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Mestre e aprendiz beberam a primeira taça de vinho em meio ao silêncio. Sigmund não tinha tanta facilidade em se recuperar, mas aquele instante ao lado do mestre lhe foi confortável o suficiente.
— Pode-se encontrar beleza até nas mais sujas almas — disse o mestre —, mesmo que em seus gritos. Minha mente sempre toma esse mesmo rumo que o seu. É normal ter raiva, ódio, da ingratidão viva. Eu tenho! Minhas experiências me possibilitaram respirar fundo e seguir meu dever... mas, cair ainda me é um risco iminente!
— Sou incapaz de lidar com isto agora, mestre.
— Porque raiva nubla sua mente agora, associando os feitos do homem com seu próprio sofrimento. Feche os olhos e se concentre. Pegue o sofrimento acumulado em seu peito, extraia todo ensinamento possível e permita ao corpo descartar o resto... Nunca carregue mais que o necessário para ti... isso mata!
O mestre pôs as mãos nas costas de Sigmund e o menino sentiu uma descarga mais intensa atingir o gélido ponto em seu peito. Seguindo as instruções do mestre, acabou entrando em meditação.
Pôde sentir claramente a lágrima em seu peito, realizando as funções de seu coração e além. Reviver, mesmo que em suas memórias, toda a tragicidade de Aakash lhe deu raiva num primeiro momento, tristeza e frustração também acompanharam.
Contudo, havia o que aprender com o que vivera e ele conseguiu objetivar esse aprendizado. Mesmo que não gabaritasse as lições de primeira, ainda tomou as notas necessárias e deixou que o resto se acumulasse num canto escuro de sua mente, como papel velho.
Uma das funções da lágrima em seu peito se mostrou, quando ele a sentiu recolher todo o lixo emocional no canto escuro e convertê-lo em lágrimas, que correram por sua face.
Cada gota expelida lhe dava uma sensação de relaxamento exótica, que ele só sentiu quando Althea tomou sua flauta para tocar e tentar — com êxito — apaziguar seus pesares.
Mesmo Aldous pôde notar os fortes sinais de relaxamento.
Lembrando-se da redução de peso em seu coração que a canção de Althea lhe propunha, Sigmund deu um acanhado sorriso, começando a cantarolar a canção.
— Sim, foi ela quem me ensinou. — Aldous riu. — É incrível o que aquela mulher faz! — disse saudoso. — Pode enxergar nosso íntimo com uma precisão invejável. Toca-nos com sua doce melodia e toma nosso fardo, mesmo que não queiramos. É, de longe, realmente digna de ocupar a posição de liderança que ocupa.
— A admiração que nutre por ela é bem impressionante... mas, a cada dia eu a vejo como ainda mais justificável! — O menino riu.
Sigmund estranhou quando subitamente Aldous pareceu mais alerta. Olhando rapidamente na direção, viu Alexa chegando e o hostil olhar de seu mestre fitava a autoridade.
Afastando pensamentos problemáticos, o menino permaneceu deitado. Sua expectativa lhe garantia que não se tratava de nenhum grande problema e, se fosse, não teria potencial para envolvê-lo.
— Aldous. Sigmund. — Ela cumprimentou ambos.
— Anaideia, que agradável! — Aldous disse, levemente irônico, levantando-se apressadamente para cumprimentá-la formalmente.
— Soube de excessos nos degraus. Vim saber o que ocorria.
— Excessos, minha senhora!? — questionou Aldous, observando para saber se ninguém a acompanhava. — Creio haver um engano.
— Ouvi da décima quarta escadaria, Aldous. Não vim questionar seus métodos, mas soube que o herdeiro teve problemas recentes — disse, observando Sigmund deitado, ignorando sua presença.
— Problemas já resolvidos. Nada que exija vossa presença — disse, mantendo a calma, suprimindo toda a ironia e sarcasmo em si.
