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Sigmund acordou no quarto de Althea, procurou e a viu prostrada no altar. Uma dor de cabeça aguda o incomodava. "Tomara que não tenha dormido muito", desejou enquanto sentava.
Refletiu sobre o ocorrido, evitando pensar nas estranhezas, afinal, o corpo arrepiava ao pensar! Para se distrair, se aproximou de Althea, que parecia em paz, apesar de lágrimas correrem sua face.
Comovido, ele não atrapalhou, mas sentou ao seu lado. Quando a mulher terminou, se surpreendeu ao vê-lo, beijou sua testa, sorrindo.
— Bom dia, pequeno Sigmund. Descansou bem?
— Por que chora? — perguntou, enxugando suas lágrimas.
— Choro pela vida.
— Você está doente? — Preocupou-se.
— O mundo está. Já se banhou?
— Não. Estava aguardando para saber se preciso de algum cuidado. Estou dormindo há muito tempo? Machuquei-me muito?
— Não. Apenas desacordou ontem. Nada grave. Como está hoje?
— Bem. Ontem foi horrível! — reclamou. — Senti coisas estranhas, me embriaguei, eu acho! Só de lembrar, arrepio, o ar falta.
— Lembra-se do impulso sádico? É isso... sempre estará em sua vida. A Loucura age para aguçá-lo, podendo levá-lo a se machucar.
— Nossa! — exclamou. — Não podia ordenar a mente, o corpo estava fraco, trêmulo. Foi horrível, Althea Gyi! — disse incomodado.
— Gosto que creia nisto! — Ela riu. — Agora, vá ao banho!
Sigmund seguiu, confuso com a risada. No banho, ela o levou um quíton e, pontualmente, Uma bateu à porta, cumprimentando Althea.
— Minha mãe, devo me ater a algo durante o treinamento?
— Não se preocupe. Estarei atenta. Só darei início às minhas tarefas após a refeição, logo estarão assistidos a todo momento.
— Obrigada, minha mãe — cumprimentou Uma, retirando-se.
— Bom dia, Althea Gyi! — cumprimentou Sigmund. — Vou me esforçar para não dar trabalho algum — disse, saindo atrás de Uma.
— Cuidar dos nossos nunca é trabalho. Bom treinamento!
Lá fora, ventos quentes sopravam, anunciando um dia ensolarado. Mesmo tão cedo, o céu se coloria com o tom alaranjado.
— Uma Gyi, pode me ajudar?
— Claro, do que precisa?
— Althea Gyi chorou no altar, perguntei se estava doente, ela disse que o mundo estava. Aconteceu algo? — Ele se preocupou.
— Macária rega seus lírios com lágrimas. — Uma parou. — De luto e tristeza pela vida que sangra, mutilada pela intolerância, ignorância e indiferença. De amor, saudosas, por seu amado.
Melancolia tomou a face de Uma e ela seguiu:
— Quando os olhos da alma abrem, vemos o sangue espalhado por Gaia, sentimos suas doloridas contrações, ouvimos seu pranto. O mundo vivo, pela ótica morta, é gelado e cruel. Mantemos esses olhos fechados, mas a total entrega ao comungar com a mãe os abre.
— Nossa! Parecem tão felizes... — Um frio correu sua espinha.
— Os vivos vêm matando e torturando a si e tudo ao seu redor. Pervertendo a vida hediondamente. Quem tenta combater isso, se torna alvo e, às vezes, têm a chama de sua vida brutalmente apagada. Parece que a Grande Guerra foi apenas um prelúdio...
A moça deu de ombros com tom decepcionado em negativa.
— Acordar, me prostrar no altar e orar à Macária, ouvindo uma sinfonia tocada com desespero e dor é difícil! Não sei como a mãe sente, creio ser intenso pela proximidade que a autoridade lhe dá.
— Nossa! — exclamou, contagiado pela tristeza de Uma.
