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— Precisamos de pressa, está piorando! — Althea se preocupou.
— Tenho trabalho, não demorarei mais que uma semana. Não dá para acelerar, matando os desgraçados. É inumano... uma criança.
— Tem certeza que está bem para ir? Não é mais sábio enviar as crianças, Aldous? — A sacerdotisa sugeriu, abraçando-o com tristeza.
— Posso lidar, estou bem — afirmou, apesar de não parecer.
— Você não está bem... não seja teimoso!
— Após ouvir os sermões estúpidos de Anaideia sobre não matar humanos, ver isto é complicado! — justificou, buscando conforto. — É uma criança de quatro anos no sofá, Althea. Não acredito!
— Acalme-se! Ajudaremos o pequeno e você não matará a humanidade, tudo bem? — Ela disse com a voz bem calma.
— Que nossa mãe me dê sabedoria e paciência — bem-disse.
— E a escadaria!? — Ela arguiu, guiando-o ao sofá.
— Os intrusos estão em casa, sem data para partir — reclamou. — É um momento delicado, logo Anaideia estende sua estadia. Odeio ter que receber o herdeiro com eles em casa, mas o que posso fazer?
— E as crianças, como lidam com tudo isto?
— Incomodados, mas bem. Quando tenho problemas, privo-me do contato para não afetá-los. Não gostam, mas não vou me ajoelhar e dar-lhes uma lâmina — disse, levado de volta a memória.
— É um costume imposto por vocês, sétimos guardiões. Você tem poder para mudá-lo e sabe disso, não é!?
— Odeio, mas não descarto — arfou, orando para ser precaução excessiva. — Partirei, logo meu finado estará partindo.
— Depois de tudo isto com o herdeiro, tem certeza? — insistiu.
— Se tiver problemas, você saberá! — Apontou o menino. — Evitarei enlouquecer, não sou bom, mas quero poupar a horda.
— Tudo bem, Aldous. Tudo bem! — cedeu, insatisfeita. — Cuide-se! Seja breve e se ferir-se, venha até mim que ajudarei, tudo bem?
— Talvez eu me deixe ferir, só para ser cuidado — sorriu galanteador, beijando sua testa. — Ficarei bem. Obrigado por existir!
— Que o doce perfume de Macária o envolva e o possibilite um retorno saudável ao seu lar — bem-disse Althea, em tom de oração.
Aldous partiu e Althea sentou em sua poltrona, tomou suas anotações e dedicou o resto da sesta a revê-las com cuidado. Sigmund despertou após a sesta, dando um pulo do sofá.
— Acordar assim não é bom! — repreendeu, vendo-o ofegante. — Ao primeiro sinal de consciência, deve ficar imóvel, aguardando a mente despertar o corpo. Sabe quantos problemas pode ter assim?
— Perdão, Althea Gyi! Como está? Nós te machucamos?
— Não, você acertou! Sou bem forte! — sorriu. — Sente dor?
— Não... os olhos estão pesados, a cabeça dói, mas deve passar.
— Compreendo. Servirei água. — Althea deixou as anotações à mesa e serviu uma caneca d'água. — Beba devagar.
Sigmund fez careta, sentindo a água arranhando sua garganta.
— A garganta está machucada!?
— Sim — assentiu, passando a mão na garganta —, desculpa! Só senti ao beber água. Ele deve ter gritado como um louco.
— Não tanto, mas fala com muita paixão, o que machuca — riu.
— Falar com muita paixão é a forma educada de dizer que ele vive vociferando! — retrucou, incomodado. — Dormi muito?
— Não, a sesta encerrou há pouco. — Sentou ao seu lado. — Após eu vencer, ele me deixou cuidar de vocês... e você, aceita?
— Já queria. Gosto de ti. Não posso fazer toda Ava chorar.
— Entendo — sorriu, acariciando-o. — Prometo dar meu melhor e amá-los muito! Agora, banho. A roupa está muito suja.
Sigmund seguiu ao banho, lavou as calças — muito surradas. Seguiu ao grande salão e a bandeja na mesa de centro já havia sido substituída por um pires com uma maçã.
Ela estava sentada, cortando fatias bem finas da maçã, fazendo-a parecer uma flor que cabia perfeitamente no pires.
