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No último dia de caminhada, o mestre demonstrava extremo relaxamento. O menino observou-lhe com surpresa, afinal, sem toda a tensão, Aldous parecia um homem completamente diferente.
Retornando à escadaria, Chase surgiu prostrado.
— Mestre Algos, lhe aguardávamos para a refeição. Herdeiro!
— Olá, meu filho! — Aldous sorriu, escusando-o.
Chase o abraçou forte, respirou fundo e seguiu à cozinha.
— Olá, família! — Aldous sorriu. — Como foi na ausência?
— Triste, sentimos saudade! — disse Latisha, manhosa.
Aldous a abraçou e ela retribuiu com ternura, numa das poucas manifestações de carinho, sem o viés lascivo, que Sigmund viu.
— Tire o dia para descansar, monge! — dispensou Aldous. — Lidarei com as pendências da escadaria que a ausência causa.
— Sim, senhor. Estou bem cansado mesmo...
Cedo, no dia seguinte, após o momento com Althea, o menino foi ao salão principal. Aldous estava à mesa, comendo uma salada enquanto observava o trabalho de seus filhos.
— Bom dia, pequeno buda. Como se sente hoje?
— Tirando o apelido estúpido, bem, mestre! — cumprimentou.
— Mais um ano — suspirou. — Agora que tivemos dias de paz como mestre e aprendiz, conversemos, Sigmund. Está disposto a seguir treinando para envergar Algos?
— Sim, mestre.
— Compreende a responsabilidade que carrego?
— Sim, mestre.
— Conseguirá lidar, sem permitir que sua forma de sentir-se, em relação às almas, afete seu desempenho? — Aldous levantou.
— Falta-me sabedoria. Há muito a admirar na vida, mas não enxergo como Ela. Não sei se consigo me afastar do que me torna um risco à vida, mestre — disse o menino, cabisbaixo.
Olhando para seu mestre com toda franqueza, ele seguiu:
— Tudo, bom ou ruim, ajuda para eu sentir... dentro de mim... que os vivos precisam morrer! As más previsões me compelem a melhorar para lidar com essa dor de uma vez!
— É e será difícil. — O mestre lhe disse. — Será ainda mais intenso, mas não estou criando um genocida, monge. Quando eu duvidar de sua capacidade de resistir, lhe matarei hedionda e odiosamente; trairei minhas leis e ambos morreremos, espalhando sofrimento a tudo que você aprendeu a amar e eu amei por muitos.
O menino franziu o cenho, observando o mestre.
— Isso será nosso crime contra tudo e, com fé, tudo conspirará para marcar todas as lágrimas que causarmos em sua alma, entendeu, Sigmund? — Aldous o indagou, muito sério.
— Por que iria tão longe, mestre?
— Porque amo.
O menino engoliu seco, sentindo os pelos do corpo arrepiarem, meramente pela intensidade que as palavras do mestre carregaram.
Silenciados, ambos sentaram e Laura os serviu vinho, recolheu a louça e os deixou, sem quebrar o silêncio que os rondava.
— Tudo que eu executar será com todo meu esforço e excelência, mestre. — O menino se comprometeu. — Estou disposto a tentar assegurar a continuidade da vida, mas temo... não conseguir...
— Por que está disposto, criança? — Aldous fitou seus olhos.
— É melhor alguém como eu lidar com tamanha imundice do que alguém como ela... eu mereço... mais do que ela jamais merecerá.
— Ótimo! Treinaremos e estudaremos. Após o desafio de Allatu, se unirá a sétima horda... até a chama de minha vida apagar, você se aprimorará. Lembre... precisa colorir o branco.
Sigmund assentiu com a cabeça. Terminando o vinho, Aldous seguiu na direção do corredor, acompanhado do aprendiz.
— Será apresentado como um sacerdote de Macária e um curto intervalo separa esse momento do desafio... parecerá imediato.
— Sim, senhor, mestre!
— Darei algo para o desafio — sorriu, sádico. — Faça-o gritar!
Passando em seu quarto, Aldous deixou sua lira e foi com o menino a área de treinamento. Indo ao centro, materializou uma lira sobre a mesa e, atipicamente, o mestre assumiu a ofensiva, sorrindo.
Numa resposta automática, o menino se assustou e apostou na esquiva, muito malsucedida dada a falta de prática. A lira começou a tocar e Aldous fitou seus olhos enquanto as agulhas se animavam.