— Treinemos? — sugeriu. — Mãos nuas! Hoje, aplicarei minha sinfonia. — Uma assumiu a postura ofensiva. — Lembre que ler minha sinfonia para premeditar é efetivo, se puder lidar com fintas.
— Não me é tão útil, eu acho! — O menino disse.
— Estar pronto para se curar é uma boa estratégia, mas seja sábio para não ficar exausto, isso pode ser letal. Felizmente, não sou tão rápida, o que lhe compra tempo para se decidir com seu corpo.
Uma o aguardou se aproximar para iniciar, objetivando corrigir erros na postura que abriam sua guarda. A ofensiva despreocupada somada ao problema com o corpo levavam Sigmund a se ferir muito — ele não parava e trocava feridas por ataques bem-sucedidos.
— Sente e cure do mais grave ao superficial — instruiu Uma ao fim. — Caso a consciência falhe, lide só com as graves, senão apagará.
Sigmund sentou, pôs a mão na cabeça ao sentir uma intensa dor.
"Deixe que cuidarei das feridas do corpo, só doerá muito."
— Não quero que doa! — respondeu, começando a curar-se.
Sua energia trabalhou só, acumulando-se sobre os ferimentos; queimava como óleo quente, fazendo-o gritar de dor.
— Criança!? — Uma ajoelhou-se de frente para ele. — Está bem?
— Sim. Só tem um idiota vivendo dentro de mim.
"Sou o dono do corpo!", gritou, intensificando a dor.
— Desculpa! Desculpa! — gritou, enquanto a dor alastrava-se.
— Ajudarei a caminhar.
Mesmo confusa, Uma o ajudou para retornar, aconselhando-o:
— Tome um banho... vista só calças, pois, hoje será quente!
Sigmund suspirou, aliviado pelo fim da dor. O quíton estava em péssimas condições, mas ele o lavou no banho e vestiu apenas calças. Correu para juntar-se à refeição, sentando ao lado de Althea.
— Perdoem a demora — cumprimentou Sigmund.
— Como foi o treino? — perguntou Althea a Sigmund e Uma.
— Foi bem. Tivemos um problema, imagino estar atrelado à sua condição — disse Uma. — Senti um feixe da Loucura... mas, suave.
— Uma divergência. Ele é agressivo! — reclamou, sentindo a cabeça doer. — Se não quer estar aqui, não me perturba...
"O monge está nervoso?", ele riu, causando-o uma leve dor.
— Calma — disse Althea, fitando seus olhos —, podemos comer?
A leve falta de ar e o corpo trêmulo tiraram o apetite do menino.
— Comeu pouco... tente comer um biscoito — sugeriu Althea.
— Perdi a fome — respondeu, respirando devagar.
— Imagino que sim, mas se esforce para isto, tudo bem?
No quarto de Althea, ele pegou dois dos biscoitos.
— Come um também! — Ele a ofereceu. — Uma Gyi me explicou o quanto é triste, talvez facilite para sorrir.
Althea recebeu com um sorriso único, contagiando-o. Eles riram por um instante, mas, envergonhado, ele saiu, comendo.
— Ontem não permaneceu consciente. Parece suprimir muito de sua sinfonia, mas não tem ciência. Estou certa? — Asah perguntou.
A intensa dor de cabeça novamente o afetou.
"Enquanto brinca, eu trabalho. Estar aqui garante muito poder. É natural! Ketu privava-se, mas ao reaver tinha muita energia reservada."
— Como sabe? — perguntou Sigmund, curioso.
"Após surrar Tarusa, Ketu e seu secto de imbecis lidaram comigo. Voltando, ele não estava privado, nos olhava e energia vazava... Numa reflexão, concluí que seu artifício pode ser fonte de poder, me permite destilar energia como uma serpente destila veneno."
— Que houve ontem? Asah Gyi poderia se machucar — brigou.