— Agora está melhor! — Ela brincou. — Você tem duas escolhas: pode sentar e estudar comigo até o jantar ou treinar.
— Julgo a prudência melhor, então estudarei. Assim descanso.
Sigmund sentou ao seu lado, observando o que ela fazia. Althea tirou uma pétala da pequena escultura de maçã, entregando-o.
— Já sugeriria isso. Preciso de sua ajuda pela semana.
— Ajudar como? — indagou, perplexo com a precisão do corte.
— Preciso que se atenha a tudo que sentir. Caso sinta desconforto, cansaço, estresse, deve me comunicar, tudo bem!?
— Não estou bem? — Preocupou-se, buscando ferimentos em seu corpo enquanto mastigava a maçã.
— Está ótimo, mas Aldous não está... e terá uma semana árdua. Então, pequeno Sigmund, precisa me avisar.
— Tudo bem, Althea Gyi! Prometo — assentiu, apreensivo.
— Obrigada. Podemos estudar? O que achou da maçã?
— O corte é fascinante, muito preciso! — elogiou, destacando outra pétala. — Ainda ficou bonito, nossa!
— Obrigada! Numa próxima vez, lhe ensino. Serão duas lições — sorriu, tomando o caderno e começando a lecionar para Sigmund.
Sigmund estudou até o cair da noite e foi com ela para o jantar.
— Mãe — cumprimentou Arri —, os irmãos de Árias chegaram. Recomendamos recolherem-se. Estão bem. Não tiveram problemas.
— Que bom, já estava preocupada — aliviou-se Althea.
— Ignácia trará o relatório — concluiu. — Como está o pequeno?
— Estou bem... não avisei Dieter Gyi do treino. — Lembrou-se.
— Falei com ele e Gwendalyn — tranquilizou Althea.
Todos comeram e, ao fim, reuniram-se no salão principal.
Tocaram canções lentas, solenes. Sigmund cochilou com a cabeça apoiada em Althea. Acordou ao sentir seus braços o envolvendo e pegando no colo para ir ao quarto.
"Que nossa mãe lhe proporcione um bom descanso, pequeno Sigmund!", bem-disse, beijando-o na testa.
Apesar da breve perturbação, Sigmund logo voltou a dormir. Teve um sono pesado, nem sequer sonhou.
No dia seguinte, após seu asseio, foi ao salão principal. Duas moças de pele escura, parecidas — excetuando a jovialidade da extrovertida — conversavam com Arri e Gwendalyn, riam bastante.
Receando atrapalhar, Sigmund sentou a frente da estátua, observando-a. Era impressionante algo tão grande ter sido perfeitamente esculpido.
"Com a capacidade de Althea para fazer uma maçã virar flor, está justificada a habilidade para esculpir algo assim", pensava o menino.
Sua atenção foi removida da estátua quando sentiu o perfume de Althea. Olhando ao corredor, não demorou para ela aparecer.
— Bom dia, Althea Gyi! — cumprimentou, aproximando-se.
— Bom dia, pequeno Sigmund! — Ela o beijou na testa, sorrindo. — Teve um bom sono?
— Sim, senhora. Já tomei banho e estou pronto para a refeição.
— Vamos!? — sugeriu, começando a caminhar.
— Estava observando a estátua. É tão grande e detalhada, impressionante! — Sigmund voltou a olhá-la. — É muito fascinante!
Althea seguiu devagar para ele continuar admirando-a.
Uma das moças correu para abraçá-la, assustando o menino.
— Estas são Ali — Althea apontou a mais jovem — e Linas, sua irmã — sorriu. — Meninas, este é o pequeno Sigmund.
— Olá, Sigmund! — cumprimentou Ali.
Ele as cumprimentou com uma flexão e ambos seguiram à mesa.
Karrick e Dieter estavam servindo a refeição, Sigmund os auxiliou e terminando, voltou ao seu lugar ao lado de Althea.
Ela apontou para um rapaz com traços indianos e cabelos longos, presos por um acessório com o iantra da morte, dizendo:
— Aquele é Siddhi. — Ele cumprimentou e ela apontou o rapaz de pele levemente avermelhada e cabelos lisos curtos — Este é Eyota.
— Bom dia! — Siddhi sorriu. — Parece um conterrâneo.
