C A P Í T U L O 14
A refração da verdade
"Ou o pecado apenas tenha se tornado outro, um mais sensível, vulnerável, ainda mais atraente e desejável." Embora tentasse romper qualquer conclusão motivada pelas palavras do Nicolae, sempre fui razoável e pragmático o bastante para admitir a verdade e considerar a sua relevância.
O pecado havia se tornado alguém cuja mera personalidade era tão intrigante quanto a um enigma, cujas ações eram tão confusas quanto a uma tempestade, e cuja beleza era tão excitante que, se eu permitisse, aniquilaria toda a minha razão e equilíbrio. E havia sido exatamente isso que acontecera naquela noite. De uma maneira tão ordinária quanto invulgar, permiti que o meu controle escorregasse pelas minhas mãos.
Um deslize.
O resfolegar desesperado atraiu minha atenção para o corpo caído no meio da sala. Calmamente pousei a garrafa de BlackOpus sobre o balcão e levei o meu copo até a boca, observando Nicolae despertar em meio a desorientação. O líquido amargo ainda descia pela minha garganta quando seus olhos me encontraram e um sorriso ardiloso surgiu em seus lábios.
― Decerto, as circunstâncias são ainda mais sérias do que receei ― analisou ele levantando-se do chão e ajeitando o blazer ao corpo.
― Não tanto quanto ficará caso volte aqui.
Virei o restante da minha bebida e abandonei o copo sobre o balcão. Ao contorná-lo, apoiei meus quadris em uma das banquetas e cruzei meus braços e tornozelos, assistindo Nicolae caminhar até uma das poltronas e se esparramar sobre ela.
― Ora, qual a razão de tanto ciúmes, irmão? Será que é por que ela é mais do que você pode esconder, mais do que você pode dominar?
― Você está esperando algum tipo de confissão? ― Acentuei o sarcasmo em minha voz, buscando as palavras certas que acabaria com o seu riso em um segundo. ― Pois bem, aqui vai a minha confissão em quatro palavras. RedDoor. Lavine Stephen. Escarificação.
― Palavras lançadas ao acaso, tenho certeza ― devolveu ele, após um silêncio atormentado. ― Você não joga sujo. Muito sei que a sua malevolência é apenas uma maneira de manter o controle.
― O conceito de malevolência é um pouco anacrônico, não acha? Os seres passam a vida tentando resistir ao pecado de cometê-la, fazendo com que suas mentes se deteriorem e apodreçam à loucura, corroídas por desejos e inclinações a que foram condicionadas a reprimir e condenar. No entanto, nunca ficamos livres desse impulso, da propensão natural de sermos cruéis e sórdidos. ― Retendo meu olhar no seu, arqueei uma sobrancelha. ― Quanto a mim, você sabe que nunca refreei meus impulsos, pelo contrário, só os aperfeiçoei. Então pague para ver até onde posso chegar.
― Esqueça a garota, ela não se encaixa nos seus padrões ― pediu tentando soar resoluto, talvez desinteressado, mas fracassando vergonhosamente.
Por mais que tentasse atenuar o desconforto com um sorriso, os traços do seu rosto se ressaltaram em linhas rijas, o que era bem risível por se tratar de alguém que nunca perdia a graça e o riso. Suas reações só vieram comprovar minhas suspeitas, além de aumentar o meu desejo de devolver suas provocações.
― Nunca adotei padrões para a morte, e muito menos para a escarificação. ― Endireitei-me e dei alguns passos em sua direção, observando com um certo deleite a insegurança refletida em seus olhos retraídos. ― Pensei em lapidar uma linda paisagem nas costelas dela, tão profundas que dariam excelentes cicatrizes. O que me diz?
Um riso forçado descerrou-se do fundo de suas entranhas conforme sua cabeça balançava sutilmente em negativa.
― Certo, você pode ser um cara durão, com garras de aço, com seus vícios, suas leis, sua posição, seus danos psicológicos e físicos, mas sei que não envolveria inocentes em uma brincadeira.
Encaixando as mãos nos bolsos, inclinei minha cabeça para o lado, o examinando com atenção. Que mulheres eram uma de suas fraquezas, sempre esteve claro a todos, porém, o cuidado excessivo e, em especial, a exclusividade exigida pela garota em questão, entregava falhamente que o seu interesse por ela não era apenas sexual.