Vendo os pequenos vultos às costas do mestre, Sigmund temeu... ainda mais quando ele percebeu ser o alvo dos insetos metálicos.
O mestre pareceu se divertir com o pavor que notou no olhar do aprendiz. O mínimo erro na esquiva seria doloroso como Sigmund não podia imaginar, logo, ele manteve a defensiva por algumas horas.
Ao notar o cansaço no menino, a melodia acelerou e Aldous bailou com ela com um largo sorriso no rosto. Realmente cansado, Sigmund ficou tonto e parou.
Um tom grave encerrou a canção, que vibrou por toda a área de treinamento, sucedido pelo romper da máscara do menino. As agulhas estavam mirando o menino, mas pararam em sua frente.
— Argh! Esse é o momento em que te odeio, mestre! — O menino reclamou, caindo sobre os joelhos com sangue escorrendo da testa.
Aldous gargalhou, parando em sua frente e o olhando.
— Suprima esse monte de energia e sobreviva!
— Impossível! — esbravejou, irascível.
Foi difícil levantar com o corpo tão tenso.
— Não perguntei se era possível, disse para fazer.
O menino rosnou de raiva e a lira voltou a tocar, alimentando sua irascibilidade ainda mais. Com dificuldades, Sigmund evitou as agulhas, começando a se concentrar para suprimir a energia.
A instabilidade, imposta pela canção, impossibilitou o êxito. Voltando a se mover com as agulhas, Aldous tornou mais difícil.
Em poucos meninos, Sigmund acumulou muitos ferimentos.
Quando finalmente exitou com a supressão, Aldous o acertou e o fim da concentração levou a abrupta expansão de sua energia.
Uma dor lancinante em seu estômago o fez cair. Um sabor amargo junto ao ferro do sangue passeou em sua garganta.
— Sei que conhece a cura... é o momento de usá-la para não morrer — instruiu Aldous, parando para esperar.
Desnorteado, ele concentrou-se para curar as feridas graves.
— Agora de volta a supressão! — O mestre disse, rindo.
Sigmund resmungou, ininteligivelmente, e voltou a se concentrar. Aldous retomou a ofensiva e, para conseguir lidar, Sigmund alternou entre curar suas feridas e a supressão enquanto evitava ser atingido até seu corpo não resistir e cair, desacordado.
O mestre riu, passeou com sua sinfonia na lira à mesa e a rápida canção voltou a tocar. Quando o Allegro não bastou para despertar o menino, Aldous avançou ao Vivacissimo.
Protegido pela louca sabedoria em seu íntimo, a dor afetou Sigmund, pressionando-o a acordar ofegante aos gritos.
— Levante! — O mestre disse. — Você tem força! Quando acabar, seja mais forte. Ser uma criança do Estige significa caminhar entre vida e morte, respeitando as leis existenciais e as leis da mãe. Quando as forças da vida acabarem... não hesite... use as forças da morte!
O aprendiz o amaldiçoou em silêncio, mas o mestre gargalhou — conhecia aquele olhar. Retomou a ofensiva por dias, sem parar, exigindo constante uso de energia do menino para não somente se manter ativo, mas também para se manter funcional.
Enquanto desacordado, o mestre o nutriu e hidratou.
A sinfonia do menino aprendia surpreendentemente rápido, condicionando-se a nutrir o corpo homeopática e involuntariamente.
As feridas mais leves eram rapidamente supridas enquanto o trabalho, mesmo lento, de lidar com as graves se tornou involuntário.
Quando Aldous cessou a canção, Sigmund parou, exausto.
— Descanse por duas horas e sairemos — disse Aldous, saindo.
Sem forças para andar ou falar, Sigmund deitou, tentando se poupar para curar as feridas graves e, ao fim, foi ao quarto, devagar.
Não arriscou encarar a água por já saber da consequência drástica de tocá-la, trocou-se, jogando o trapo que usava na portinhola da entrada do quarto.
Chegando no salão principal, embriagado, Aldous dedilhou uma das cordas de sua lira e Sigmund caiu, gritando com o corpo tenso.
— Atrasado! Levante e vamos.
— Onde!? — perguntou, tentando levantar.
Aldous não respondeu, continuou em pé, olhando seu esforço.