— Não gosto dele — disse Sigmund, olhando-o, desconfiado.
— Más experiências com theravadas. — Althea disse a Siddhi.
— Lastimável! — compadeceu-se.
— Bom dia, minha mãe... e rapazinho! — cumprimentou Eyota, dono de uma voz mais grossa do que aparentava. — Esta é Vênus — apresentou Eyota, a moça de traços hispânicos fortes, à sua direita. — Viemos, mas não ficaremos. Vênus e eu iremos para Tesprócia.
— Que Macária guie seus passos — bem-disse Althea.
— Amém, minha mãe! Agradecemos. Passaremos algum tempo lá, mas ao voltarmos, ficaremos um pouco. — Vênus sorriu.
— Sou Sofi — apresentou-se a grega, de cabelos loiros, claros, beirando o branco —, é uma satisfação conhecê-lo. Que Macária toque seu coração e remova seu peso — bem-disse, muito sóbria.
— Soube do relatório, tardiamente, minha mãe — disse a moça sentada ao lado de Siddhi, com traços gregos finos e olhos negros.
— Já resolvemos. Agradeço! Esta é Selenia — apresentou Althea.
— Olá, Selenia! — cumprimentou Sigmund, fitando Siddhi.
Durante a refeição, a conversa foi saudosa. Para o menino, a conversa estava longe, afinal estava compenetrado, vigiando Siddhi.
Ao fim da refeição, Althea o chamou em seu íntimo: "Criança!"
— Althea Gyi? — Olhou Sigmund, despertando para a realidade.
— Não sente fome? Comeu pouco — preocupou-se Althea.
— Desculpe, Althea Gyi. Não sinto muita fome. Comerei um dos biscoitos... não treinei com Uma Gyi hoje! — lembrou-se.
— Pedi para não chamar, afinal precisava descansar — disse Althea, estendendo-o a mão. — Vamos?
Ele a acompanhou. No salão principal, sentou a frente da estátua. Althea tomou sua flauta para tocar uma canção doce, suave.
Fitando a estátua, Sigmund observou as cordas da grande harpa da estátua oscilarem, como se também tocassem a música. Ficou confuso, intrigado, crendo que a cabeça pregava-lhe uma peça.
Althea tocou por vinte minutos. O silêncio ainda possibilitou Sigmund ouvir poucas e distantes notas da grande harpa.
— Nossa! — pasmou, aproximando-se da harpa. — As cordas vibraram, Althea Gyi! — disse, tocando-as, pareciam metálicas.
— Se quiser, pode treinar com Asah, tudo bem? — Althea riu.
— Irei. Como fez isto? — perguntou, curioso.
— Quando vier estudar, contarei! — A mulher saiu, rindo.
Sigmund curioso foi a entrada e Asah o aguardava, sentada.
— Desculpe a demora, Asah Gyi. Não sabia que poderia treinar.
Asah sorriu, desculpando-o e seguiu com ele à floresta morta. O treinamento foi tranquilo, Asah seguiu os exercícios anteriores, observou progresso nos movimentos, mais inteligentes, de Sigmund.
Ao fim, Sigmund banhou-se e juntou-se a Althea. Ela estava só, escrevendo e degustando uma taça de vinho.
— Olá, pequeno Sigmund. Chegou para estudar? — sorriu-lhe e ele assentiu. — Como foi o treino? Teve problemas ou dificuldade?
— Foi tudo bem. Não tive problemas. Asah Gyi me elogiou disse que estou indo bem — comemorou. — Esqueci o biscoito. Desculpe!
— Não me peça desculpas, mas a si, afinal é seu corpo.
Sigmund buscou um dos biscoitos e sentou.
— Manifestar o vínculo com Macária pela música é primoroso. Enquanto dedicar o coração, tocarei e Ela ouvirá. Sempre que houver angústia em minhas notas, Ela acalentará. Até eu, temo de errar!
— Você, com certeza, não erra! Nem precisa se preocupar.
— Ainda posso errar, criança. Pasme! — riu. — Mesmo meu coração precisa de acalento, vez ou outra, quando está muito pesado.
— Por isto as cordas vibraram? — perguntou, curioso.
— Sim.
— Por que pesa? Posso ajudar?