― Hum, então é verdade, ela é a protegida do "Boss". Aliás, que merda de apelido é esse? Desde quando você obriga seus funcionários te chamarem assim?
Desta vez a sua gargalhada viera espontânea e verdadeira.
― Em minha defesa, eu não tenho nada a ver com isso ― protestou erguendo as mãos. ― Uma das dançarinas novas me intitulou assim, e agora a alcunha pegou.
― Nunca o vi tão displicente, Nicolae, e não foi isso que te ensinei. ― Lancei um último olhar repreensor para ele, antes de me virar e voltar ao bar, onde nos servi duas doses de Opus. ― Não foi difícil descobrir sobre a garota, e menos ainda comprovar que ela tem algum valor para você. Imagine o que seus inimigos fariam com essa informação.
Ao capturar as duas bebidas, caminhei até ele e após lhe entregar o copo com RedOpus, sentei-me na poltrona à sua frente.
― O que posso fazer, sou um cara apaixonado por mulheres, e esse fato já é naturalmente a minha maior fraqueza. Assim como a sua bela esposa está se tornando a sua, creio que agora me compreende, não? ― Um sorriso vaidoso fora se abrindo lentamente em sua boca enquanto seu copo era estendido até mim.
― Deixo as fraquezas para aqueles que são fracos ― assegurei, a indiferença regida pelo meu controle não só presente em minha voz, mas ao tilintar meu copo no seu.
― A propósito, onde está a beldade loira? A última vez que a vi, ela estava um pouco... assustada?
― Este será o meu último aviso, fique longe de coisas que não lhe diz respeito. ― Levantei-me sob o eco espalhafatoso de outra de suas gargalhadas inúteis, e segui rumo ao escritório. ― Vem logo.
― Você está cego aos fatos, meu caro irmão. Quando nosso discurso se inflama ou nossos pensamentos se exaltam sobre algo ou alguém, ao ponto de escorrer para as nossas ações ao menor descuido, devo dizer que não há mais volta. Não percebe que já está tão abalado, tão envolvido, que não mais consegue se controlar? A sensatez deveria fazê-lo aproveitar o que não pode ser desfeito.
Eu não estava cego, podia muito bem ver a catástrofe que aquele casamento poderia virar. Eu também não era inocente, muito pelo contrário. Sempre me orgulhei de ter controle suficiente para nunca me ver preso a qualquer coisa que não quisesse. Contudo, aquele havia sido apenas um deslize, justificável, dado a noite de merda que eu havia tido. Doze garotas, e nenhuma chegou perto do que eu queria ou precisava.
Parecia que nada mais estava sendo o bastante, aceitável, nada estava aliviando ou sequer mascarando o vazio. Eu queria algo mais, algo que não poderia ser tocado por mim sem que eu levasse à sua destruição, algo que me fizesse sentir que estava cometendo um grande erro, um grande pecado.
Um que a minha promessa não me permitiria cometer.
Distância era tudo o que eu buscava nesses últimos dias, mas o pecado a todo momento batia à minha porta com aqueles grandes olhos azuis como se desejassem conhecer a escuridão da minha alma, se exibindo e me incitando às fantasias mais confusas, singulares e equívocas, as quais eu nunca poderia considerar colocar em prática, se quisesse cumprir a minha palavra de que a manteria viva.
Eu precisava manter as minhas mãos longe dela, de qualquer jeito.
Ignorando o pirralho às minhas costas, abri o escritório e me dirigi até a minha mesa. Nicolae entrou logo em seguida, não perdendo a oportunidade de mexer em tudo que não devia.
― Sabe ― prosseguiu ele parcialmente agachado, revirando uma das esculturas de aço ―, certa vez, num determinado antro de VS, um vampiro muito sábio me revelou que todo ímpeto que tentamos reter, todo anseio que tentamos resistir e controlar, escraviza as nossas mentes e nos torna reféns de uma eterna insaciedade. E que a única maneira de nos libertarmos desse desejo opressor, é nos rendendo a ele. ― Nicolae me olhou e sorriu, então se levantou e caminhou até a mesa abandonando o copo sobre ela. ― Quero estar presente quando você sucumbir ao delírio da tentação, irmão.
― Sou eu que vou estar presente se você ferrar com a apresentação do IA aqui no Brasil ― o adverti virando o notebook para ele.
― Ora, o que poderia dar errado aqui? O lançamento em Londres foi um sucesso, e não foi só a nossa presença que o tornou glorioso.