"Algum surto... provável consequência das cicatrizes da prisão."
— Hm... Desculpa te culpar — disse, culpado.
"Quanta bondade. Que nojo! Não vejo a hora de te consertar!"
— Desculpa, Asah Gyi. Não sei o que houve, mas me esforçarei para não ter problemas de novo. Ele entende o que é isso de energia.
— Cuidamos ao descobrir, por enquanto seguimos ao treino.
Asah pegou as armas do dia anterior, agora refinadas.
— Repetiremos a simulação, trabalhei no bastão e na lança.
Ela apontou as armas rústicas. Preparado, ele não recebeu o primeiro ataque e, por quarenta minutos, ela instruiu com o bastão. Trocou para os movimentos de lança, incluindo arremessos.
Ao fim, o menino começou a curar-se, mas foi atingido pela dor da cura de seu reflexo. Apesar de pouco, o prazer acompanhou a dor.
— Eu te odeio! — Ele gritou, caído.
Asah correu até ele para estender-lhe a mão.
— Desculpa, Asah Gyi. Não odeio você — Ele se reparou.
— Entendo que não fala comigo, não se preocupe! — Riu.
"Estamos melhorando. Prefiro essa reação.", riu o reflexo rouco.
Indo ao grande salão, o menino encontrou Althea atarefada.
— Cheguei, desculpe a demora! — Ele cumprimentou.
— Não demorou. Sente-se, preciso de dez minutos. Aceita vinho? — ofereceu, parando de escrever e olhando-o.
— Servirei — disse, servindo-os. — Pode ajudar olhando a taça?
— Claro, presto atenção sim.
— Ele está horrível hoje! — reclamou, pegando um dos biscoitos.
— Se interagem é um bom sinal! É terrível personalidade e individualidade em guerra... muito perigoso. Conversar pode ajudar.
— Creio que essa interação nos matará — reclamou Sigmund.
"Não quero que morra, pequeno monge."
— Não sou um monge! — exclamou Sigmund.
"Fala e se comporta como eles, com a aparência suja não difere!"
— Mesmo que Ranna esteja morta, ainda preciso aprender.
"Aprender o quê? Não abdique de si, excomungue os riscos ao seu poder. Satisfaça-se sendo divinizado. Ensine o próximo a amar o que lhe convém e odiar o que não aceita. Ame a natureza, viva num lugar domado, inofensivo! A vida é uma guerra, matar é crime. Abdique de sentimentos, prenda os outros a sentimentos por você.", gritou.
Lágrimas negras escorreram pela face de Sigmund. A dor dos gritos o assolou, mas a tristeza doeu mais, a solidão e o vazio que seu reflexo destilava começaram a transbordar sem parar.
"Posso ensinar, mas quero que seja meu pedaço vivo! Que sente algo que presta... vê o sorriso dessa mulher e sorri, não chora... que consiga ficar mais de cinco minutos, sem se torturar, ter raiva ou dor!"
Althea pegou um biscoito para sentar ao seu lado e o menino deitou a cabeça em seu colo. Ela lhe sorriu, fitando seus olhos.
— Acalmem-se! — disse, dando um pedaço. — Abra a boca.
Sigmund abriu, comendo o pequeno pedaço.
— Abre de novo, mas este é para ele, tudo bem?
A voz cessou. As lágrimas misturaram-se entre negras e rubras, diluídas pelas transparentes lágrimas da pobre personalidade.
— Por que estão sós? Não precisam, estamos aqui!
Um dos olhos do menino assumiu o tom púrpuro natural.
— Não é porque queremos... não escolhemos. Fomos largados!
— Não os abandonaremos. Podemos ser sua família, se permitir.
— É sábio permitir um potencial inimigo, que desconhece a paz, unir-se aos seus? Desconhecer é impreciso... É sábio permitir um potencial inimigo, que não se contenta com a paz, unir-se aos seus?