— Sigmund — chamou Alexa, olhando-o.
O menino levantou a cabeça para olhá-la.
— Olá, senhora! — O menino lhe sorriu. — Peço perdão por minha indelicadeza, porém, essa posição é muito confortável para os meus pulmões — justificou, voltando a deitar sua cabeça.
— Acabamos de realizar um pequeno exercício onde não tive possibilidade de delimitar um espaço. Felizmente, meu herdeiro foi facilmente dissuadido a não ser agressivo com ninguém. Infelizmente, não posso dizer o mesmo da pobre alma.
— Agradeço o cuidado que teve com outros, porém, isso não é nada que deve se repetir nos degraus. Se precisar de ajuda, me chame ou chame Ianos — disse Alexa, cumprimentando-o e dando as costas.
— Se colocarem um iluminado na minha frente numa insana tentativa de me acalmar, perderei totalmente minha capacidade de raciocinar... creio que perderei minha inteligência!
O mestre não conseguiu omitir sua risada, porém, omitiu o sorriso no rosto quando Alexa se virou para olhá-los.
— Não se preocupe, senhora! — Aldous disse. — Foi apenas um momentâneo e rápido lapso que não se repetirá.
A sacerdotisa fitou-lhes por alguns instantes, mas nada disse e voltou a subir os degraus, rumo à sua escadaria. Aldous olhou para Sigmund, que ainda ria, e lhe aconselhou:
— Não seja assim na frente dela. Anaideia é sensível!
— A mãe combateu comigo, mestre... não é possível que ela, com ainda mais autoridade e responsabilidade, seja tão sensível!
— Criança, existem coisas que precisa aprender quanto às mulheres. A primeira, talvez a mais importante, é: as sensíveis são as mais perigosas! — O mestre riu. — Voltaremos à nossa rotina de treinamento e sairemos logo, talvez em uma semana.
— Mais almas, mestre?
— Não. Visitaremos um lugar.
— Hm... entendo, eu acho.
— A festividade dos mortos marca o início de nosso ano — disse Aldous. — Logo, seu velho mestre precisa de tempo para lidar com os distúrbios acumulados no decorrer do último ano.
— Compreendo, a tal caminhada que Althea me disse?
— Exato. São alguns dias onde observo a vida e cuido de minha sanidade. Graças a isso, seu mestre não é um completo selvagem! Ainda há tempo, dedicaremos os próximos dias ao estudo, com pouco treinamento, para não adicionar aos excessos que já tenho.
— Sim, senhor. Não sinto fome, mas acredito que descansarei.
— Sentir raiva cansa, eu sei! — Aldous gargalhou. — Pode seguir aos seus afazeres... tente descansar, mesmo que só um pouco, será algo útil para manutenir a pouca calma que já tem.
Sigmund assentiu e se levantou. Já se sentia muito mais calmo, o que lhe era agradável. Foi ao quarto, cumprimentando todos que encontrou no caminho, e seguiu direto ao banho.
Demorou-se um pouco, mas se arrumou e deitou. Ainda tinha a canção de Althea em sua mente, logo, tomou o saung e, aos erros e acertos, tentou tocá-la para imprimir calma em sua mente.
Precisava aguardar que o cansaço chegasse para tentar dormir, o que demorou meia hora. Pouco tempo, mas o suficiente para o menino se divertir com o novo conhecimento musical.
Cedo no dia seguinte, despertou com Althea chamando-o.
"Bom dia, minha mãe!", ele sentou, sorrindo.
"Como está, teve um bom descanso, pequeno Sigmund?"
"Sim, senhora. Estou bem. Ontem tentei tocar a canção da senhora que me trouxe lágrimas no templo. Sorri ao me lembrar de ti."
"Fico lisonjeada por ser o motivo de seus sorrisos. Posso começar a ensiná-lo essa canção, o que acha!?"
Sigmund sorriu, feliz, ele respondeu: "Sim, senhora!"