— Epifron! — invocou.
— Meu pai! — Chase chegou, prostrado. — Eita! O herdeiro está morrendo — riu. — Hoje não é dia de... a mãe ficará chateada!
Aldous riu, puniu Chase com sua lira.
Chase caiu com a dor entre lamúrias e risadas.
Sigmund finalmente levantou.
— Epifron é um sádico! — reclamou.
— Isto é para você aprender o que não fazer, herdeiro... — Chase gargalhou, punido novamente por Aldous.
— Epifron, foco! — repreendeu Aldous.
— S-s-sim, senhor! — disse Chase, rindo, voltando a prostrar-se. — Ai! — suspirou. — No que posso ajudar, meu pai?
Aldous tocou a lira de novo para puni-lo.
— O que fiz agora, pai!? Ai!
— Agora, me fez esquecer! — reclamou.
— Você deve realmente gostar de sentir dor! — O menino riu.
— Pareço gostar, herdeiro!? Dói sentir dor! É horrível.
— Parece divertir-se! — retrucou, em negativa.
— Sairemos, Epifron. Sim, ao Grande Cemitério. Cuide de seus irmãos. Se houver alguma pendência, deixe que lidarei ao voltar.
— Sim, senhor. Não devo lidar? — perguntou Chase, levantando.
— Só mantenha seus irmãos quietos e calmos... será suficiente! Precisarei de trabalho ao voltar mesmo — deu de ombros.
— Sim, senhor. O herdeiro vai assim, nem um banho, herdeiro?
— Se eu entrar naquela água, enlouquecerei muito! É perigoso.
— Medo da dor, herdeiro!? — debochou Chase, irônico.
— Se não posso matar ninguém, sim, medo da dor!
— Justo! — Chase concordou, rindo.
Aldous seguiu com Sigmund para o Grande Cemitério.
Haviam crianças e jovens. Muitos sacerdotes trajavam vestes cerimoniais. Frente a tanta formalidade, o estado maltrapilho de Sigmund chocou a maioria dos presentes.
"Amor da minha vida, peça que não intervenham com meu herdeiro!", pediu Aldous no íntimo de Althea.
Não tardou para todos tentarem fingir normalidade. Sigmund andou devagar de cabeça baixa, dedilhava o saung para se manter acordado e distraído da dor e das feridas que ainda estavam abertas.
O aprendiz foi aos pés da estátua de Macária, observou o salão e Althea não estava. Deixado só por Aldous, cuidadoso com o templo, Sigmund priorizou lidar com as feridas que ainda aspergiam sangue.
Algumas crianças aproximaram-se, oferecendo ajuda.
— Não deveriam se aproximar de um louco! — O menino riu. — Posso tentar matá-los a qualquer momento, é perigoso...
Intrigadas, as crianças o deixaram só. Goenix se aproximou e sentou em posição de lótus com os olhos fechados em sua frente.
— Olá, Sigmund! — sorriu.
— Olá, monge! — cumprimentou Sigmund, observando-o. — Veio saber o quanto tenho vontade de te matar? Muito!
— Soube da hostilidade conosco. É exótico lidar com você. O mestre disse serem dois... cri ser impossível! Falta-me sabedoria.
— Um aspirante a iluminado perplexo comigo? Estou lisonjeado. O que quer? Aproveita-se que não distribuirei selvageria aqui?
— Seremos vizinhos... devo conhecê-lo. Uma de minhas futuras responsabilidades será cuidar de ti, meu irmão! — sorriu doce.
— Claro, agora tenho outro monge me perseguindo... maldição! O que tenho que me faz tão apetitoso para vocês!?
— É parte da família... quanto aos outros, não sei o porquê.
— É uma satisfação conhecê-lo! Satisfeito!? Agora vai embora!
— Precisa aprender a ser mais amigável...
— Não preciso de mais um... com o monge você não insistiu!
— Não podia pressioná-lo por não saber o que ocorria. Agora eu sei... e sei que, com você, posso pressionar bastante — riu.
— Perturbando com consciência... Nossa! Não mereço isso!
Goenix deu uma risada.
— Tsc, calma, Sigmund! Mantenha-se são. Não mate ninguém!
— Soube do seu problema em Burma... lastimável! Ainda não lidamos com o homem que lhe fez sofrer, mas conseguiremos.