De fato, ele estava certo. A Skar Technologies havia praticamente reprogramado o continente Europeu após o evento da última sexta. As vendas dos produtos Skar haviam triplicado, e a quantidade de upgrades do IA havia ultrapassado a marca dos cem milhões só nas primeiras doze horas. No entanto, o lançamento na América do Sul estava muito perto de um desastre, por algum descuido dele.
― O código fonte não quer rodar no emulador ― falei apontando para a tela.
Prontamente, Nicolae se jogou na cadeira à frente puxando o notebook para perto.
― Você o atualizou? ― questionou com os olhos fixos à tela e os dedos trabalhando frenéticos. Ele continuava me testando, não era possível. Ao meu silêncio, lançou-me um olhar atravessado e riu. ― Sou um desenvolvedor, e não um usuário... ― forçou sua melhor entonação da minha voz, e eu apenas suspirei fundo.
― Você tem até amanhã, meio-dia, para resolver isso. ― Levantei-me da cadeira. ― Agora vá embora.
Tive de aguentar a sua conversinha fiada por mais alguns minutos antes que Nicolae finalmente fosse embora. No entanto, ainda havia outro assunto que eu teria de resolver. Parado em frente ao quarto dela, remexendo na chave dentro do meu bolso, percebi que aquela seria a parte mais difícil da noite, tão difícil e exasperante quanto tudo que era relacionado a ela.
Eu só precisava manter a maldita distância, as circunstâncias não precisariam chegar a tal ponto se aquela fada não fosse tão impulsiva e desobediente. Eu havia mandado que ficasse longe das pessoas próximas a mim. Eu havia ordenado que subisse para o quarto. E tudo o que ela fez, foi me desafiar, me irritando de um jeito que me fez perder a cabeça.
A verdade era que, perto dela, estava cada vez mais difícil enxergar a razão.
Tentei lutar contra a sua estranha influência, me apropriando da desculpa da garagem para irritá-la e afastá-la, mas de alguma forma, muito confusa e imprevisível, tudo que eu consegui fora instigá-la e aproximá-la ainda mais. A sua presença estava se tornando tolerável, quase desejável, e eu não tinha a menor ideia de como me permiti chegar a esse nível. Eu nunca negligenciava nenhum sinal por mais simples que fosse, o qual me indicasse que algo estava errado.
E algo estava muito errado.
Se tornou explícito que a sua fisionomia etérea me trazia à superfície algumas das minhas inclinações mais primitivas, e alguma coisa muito próxima parecia emergir dela também. Eu percebia a maneira como me olhava, o brilho que não conseguia esconder, a cor intensificada, os tremores e o lábio nervosamente mordiscado. Havia aquela atração, a reação instintiva que estava virando uma necessidade sexual tão violenta, que estava me fodendo a mente.
Um pecado do qual eu não podia consumar, e que não iria.
Girei a chave na fechadura com a intenção de apenas destrancar o quarto, mas sem que meus pensamentos pudessem refrear meus instintos, minha mão abraçou a maçaneta fazendo-a abrir a porta. A luz estava acesa, permitindo os meus olhos, no mesmo segundo, irem de encontro à silhueta delicada deitada sobre a enorme cama de casal.
A fada estava virada para o outro lado, encolhida, com os cabelos espalhados pela colcha rosa. Seu corpo quase não fazia nenhum movimento perceptível, mas o suave ressonar de um choro baixo preenchia o silêncio do quarto. Muitas coisas se passaram pela minha mente ao vê-la ali, mas ao mesmo tempo, nada ficava, como se os pensamentos fossem incapazes de se conectarem, por não fazerem sentido.
Um desejo impulsivo se arrastava dentro de mim, fazendo-me fechar as mãos em busca de algum domínio sobre o meu corpo. O melhor que eu podia fazer era sair dali o mais rápido. Virei-me, mas antes que pudesse me afastar, ouvi a sua voz sedosa e embargada.
― Não pense que irei deixá-lo me trancar no quarto novamente. Eu não tenho medo de você, e não sou sua prisioneira! ― Lá estava ela me desafiando de novo. Será que aquela fada ainda não tinha percebido o quanto era perigoso me provocar e me dizer o que eu podia ou não fazer?
Escarificação – é uma técnica de modificação corporal, na qual consiste em provocar pequenos arranhões ou incisões no corpo através de objetos cortantes.
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