— Estou preocupada com Aldous. Não se preocupe, já ajuda bastante. — Althea sorriu-lhe. — Podemos estudar, tudo bem?
Sigmund assentiu, buscando melhorar o humor de Althea. Findado estudo e refeição, ele recolheu-se em seu quarto para a sesta.
Despertou da sesta, treinou com Dieter; foi à refeição e treinou com Gwendalyn, recolhendo-se ao fim do dia.
No dia seguinte, Sigmund acordou cedo, levemente inquieto. Teve sua concentração perturbada no treino, mas conseguiu render. Crendo ser cansaço, julgou não ser necessário relatar.
Enquanto estudava, Althea observou a dificuldade, acompanhada de alguns leves espasmos, e o perguntou se sentia algo.
— Estou com dificuldade para manter a atenção, eu acho.
— Encerramos os estudos, o que acha? — sugeriu, analisando-o.
— Aldous Gyi, não está bem!?
— Ainda está. Tenho fé nele! — sorriu, pegando-o no colo após guardar os cadernos. — Fique na cama e trarei nosso almoço.
Sigmund assentiu e Althea saiu. No silêncio, ele percebeu os espasmos, mas fechou os olhos e começou o exercício da respiração, mesmo que nada sentisse, precaveu-se.
Althea demorou meia hora para chegar com as refeições numa bandeja, ela a pôs à mesa de cabeceira e sentou ao lado do menino.
— Sente-se, pequeno Sigmund — disse, acariciando-o no rosto.
— O corpo está estranho, Althea Gyi. Não sei o que há, mas nada sinto. Só estou distraído desde cedo. Creio ter visto o corpo mover só... como tremer, mas rápido! — Franziu o cenho. — Espasmos!
— Observei, o ajudarei com a comida...
Sigmund sentou e ela o deu de comer. Terminando, Althea teve sua refeição e deixou a louça suja sobre a bandeja, foi ao banheiro e trouxe uma bacia com água para ele se assear.
— Levarei a louça e volto logo. Sente-se enjoado? Alguma dor?
— Não... estou bem... só estranho.
Althea o beijou na testa e saiu. Voltando, a sacerdotisa sentou, convidando-o a deitar a cabeça em seu colo.
— Althea Gyi — chamou, sem olhá-la — O que há comigo?
— Lembra-se do que você e Aldous partilham? — O menino assentiu. — Aldous não estava bem quando saiu. Deve estar tendo um trabalho difícil. Ainda não é perigoso, mas pode se tornar.
— Que dificuldade ele poderia enfrentar para ficar estranho?
— Guiar uma alma é delicado. Passa por ir, anunciar a morte, em alguns casos, é preciso convencê-la que morreu! Lembra do exemplo da vela de Aldous, as memórias estão no corpo de cera, lembra?
— Sim.
— O contato com o corpo de cera nos inunda com as memórias superficiais, ou seja, as memórias da vida que acabaram de deixar. Suicidas passivos são complexos e a sétima horda tem um desgosto particular por eles. Compreendendo o valor que a vida tem, eles não admitem o desperdício e banalização da mesma lhes é um pecado!
— Esse contato causa instabilidade em Aldous!?
— Sim. Aldous lutou muito para viver. Muito resiliente e forte. Isto o impossibilita entender o porquê de desperdiçar a vida, ou, ao menos, esta é a leitura superficial que faço deste comportamento.
— Macária ama a vida... é natural odiar tudo que a despreza — assentiu. — Mesmo não a seguindo, entendo. Pensando em Ranna... repudio! Pior que desperdiçar homeopaticamente é não ter coragem para cortar sua jugular, perfurar órgãos ou amarrar uma pedra ao pé e jogar-se ao lago! Muito desprezo e covardia — disse, trêmulo.
— Entendo — disse, acariciando-o no rosto e pegando sua flauta —, o que acha de cochilar um pouco? — sugeriu.
Ele aconchegou-se em seu colo, assentindo, e ela tocou uma canção suave de tons melancólicos, aplicando sua energia, levando-o a um profundo sono, sem sonhos.
O dia seguinte foi calmo.
Sigmund ainda sofreu com a perturbação na concentração, mas foi leve. No almoço, a notícia da partida de Siddhi o proporcionou alívio, tornando seu dia mais produtivo.
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