— Já que sabe tanto de mim, quem é você, de onde é?
— Goenix. Herdeiro de Epidotes, a personificação da purificação. Nasci aqui na Grécia, meu pai veio tentando fugir das castas, eu acho!
— Hindu?
— Sim, o pai me temia, enlouqueceu... a matou... tentou me matar... é um bom resumo da minha vida! — sorriu amarelo.
— Mais um monge sofredor... Em Aakash, não atendíamos às castas... apesar de os monges estarem hierarquicamente acima!
— O mestre disse... a doutrina theravada é límpida! Intriga-me a perversão do homem... Ninguém notar haver algo errado... Estamos trabalhando na linha que ele manipulou os opositores...
— Fez comigo e eu nem era uma ameaça ainda! Com outros, nem me espanta, mas aprendi ser contagioso... Um dos jovens mortos foi um estúpido e alguns aldeões fecharam os olhos para a estupidez...
— Peçonhas de natureza diferente... Triste, não!?
— Muito! Se está lidando com o incidente, se intrometendo na minha vida com veemência em demasia, posso pedir algo?
— Claro, somos irmãos — sorriu, ainda mais gentil.
— Sua gentileza mata, tsc! — Sigmund se concentrou e mostrou Ava. — Não procurei porque se achar vou atrás imediatamente... mas preciso que esteja viva! Ela merece... Não precisa me dizer. Só, por favor, ache ou ajude com seu bom descanso — pediu.
— Procuraremos. Ela parece importante! — Goenix riu. — Se é importante para um irmão, é importante para toda a família.
— Eu ainda te odeio, monge!
— Nunca fui monge, a iluminação de minh'alma resulta de um asceticismo passado, creio que o mesmo lhe ocorre. Lembra?
— Não lembro tanto... sei flertar com Bodhi há algum tempo.
Aldous voltou com vinho, falava com Yurri e ria bastante.
— Olá, herdeiros... Até logo, herdeiros, Aldous. — Yurri saiu.
— Os vizinhos estão socializando. — Aldous riu. — Brindemos!
— Argh, mestre! Que inconveniente...
— Trouxe vinho para um buda, não para dois... — Aldous riu.
— Agradeço, senhor, mas irei ao mestre. Com sua licença! — cumprimentou Goenix, levantando. — Até logo, Sigmund!
Goenix saiu e Sigmund relaxou, quase cochilou algumas vezes, mas Aldous o manteve desperto com um toque na lira. Com esforço, o menino resumiu os gritos de dor a gemidos, lágrimas e suor.
Um tempo passou e Aldous olhou na direção do grande salão.
Sigmund, sentindo o perfume de Althea, também olhou.
A grande sacerdotisa chegou, vestida num quíton negro com detalhes prateados. Ela segurava a flauta contra seus seios. Como sempre, tinha um largo e belo sorriso em seu rosto.
— Vamos, monge! Agora não podemos ficar aqui.
— Sim, senhor... — Ele levantou devagar, suspirando.
Althea sentou aos pés da estátua, cumprimentando todos, formal. Descansou a flauta em seu colo, feliz.
— Sou uma mulher, sacerdotisa e mãe realizada. Hoje, nossa casa, vive a honra de abraçar novas crianças. — Sua voz doce soou.
Alguns dos mais velhos sorriram, compartilhando da mesma felicidade que a sacerdotisa — alguns meramente contagiados.
— Juntos, daremos nosso melhor para curar a vida.
A grande sacerdotisa ergueu o punho direito, como quem propõe um brinde, apesar da ausência de uma taça, e os sacerdotes ergueram suas taças.
— Antes de iniciar, lhes desejo muita sabedoria. — A grande sacerdotisa disse com tom de voz ainda mais gentil. — Os caminhos, rumo ao futuro, se estreitam e segui-los será turbulento. Nossa Senhora e mãe sempre cuidará de nós e por Ela, com Ela, nós, os mais velhos, sempre estaremos aqui por todos vocês.
Fazendo uma breve pausa para observar cada um dos novos rostos que receberiam, Althea encerrou sua fala:
— Desejo-lhes felicidade neste novo ciclo. Que sigamos nossa sacra responsabilidade, cuidando uns dos outros e da vida.
Encerrando, a sacerdotisa fechou os olhos, se concentrando para dar início ao importante rito de passagem de tantos.
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