton me pegou em seus braços e eu aptamente me movi para frente, moldando meu corpo contra o dele para que não houvesse nenhum espaço entre nós, então agarrei-me à sua nuca e enfiei o meu nariz em seu pescoço.
Os segundos seguintes foram como um sonho febril, eu estava inebriada com aquele cheiro e mal percebi sua movimentação até chegarmos ao seu quarto. O caminho pareceu tão curto e breve ante a minha vontade de permanecer grudada a ele, que quase protestei quando me colocou sobre o edredom macio e se afastou de mim.
― Durma ― falou dando a volta na cama e indo em direção ao banheiro.
A sensação de abandono foi ruim, foi frustrante. Foi confuso perceber que eu esperava ansiosamente que ele se aproveitasse da oportunidade para me tocar e me fazer dele como horas antes havia ameaçado fazer. Será que Anton não me queria mais? Provavelmente não com o caos avermelhado e úmido que deveria estar o meu rosto.
Levantei-me da cama retirando meu casaco e o abandonando sobre o récamier junto da minha bolsa tiracolo, então caminhei até a parede oposta à frente da cama, a qual era coberta por espelho. Tirando os olhos vermelhos e inchados, o nariz escorrendo e os cabelos desgrenhados, o resto estava normal, o que não adiantava muita coisa.
Eu estava um horror.
Limpei o que tinha de limpar, ajeitei os fios displicentes e retirei minhas sapatilhas. Ao voltar para a cama, puxei todo o edredom para baixo e me sentei no mesmo lugar que ele havia me colocado, recostando-me numa parede fofa de travesseiro, aninhada ao dele.
Dormir era algo que eu não conseguiria fazer, então restou-me esperar.
O banho dele havia sido muito, muito demorado. Anton saíra do closet só de cueca, passando as mãos nos cabelos molhados, e não precisava mais que essa visão para que meu coração se exaltasse de forma sufocante. Os olhos claros encontraram os meus, mas tão logo desceram vagarosamente pelo meu corpo até se fixarem no travesseiro dele preso entre as minhas pernas.
― Para a sua segurança, você deveria dormir ― advertiu desviando o olhar, ao contrário de mim, que acompanhei cada movimento dele.
Anton apagou quase todas as luzes, deixando somente os quase imperceptíveis feixes nas extremidades do quarto, além do abajur ao meu lado e a luminária de chão atrás da poltrona do canto, onde ele se sentou. Pensei em perguntar por que eu não estaria segura caso não dormisse, mas me retive a uma resposta simples.
― Não estou com sono.
Voltei meu corpo para ele, e me deixei escorregar um pouco para baixo de modo que a minha cabeça se acomodasse em um dos travesseiros, e assim passei a observá-lo. Retirei do momento de apreciação cada faísca de desejo que ele me permitia absorver. A cabeça apoiada no encosto, o rosto perfeito ligeiramente inclinado para o lado, os músculos do tórax tensionados sobre o respirar brando, cotovelos apoiados nos braços do estofado, e uma das coxas elevadas seguindo caminho até o tornozelo posto sobre o joelho.
Os olhos azuis também levaram um tempo passeando pelas minhas curvas, demorando no decote da minha camisola que revelava boa parte dos meus seios, passando pela minha cintura, quadris, descendo pelas minhas coxas até os meus pés. Havia um tipo de veneração nesse gesto, como se eu fosse uma daquelas pinturas antigas e raras que deve ser apreciada somente de longe para que não seja danificada pelo toque.
Céus, como desejei que ele me tocasse naquele instante. Aquele vampiro tinha uma espécie de fogo insano e sombrio que inflamava os meus desejos mais ocultos.
― Você pode vir dormir, se quiser ― gesticulei em direção à cama.
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