— Todos somos inimigos potenciais, reféns de sentimentos e sensações. Não há um povo de bons moços. Até nós, que vivemos para entender e sustentar os nossos, temos problemas. — Ela enxugou seu pranto. — Nós o aceitamos. Sua natureza pode interagir conosco.
— Ideias utópicas enojam. Na primeira chance, me cuspirão!
— O reino da mãe difere de utopia. Temos parâmetros para bem e mal. Há um conjunto de leis que se comunicam entre si pela ordem. Há punições severas, mas abandono não é uma e não deve existir!
— Ordem é uma ilusão. Paz, um delírio poético dos românticos!
— A ordem é o respeito dos inteligentes. A paz, uma realidade imutável, apenas existe, está em todo lugar, em lugar algum. Tangê-la é doloroso, custa caro, mas é possível para qualquer um.
— Assim soa pouco inteligente. Fala com emoção, ignora razão!
— O que é vida, senão emoção? — Ela o beijou na testa, terna.
— Vida resume-se a dor. Mais... ou menos — disse impaciente. — Como emoção e vida estariam ligados? Tsc, estúpido! É só errar, ser castigado, tentar... um círculo vicioso que cessa com a morte.
— Apenas está triste, pequeno... Há muito a apreciar. Errar, aprender e seguir não resume a vida e isso não precisa doer tanto.
— Já sou insano. Não preciso desses delírios coletivos.
— Resiliente... não me deixaria cuidar de ti?
— Por que quer? Não creio em ti, sua sociedade ou sua divina!
Um intenso calafrio o tocou e ele se colocou de pé.
— Não me renderei, então resolvemos de outra forma!
— Que forma? — perguntou, certa que sabia.
— A que conheço, gosto e sei ser infalível. Um desafio. Pode ser amistoso. Se perder, deixo que cuide de mim — propôs.
— Combater!? — O monge indagou, apavorado. — Não é justo! Por que lutar, se ela nos oferece ajuda? Por que destrói tudo que toca?
— É a minha natureza! — Engoliu seco. — Se ela não for forte para nos parar agora, protagonizaremos tragédias e não quero isso!
— Ela é forte, é impossível vencermos! — afirmou convicto.
— Impossível você vencer! Não me diminua ou sabote! — gritou, espalhando tensão no corpo. — Diferimos muito e eu sou superior!
— Já decidiram? — perguntou Althea, terminando seu vinho.
— Nós vamos.
— A prisão de vidro precisará ser quebrada, pode fazê-lo?
— Consigo. Doerá, mas ele sobrevive.
— Não quero lutar contra Althea Gyi! — gritou, forçando para impedir o corpo de mover-se. — Deixo me machucar o quanto quiser.
— Tentador — sorriu, lambendo o canino. — É impulso sádico, não!? Infelizmente, não há acordo. Posso machucá-lo a qualquer momento. O corpo é meu... forçar só me dará momentâneo gozo.
Althea amarrou a flauta em seu estrofião, com calma, e seguiu. Ofereceu ajuda ao menino, mas, irascível, ele sorriu, dizendo:
— Quanto mais brigar, mais forçarei, mais doerá, mais gostarei!
"Provavelmente não estarei no almoço. Não se preocupem, estou bem. Tenham uma boa refeição!", ela disse aos sacerdotes. Chegando a floresta morta, ela cessou a marcha após afastar-se da floresta viva.
— Você pode vir! — Ela sorriu. — Primeiro os mais novos.
O monge esforçou-se para impedir o avanço. Lágrimas caíam do castanho olhar, contrariando o sorriso no canto direito da boca.
A dor do embate preencheu seu olhar com insanidade.
O sádico prazer os inebriou e, após muito forçar, o estridente som do quebrar ecoou algumas vezes. Sentiram o arrebentar de cada uma, como se fibras musculares rompessem.
Com um grito estridente, a consciência passiva adormeceu.
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