Já esperava que fosse uma boa lição e realmente foi.
Ao fim, tomou seu banho e foi ao salão principal onde Aldous estava ocupado com Chase, Byron e Fitz. Os quatro estavam à beira do salão, conversavam enquanto Aldous fitava os degraus.
Sigmund se aproximou e cumprimentou seu mestre em silêncio.
— Um buda corrompido me cumprimenta! Seria isso mau agouro? — Aldous riu. — Como descansou? Aproxime-se!
— Bom dia, meu mestre. Bom dia, Epifron, Pseudos e Profasis!
— A voz rouca não te machuca, não, herdeiro? — Chase indagou.
— Acredito que falar não deveria machucar, Epifron... estou enganado ou equivocado!? — O menino franziu o cenho, olhando-o.
— Agora implicará com a voz dele, Epifron? — Fitz repreendeu.
— Perdão! — riu Chase. — Imagina se esse moleque sobrevive, rouco desse jeito, será ainda mais apavorante lidar com um Algos assim... acho que nunca mais terei uma boa noite de sono!
— Epifron, por favor! — pediu Byron, rindo de seus exageros.
Sigmund omitiu sua risada, pela exótica forma como Chase falava, tornou a cumprimentar a todos e se sentou próximo a eles.
— Não queria incomodar, mestre. Sou necessário?
— Trabalhamos na máscara, o que acha?
— Sim, senhor.
Sigmund concentrou-se para cristalizar o artefato, a energia acumulou-se numa substância láctea cinza. Ele modelou com calma e cautela, tendo, ao fim, algo similar a porcelana com veios cinza.
— Ótimo, outra coisa frágil. Tsc — reclamou, em negativa.
— Esta parece boa, herdeiro — disse Chase, analisando de longe.
— Concordo com Epifron! — Aldous assentiu. — Terminamos momentaneamente, vamos à área de treinamento? Lá você se veste!
— Sim, senhor — concordou, olhando à máscara, desgostoso.
Aldous seguiu, rindo de Sigmund e de seu descontentamento com a criação do artefato, algo que o mestre cria ser exagerado.
— Existem, espalhados pelo mundo, alguns muitos panteões com suas respectivas deidades e servos — disse Aldous, sentando. — Nós, Macária e seus filhos, nos relacionamos bem com a maioria. Temos um problema ou outro, mas falamos dos inimigos depois.
— Imagino que sejam fáceis de derrubar! — Ele riu, soberbo.
— Depende, isso varia muito! Já temos muitas alianças e novos aliados sempre chegam porque gostamos de nos relacionar bem com outros... Hoje, falaremos de dois aliados, antes de você se vestir e voltarmos à nossa rotina de treino e estudo.
— Os hindus devem ser terrivelmente entediantes!
— Até onde sei, são muito interessantes. Particularmente, não tive com eles, afinal, Epidotes, nosso vizinho, é a ponte entre os hindus e nós. Eles se entendem muito bem! — O mestre riu.
— Faz sentido!
— Existem duas coligações: uma é ocidental e outra é oriental. Ambas são responsáveis por cuidar de algo caro à humanidade: o caminho da louca sabedoria; já deve saber que eles existem, porém, diferentes sacerdotes sob ordens de um panteão os guardam.
— Deve ser fascinante!
— Obviamente, é fascinante! — O mestre riu. — Dada a fácil adaptabilidade, os semitas são os líderes da coligação ocidental; enquanto um conselho que reúne as escolas do budismo lidera a coligação oriental. Os caminhos ocidentais começam em parte da África, passam pelo Oriente Médio e terminam na Europa.
— Acho que entendo... quem são esses semitas!? O nome não me parece estranho, mas creio não conhecer com esse nome.
— Atualmente, entende-se dois povos monoteístas como semitas: os judeus e os árabes. Outros já estiveram nessa definição, como: assírios, babilônicos, et cetera... porém, com a reclusão desses povos por seus divinos, já não os incluímos entre os semitas.
— Há possibilidade destes povos retornarem, mestre!?
— Sempre é possível! Basta a Criação propiciar. — O mestre deu de ombros. — Se tiver que ocorrer, diria algo entre cinco e dez gerações humanas, mas é mero achismo.
— Como conclui isso? — O menino insistiu.
— Um achismo baseado nos últimos grandes eventos que vi e na forma como os descendentes desses povos vivem atualmente. Observamos muito a vida e isso nos dá alguns parâmetros de difícil descrição, que pode só fazer sentido em nossa cabeça — riu.
— Acho que entendo...
— Sei que entende! — O mestre sorriu-lhe. — Talvez não saiba exatamente o quê, mas entende... enfim, nós, sétimos, temos uma maior relação com os semitas. A caminhada ou peregrinação que nós, sétimos guardiões, nos comprometemos a fazer ocorre por entre os caminhos ocidentais... Logo, temos muito contato com eles.
— Talvez seja uma pergunta estúpida, mestre... mas, esses caminhos realmente guiam até o estado em que estou? — indagou.
— Sim, sei o quanto soa impressionante! — exclamou. — É uma estrada que deságua na louca sabedoria... literalmente! É um plano tão próximo ao plano vivo que o toca em alguns locais. É uma caminhada que nos traz reflexões e nos possibilita ter um lugar seguro para lidar com problemas, sem tanta intervenção da Loucura.
— Nossa! — O menino pasmou. — C-como!? Quando o rio que deságua em Bodhi se tornou uma espécie de terapia para vocês?
— Isso foi algo estabelecido quando a relação da dor com a evolução foi traçada; isso torna necessário dar vazão a nossa dor constante e só o fazemos através da aproximação com a evolução.
— Nossa, mestre! Isso o coloca face a face com Bodhi, não!? — disse, analisando-o, bastante intrigado. — Sequer consigo sentir essa proximidade... ou afinidade... isso é maravilhoso e assustador!
— Apesar de, sim, me colocar face a face — riu Aldous —, sempre bastará que nós, guardiões, não olhemos em sua direção. Claro, essa é uma tradição que sofrerá alguma modificação, se você conseguir chegar aqui... mas, é assim que fazemos.
— Não creio saber o suficiente para dizer o que será do futuro da sétima escadaria sobre minhas ordens. Tenho muito para fazer e para aprender... a cada dia passado, sinto que algo me falta, mas não consigo identificar — falou com semblante pensativo. — Enfim... de qualquer forma, a caminhada ajudará muito o monge!
— Sei disso. Também podemos usar da caminhada para trabalharmos na máscara, reestruturá-la, usando as emanações dos caminhos evolutivos. Isso nos ajuda a termos algo mais sólido e resistente... muito mais lapidado que o usual.
— Fascinante, mestre! Serei eu quem verá ou precisarei enxergar pelos olhos do monge? — O menino perguntou.
— É preferível que o monge vá e você veja por seus olhos. Isso é algo muito mais vital para ele do que para você. Quando for só, caso encerre minha vida, poderá conversar com os caminhos...
— Sem problemas... eu ajudo. Como a Loucura se comporta nesse lugar!? Tenho muitas ideias, porém, nenhuma certeza.
— Depende do caminho que trilhará. A árvore evolutiva tem copa e tronco, mas também tem suas raízes. Quando for comigo, seguirá pelo tronco, mas não chegaremos à copa. Quando for só, escolherá aonde irá. Sei que nas raízes a Loucura é livre... contudo, não posso arriscar essa liberdade toda para ela.
— Fascinante! — O menino sorriu largo.
— Fascínios à parte... é hora de se vestir, criança! — disse o mestre, apoiando o menino. — Até logo e bom descanso!
Sigmund vestiu o novo artifício e seu corpo desfaleceu.
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